STF pode pôr fim às aspirações racistas de DEMóstenes e cia.
Se tudo correr bem, o Supremo Tribunal Federal deve confirmar uma tendência libertária que vem marcando as decisões da Corte nos últimos tempos, como nos casos das sentenças proferidas em favor da união civil entre homossexuais e da interrupção de gravidezes de fetos anencéfalos. Só que será uma decisão mais fácil por razões que passo a expor.
Antes, porém, vale dizer que tais decisões progressistas do STF mostram a importância de o país eleger governos progressistas em um país em que vige a insanidade de ser dado ao Poder Executivo a prerrogativa de organizar a Justiça de acordo com a sua ideologia e os seus interesses.
A Corte julgará a constitucionalidade das cotas “raciais”, um questionamento que só foi possível devido a um partido de meliantes como o Democratas, com seus Arrudas e Demóstenes, reflexos de uma agremiação que simboliza e congrega o que há de pior na política brasileira.
Quem não se lembra da verborragia meliante de Demóstenes contra as cotas em 2010, em audiência no Supremo em que lhe coube proferir um dos discursos racistas mais repugnantes de que tive conhecimento.
Naquela ocasião, o serviçal do chefão Carlinhos Cachoeira, travestido de parlamentar, culpou os negros pela própria escravidão e caricaturou uma medida libertária que, se perdurar, poderá minimizar uma das anomalias mais gritantes do racismo à brasileira, a quase inexistência de médicos afrodescendentes neste país.
Sempre que encontro um racista que mascara seus demônios interiores com o discurso abjeto de que seria racista uma medida destinada a libertar os negros da barreira que os impede de chegar ao ensino superior, o vestibular, pergunto quantos médicos negros brasileiros aquela pessoa conheceu na vida.
A reação é sempre a mesma. A pessoa para por alguns segundos para refletir e, invariavelmente, conclui que não se lembra de ter conhecido algum – ou, no máximo, diz que, alguma vez, conheceu um, como se tivesse tido o privilégio de ter visto um espécime raro.
Muita falácia foi tecida contra as cotas, sempre por elaboração da imprensa, que, como bem disse o colunista Elio Gaspari em artigo publicado nesta quarta-feira em O Globo e na Folha de São Paulo, “No século 21, como no 19, todos os grandes órgãos de imprensa posicionaram-se contra as cotas”.
Como bem lembrou o colunista, a imprensa brasileira tentou impedir a libertação física dos escravos assim como hoje tenta impedir a libertação intelectual dos descendentes deles, que só ocorrerá através da educação.
O governo Lula teve a coragem de trazer para o Brasil uma política pública oriunda dos Estados Unidos, conhecida como ação afirmativa (as cotas “raciais”), que permitiu que, hoje, já existam alguns médicos negros.
A imprensa, em reação, erigiu uma série de “argumentos” absurdos para impedir que os afrodescendentes chegassem ao ensino superior, tirando dos brancos ricos a primazia de estudarem em boas universidades públicas, uma barbaridade social que em Estados reacionários como São Paulo ainda obriga negros pobres a custearem o estudo deles.
Primeiro, inventaram a tese de que negros pobres chegarem à universidade reduziria o “padrão acadêmico” e de que, por serem estudantes inferiores, os negros seriam discriminados no mercado de trabalho ao se formarem.
Esse “argumento” virou pó. Os estudantes cotistas mostraram seu valor e superaram os não-cotistas brancos em todos os aspectos, seja nas notas ou na permanência nos cursos, pois os filhinhos de papai que ingressam no ensino superior via vestibular abandonam muito mais as vagas, talvez até por não darem valor àquilo que, para os pobres, é um tesouro.
A confirmar a afirmação de Gaspari sobre o racismo midiático que fez toda a grande mídia estabelecer uma cruzada contra as cotas, editorial de O Globo desta quarta-feira esgrime com o pouco que restou de argumentos contra a política afirmativa.
O editorial se vale de uma mentira inquestionável. Afirma que a política de cotas é só para negros e não, também, para pardos. Não é verdade. A política afirmativa serve para afrodescendentes e se baseia, inclusive, também em critérios econômicos.
