Jornalismo militante do Brasil critica congênere argentino
Vai passando quase despercebida – por estar sendo pouco comentada – matéria da Folha de São Paulo de segunda-feira que, por sua importância, chegou a ser publicada no site da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão). É de autoria da jornalista Sylvia Colombo, 39, correspondente daquele jornal na Argentina (Buenos Aires).
Sob um título nitidamente partidarizado como “Cristina Kirchner faz cerco à imprensa independente”, Sylvia relata o clima político que vive a Argentina no âmbito da “guerra” entre governo, de um lado, e meios de comunicação do outro. Todavia, a jornalista faz isso sob a ótica de um dos atores envolvidos no processo, o que, de acordo com o seu próprio ponto de vista, não seria jornalismo.
É imperativo ler esse relato porque, descartadas as opiniões e idiossincrasias da autora, revela como um governo de centro-esquerda com propostas e ideais muito parecidos com os do governo Dilma Rousseff está derrotando a filial argentina da franquia midiático-conservadora que governou ao menos a América do Sul desde sempre até a virada do século XX, e que está mantendo o governo brasileiro literalmente acuado.
Se já leu essa matéria, releia (abaixo) e reflita sob a ótica que será proposta. Se não leu, há que ler.
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Cristina Kirchner faz cerco à imprensa independente
Ter, 06 de Dezembro de 2011
Folha de São Paulo
Mundo – Mídia
Governo usa veículos próprios para praticar “jornalismo militante”
SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES
“Você trabalha no ‘Clarín’?”, pergunta mal-humorado o taxista ao repórter do jornal, depois que ele diz o endereço onde quer ir.
Meu colega já vinha se irritando com esse tipo de patrulha. Chegou a dar nomes de ruas paralelas, preferindo caminhar até a redação, só para não ouvir agressões de apoiadores do governo, que está em guerra com a imprensa independente.
Nesse dia, respondeu: “Não, estou indo lá só para entregar um envelope”. Depois, pensou no absurdo que tinha sido levado a dizer.
Uma outra colega, que faz um curso de pós-graduação numa universidade local, havia se interessado pela aula de determinado professor. Um dia, foi pedir recomendações de leitura. Ele, simpático, a recebeu e perguntou a que se dedicava. Ela, orgulhosa, encheu a boca e disse: “jornalista”.
Quem já está há algum tempo na profissão acostumou-se a ouvir comentários positivos depois de uma apresentação assim. Em grande parte do mundo ocidental, considera-se o jornalismo uma atividade nobre e importante para a sociedade.
Pois o professor dessa minha amiga parou de sorrir quando ouviu essa palavra. “Aqui não gostamos de jornalistas”, disse.
Comigo acontece também direto. Numa ocasião, numa barulhenta sala de espera de um dentista, enquanto preenchia minha ficha, a secretária perguntou minha profissão. Quando disse, fez-se silêncio, quebrado apenas pelo comentário desconcertante de uma senhora: “No seu país vocês são mentirosos também?”
Em debate do programa “6,7,8”, atração da TV estatal cuja finalidade é malhar a imprensa crítica ao kirchnerismo, o comentarista Orlando Barone soltou a seguinte pérola: “O jornalismo é inevitavelmente de direita porque a democracia é de direita. O jornalismo nasce para defender a democracia, dentro dos cânones instituídos da propriedade privada”.
O governo Cristina Kirchner, que começa um novo ciclo no próximo sábado, é louvável em alguns aspectos: tirou a Argentina da prostração econômica pós-2001, levou militares responsáveis pela repressão da ditadura (1976-1983) à prisão e aprovou o matrimônio gay.
Porém, sua relação belicosa com a imprensa assusta. Para defender-se da imprensa, o governo montou um grande conglomerado.
Seus veículos defendem as políticas do governo, mas, principalmente, atacam a cobertura de jornais tradicionais e, o que é mais grave, questionam a própria utilidade da mídia independente.
A proposta dos meios kirchneristas é implantar o que chamam de “jornalismo militante”, que prega a ideia de que o compromisso do jornalismo deve ser com “causas”, citando explicações da professora da faculdade de comunicação de La Plata, Florencia Saintout.
Intelectuais como ela se defendem dizendo que, como o jornalismo nunca é objetivo, é melhor escolher de uma vez um lado da trincheira.
As “causas” do jornalismo militante, obviamente, não são quaisquer causas. Em essência, coincidem com as bandeiras do governo.
O governo já anunciou que reforçará a execução da Lei de Meios, que tirará poderes de grupos como o Clarín e dará mais espaço a “meios militantes”.
Os próximos quatro anos serão, portanto, um desafio para o jornalismo independente, essencial para o funcionamento das instituições da Argentina.
Cristina, que dá sinais de que prefere se alinhar ao Brasil de Dilma, mais do que à Venezuela de Chávez, deveria baixar o tom contra a imprensa independente.
Nada a fará mais parecida com o líder venezuelano do que acuar o jornalismo e fazer com que jornalistas tenham vergonha de declarar o que fazem em público.
