O presente das nossas crianças

Crônica

Sempre que começo a escrever sobre o capitalismo me sinto um ET, um ser de outra galáxia que acaba de pousar neste planetinha minúsculo perdido no meio da Via Láctea, pois a inevitabilidade do sistema, a crença messiânica em que representa o fim da história, a constatação resignada de que não haveria outro caminho, tudo isso deixa um travo na boca, um aperto no coração, a sensação de que a humanidade está condenada a se tornar mero alimento do capital. E todos sabem como os alimentos terminam…

Pensamos assim, que o homem é que possui a riqueza material e não o contrário apesar de que, em verdade, não percebemos quem possui a quem. Não conseguimos identificar a verdade imutável de que é o capital que possui o homem apenas porque, desde crianças, somos doutrinados a vê-lo em ação como se fosse manifestação de amor, de carinho, de desvelo, de doação àqueles que, por razões menos altruístas e mais do que tudo sociais, temos a obrigação social, moral e até genética de cuidar até que se possam cuidar sozinhos.

Tudo começou nas últimas décadas do século XX, quando o salto tecnológico da humanidade alcançou as raias do impossível e, de lá para cá, as mídias passaram a construir seres que podem ser teleguiados por corporações, se não nos valores fundamentais como religião ou política, ao menos no instintivo, onde o desejo de consumir é alimentado graças a mensagens subliminares que a comunicação nos implanta no quadrante inconsciente das personalidades.

Repare bem hoje nas famílias que deveriam estar celebrando o dia dedicado às suas crianças. Fique de olho em como aqueles que herdarão o mundo que estamos criando serão contemplados com avalanches de brinquedos, alguns mais caros – para os contemplados pela “magia” injusta do capitalismo – e outros “baratinhos” – para os aspirantes a entrar para a ordem restrita dos eleitos –, mas todos, sem exceção, substitutos do amor, do carinho e da atenção que são o que pedem esses seres que ensaiam os primeiros passos na estrada da vida.

Entrega de presentes, beijos, abraços, certa condescendência com o que não seria admitido em outros dias, passeios, cinema, restaurantes ou lanchonetes, comida insana e, ao fim, esquecimento, enquanto os familiares adultos se voltam a si mesmos sem jamais terem ido além da casca dos sentimentos das crianças, não as ouvindo e sentindo, não buscando conhecê-las, saber para onde seus corações e mentes estão indo e, daí, a surpresa quando crescem e descobrimos que jamais as conhecemos.

O capitalismo é, também, comodismo. Ante a “estafante” missão da paternidade, pais robotizados e filhos em processo de robotização fazem um pacto cínico de dar e receber não os sentimentos, os valores fundamentais do homem, a atenção, a cumplicidade, o compartilhamento, a adição ou a multiplicação familiar, mas, tão-somente, a subtração e a divisão…

O presente de que nossas crianças precisam não pode ser comprado. E não é caro. Temos disponível no reduto do inconsciente que faz com que nos questionemos, mesmo que por um instante, quando, por egoísmo, não damos aos filhos o que todo ser humano tem a dar, impedidos que estamos de entender que o ideário capitalista nos convenceu de que podemos nos poupar do trabalho de revolver os corações para encontrar o único presente que importa àqueles que colocamos no mundo.