O texto também diz que, no Brasil, seria “difícil” distinguir negros de brancos. Outra falácia que pode ser facilmente desmontada com uma mera visita aos salões das elites como os clubes de classe média alta de São Paulo, onde os examinadores raciais conseguem distinguir muito bem quem é descendente de negro de quem não é.
Na hora de discriminar, os redutos da elite branca não têm a menor dificuldade para distinguir brancos de não-brancos.
Conheço uma das poucas famílias mestiças que venceu na vida em São Paulo e que reside em um dos bairros mais elegantes da cidade. O casal e seus filhos têm pele cor de jambo, mas mantêm os cabelos e os traços faciais característicos dos afrodescendentes.
Apesar da excelente condição financeira, jamais conseguiram se associar a um dos clubes paulistanos mais caros.
Certa vez, perguntei ao amigo por que não denunciou o racismo de que ele e sua família eram vítimas e a resposta foi a de que, se empreendesse uma cruzada como essa, até o seu excelente emprego seria posto em risco.
Esse cidadão, por conta de sua condição social e da sustentabilidade de seu ganha-pão, confidenciou-me que precisa se apresentar como um “negro de alma branca” em um estrato social em que negro bom é aquele que combate as cotas e nega que exista racismo no país.
A questão das cotas “raciais”, portanto, simboliza quanto racismo ainda há no Brasil. E mostra que a política afirmativa pode começar a miná-lo, ensejando um futuro em que a propaganda ou as novelas, por exemplo, deixarão de mostrar um país artificialmente branqueado como o que detectou recentemente a romancista moçambicana Paulina Chiziane
Segundo Paulina, o povo de Moçambique tem medo do Brasil. Sua declaração foi feita durante o seminário “A Literatura Africana Contemporânea”, que integrou a programação da 1ª Bienal do Livro e da Leitura em Brasília.
Ela abordou a presença brasileira em Moçambique via templos religiosos e telenovelas que, em sua opinião, transmitem uma falsa imagem do país. Suas palavras resumem o fenômeno que explica por que a mídia brasileira é tão visceralmente contra as cotas.
—–
— Para nós, moçambicanos, a imagem do Brasil é a de um país branco ou, no máximo, mestiço. O único negro brasileiro bem-sucedido que reconhecemos como tal é o Pelé. Na grande maioria das telenovelas, no topo da representação social estão os brancos. Esta é a imagem que o Brasil está vendendo ao mundo (…)
—–
Fatalmente aparecerá algum racista para lembrar que alguma novela permitiu que algum negro fosse representado de forma diferente, fingindo ignorar que foi uma exceção à regra e que era um personagem isolado, o tal “negro de alma branca” idealizado pela mídia.
Com efeito, a propaganda e as novelas brasileiras são um escândalo. Sempre digo que, se tirarmos o som e as legendas da televisão e mostrarmos apenas as imagens a um estrangeiro pedindo a ele que diga em que país se passam aquelas cenas, certamente dirá que pertencem a algum país nórdico.
O mais doloroso em tudo isso são alguns raros negros ou afrodescendentes bem-sucedidos que se dispõem a atacar iniciativas como as cotas. São os tais “negros de alma branca” aos quais os brancos racistas se referem quando querem apontar aquele negro como merecedor de uma oportunidade por concordar em não denunciar o racismo no Brasil.
Isso tudo ocorre em um país em que a maioria da população descende de negros, o que explica pesquisa Datafolha que detectou que 65% dos brasileiros são a favor das cotas. Aliás, essa pesquisa explica por que o ex-presidente Lula desfruta de popularidade tão grande.
Essa maioria de nosso povo que apóia as cotas, vale explicar, é composta pela quase totalidade dos afrodescendentes e por um contingente reduzido de brancos, segundo as pesquisas.
Os brancos que apoiam as cotas “raciais” se equiparam aos abolicionistas do século XIX que combateram a imprensa e as elites racistas e, assim, conseguiram fazer com que o Brasil deixasse de ser o único grande país em que vigia a escravidão. O mais doloroso de tudo isso é que mais de um século se passou e a guerra ao racismo ainda está longe do fim.