Não mude de canal, mude o canal
Vivemos uma época de inversão ou deturpação de valores. Até mesmo daqueles valores consagrados por terem sido inscritos na Carta Magna da Nação como deveres dos contemplados por concessões públicas de rádio e televisão. Por conta disso, surgiu uma teoria abjeta que, se não for combatida, irá ganhando adeptos.
Com o florescimento da consciência nacional sobre o papel das comunicações e o conseqüente surgimento de movimentos sociais e políticos por sua democratização, ou seja, para acabar com o oligopólio que as mantém nas mãos de meia dúzia de famílias, e com a divulgação de como a comunicação é tratada nos países mais desenvolvidos e democráticos – onde é regulada pelo Estado sem gritaria sobre “censura” –, surgiu um discurso canhestro que prega que quem não aprova ou sente-se ofendido pelo uso que o oligopólio midiático faz de concessões públicas como a televisão, que mude de canal.
É como se os usuários de outra concessão pública, as linhas de ônibus urbanos, se inconformados com a qualidade desse transporte fossem aconselhados pelos concessionários donos dos veículos a que, se não gostam deles, que andem a pé ou de táxi. Ou como se o vizinho que ouve música no último volume a madrugada inteira dissesse aos incomodados que se mudassem.
Se tenho uma filha autista – e tenho – e vejo um “comediante” fazer piada com a sua doença, eu que “mude de canal”? Se tiver uma filha que foi estuprada – e um amigo tem – e o tal “comediante” disser que ela deveria agradecer ao estuprador, idem? Pouco importa se tais “piadas” se espalharem pela sociedade por terem sido ditas na televisão, não é mesmo?
Os artigos 220 e 221 da Constituição Federal, apesar de jamais terem sido observados, garantem ao cidadão que não seja obrigado a “mudar de canal” quando tais preceitos constitucionais forem violados pelos concessionários da comunicação eletrônica de rádio e televisão.
No Artigo 220, parágrafo 3º, item II, está inscrito que cabe ao Estado “Estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221”, o qual, em seu item IV, reza que o concessionário de televisão ou rádio deve primar pelo “Respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Alguém consideraria que a pregação de “estupro” de mulheres ou o deboche de deficientes mentais, sob a alegação de ser “humor”, inserem-se entre os “valores éticos e sociais da pessoa e da família” que devem balizar a programação produzida pelos concessionários de meios de comunicação eletrônicos? Parece que não.
Esses impérios de comunicação e seus defensores entre a sociedade civil desenvolveram uma crença em que o empresário que controla um canal de televisão, por exemplo, é dono daquela faixa de onda do espectro magnético por onde trafega o que produziu, quando, na verdade, ela lhe foi cedida para exploração comercial desde que o uso que dela faça contemple o interesse público.
Portanto, ao lhe mandarem “mudar de canal” quando você julgar que determinado programa viola os preceitos constitucionais supracitados, dê uma banana a quem diz isso e instrua o ignorante (da letra da lei) de que, quando o canal viola a Constituição, não é o público que tem que mudar, mas o canal.