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A primeira coisa na qual o leitor de qualquer ideologia e posição política pensa, ao término de um relato como esse, é no que acontece aqui no Brasil. É impensável um clima como esse por aqui apesar de a comunicação brasileira estar estruturada de forma análoga à que sempre vigeu na Argentina, mas que agora começa a mudar.
Nunca é demais repetir que a Argentina tem a sua Globo (o Grupo Clarín), que, como a congênere brasileira, cresceu, enriqueceu e enraizou-se naquela sociedade exatamente como o grupo empresarial da família Marinho, ou seja, sob as mãos amigas de uma ditadura sangrenta e às expensas do Erário.
A concentração de propriedade de meios de comunicação nas mais diversas plataformas na Argentina ainda permanece análoga à que vige no Brasil, pois através de recursos à Justiça os oligopólios midiáticos daquele país vêm postergando o que fatalmente ocorrerá se não sobrevier alguma ruptura institucional: os barões da mídia de lá terão que se desfazer de parte de seus impérios.
Note o leitor, então, que a correspondente da Folha refere-se à redução do oligopólio no país vizinho como se fosse um mal:
“O governo já anunciou que reforçará a execução da Lei de Meios, que tirará poderes de grupos como o Clarín e dará mais espaço a meios militantes”
Poderes? Notou o ato falho, leitor? Como, poderes? Imprensa tem que ter “poderes”?
Um meio de comunicação tem que ter prestígio, credibilidade, até recursos financeiros para bem cumprir o seu papel de informar, mas não tem que ter poderes, por exemplo, para derrubar ministros ou para vetar, modificar ou até fazer aprovar políticas públicas.
Apesar disso, há que refletir não apenas sobre a forma como o Estado vem sendo usado na Argentina por um grupo político que assumiu o poder legitimamente, diga-se, mas sobre se é isso o que queremos aqui.
Até porque, o uso do Estado por grupos políticos está ocorrendo em importantes países sul-americanos extra-Brasil, países que concentram, de longe, o maior contingente populacional da região, à exceção do nosso. Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela, principalmente, aprovaram legislações para as comunicações que, por aqui, seriam impensáveis.
Para entender por que é questionável que um governo use o Estado para fins políticos, porém, basta refletir que todo governo ocupa o poder por um período pré-determinado, um período que tem começo, meio e fim. Reflitamos, então, sobre o que aconteceria se o grupo político do qual você não gosta vencesse a eleição seguinte e passasse a controlar a máquina de comunicação que montou o governo anterior.
Imagine, leitor, se por uma dessas desgraças que acontecem o tempo todo o PSDB vencesse a eleição de 2014 e o eleito fosse ninguém mais, ninguém menos do que ele, o dito “Coiso”. José Serra já tem toda a grande imprensa a seu favor. Agora imaginemos o que aconteceria se controlasse também a TV pública e ainda podendo discriminar à vontade os adversários na distribuição de verbas oficiais.
Por isso jamais surgiu um grande meio de comunicação de esquerda no Brasil, porque a direita sempre governou e privilegiou os veículos que lhe eram simpáticos doando-lhes quantidades monumentais de recursos.
Nesse ponto surge a reflexão de que se a direita voltar ao poder não hesitará em fazer exatamente isso, usará o Estado como se fosse seu dono, de forma que a centro-esquerda deveria fazer o mesmo antes que o eleitorado cumpra o ciclo ideológico atual e devolva o poder aos conservadores, como ocorreu há pouco no Chile.
Essa é uma questão polêmica que precisa ser muito bem refletida e que jamais foi discutida adequadamente inclusive pelos setores que militam pela democratização da comunicação no Brasil: se for montada uma máquina comunicacional para este governo se contrapor à oposição midiática, assim que a direita recuperar o poder além de ter toda a mídia “independente” poderá usar a mídia estatal construída pelo antecessor.
Além disso, esta reflexão vale para vermos como os governos hispânicos da América do Sul vêm enfrentando o cartel internacional midiático-conservador que manteve esta região nas mãos da direita por praticamente todo o século passado.
Cristina Kirchner ainda terá que comer muito arroz e feijão para democratizar a máquina midiática que a direita erigiu na Argentina ao longo de décadas e mais décadas. Esses grupos, como os daqui, têm muito dinheiro, têm uma legião de amigos no judiciário, inclusive. Mas, como mostra o relato da correspondente da Folha, esse poderio está sendo minado.
O problema é a forma, não o conteúdo. Particularmente, este blog prefere que a democratização da comunicação não se dê através do uso do poder do Estado pelo governo de turno, mas para criar alternativas de informação em número e pluralidade de pensamento suficientemente amplificados para acabar com o pensamento único vigente.
O Brasil não carece, pois, de que seja erigido um império estatal de comunicação, mas de que seja terminantemente proibida a concentração de propriedade desses meios, sendo vetada a posse simultânea de jornal, revista, tevê, rádio, portal de internet, tevê a cabo e de empresas de telefonia, como acontece por aqui e ainda acontece na Argentina, apesar da lei de meios.
É preciso instilar bom senso não apenas no sectarismo que pede que o Estado seja usado politicamente pelo grupo que o controla, mas nesses grandes meios de comunicação que praticam o mesmo jornalismo militante que denunciam, só que com sinal trocado e sendo menos honestos ao não admitirem que têm lado.