Entrevista de Lula a jornal espanhol foi distorcida. Leia a tradução

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“Lula da Silva, herói para o povo e vilão para a Justiça”. É assim que o diário espanhol “El Mundo” define Lula antes de apresentar sua entrevista feita no domingo com o ex-presidente. Porém, a Folha de São Paulo fez uma edição tendenciosa da entrevista. Distorceu uma declaração de Lula sobre Dilma como se a tivesse atacado. Não foi bem isso. Só lendo a íntegra da entrevista para entender.

EL MUNDO

Entrevista com o ex-presidente brasileiro Lula da Silva: ninguém sabe cuidar do povo necessitado como eu

AGNESE MARRA

São Paulo

22 OCT. 2017 03:47

CANDIDATO EM 2018: “Aos 72 anos, quero voltar a ser presidente para mostrar ao mundo que o Brasil pode funcionar”

CORRUPÇÃO: “O processo a que estou submetido é uma farsa. Nem a Polícia Federal nem o Ministério Público encontraram provas”

VENEZUELA: “Não entendo por que a Europa se preocupa tanto com Nicolás Maduro. Ele foi eleito democraticamente”

CATALUNHA: “Entendo perfeitamente que o nacionalismo catalão tem uma longa história, mas eu prefiro a Espanha unida”

FELIPE VI: “Em uma situação de tensão como a que estão vivendo na Catalunha, o rei não deveria tomar partido, apenas mediar”.

DONALD TRUMP: “Não se pode governar o mundo pelo Twitter. Surpreende que fale de tudo em um país como os EUA”

Lula da Silva, herói para o povo e vilão para a Justiça

Olha nos meus olhos, sorri e dá um murro na mesa ao dizer que o Brasil tem solução. Ao “presidente mais popular do planeta” – como dizia Obama – pesa um passado de glórias, um presente de acusações e um futuro com dois objetivos: voltar a governar e provar sua inocência.

El Mundo – Quando o senhor deixou a Presidência, em 2010, o Brasil estava em pleno crescimento, 32 milhões de pobres ascenderam de classe [social], a Petrobrás era um dos motores da economia… O que aconteceu para que o país tenha dado esse giro de 180 graus?

Lula – O que nos aconteceu é que jogamos no lixo a palavra mágica: credibilidade. Um cenceito que vale para a família, para o bairro, para uma equipe de futebol. Quando quem governa fale o povo não acredita, as coisas não acontecem.

El Mundo – Quando foi perdida essa credibilidade?

Lula – Até 2013, o país crescia, tinha pleno emprego, mantinha as políticas sociais, preparávamos a Copa do Mundo, os Jogos Olímpicos, mas no mês de junho ocorreram aquelas manifestações que foram como o 15M da Espanha ou uma espécie de Primavera Árabe brasileira.

El Mundo – Desde então, sociólogos e politólogos analisam junho de 2013. Vocês souberam entendê-lo?

Lula – Confesso que ainda não sei interpretar o que aconteceu porque naquele momento a presidenta Dilma tinha uns 75% de popularidade. Aconteceram coisas que escaparam do nosso controle, como a manipulação que a mídia fez das mobilizações. As televisões convocam as manifestações, chegaram a retirar a novela da noite do ar para cobrir o povo na rua. Em toda a história de mobilizações do Brasil a mídia nunca se havia comportado daquela forma.

El Mundo – As pessoas reivindicavam melhor educação, mais investimentos em hospitais, menos gastos com grandes eventos…

Lula – A educação e a saúde viviam um de seus melhores momentos. É claro que as pessoas têm direito de exigir, mas a situação atual está muito pior e ninguém sai à rua para protestar porque a mídia não incita.

El Mundo – Porém, vocês reconhecem erros do governo Dilma Rousseff?

Lula – Sim, é claro que falamos. Nosso maior erro foi exagerar nas políticas de desoneração fiscal das grandes empresas. O Estado deixou de arrecadar para beneficiar as empresas e em 2014 saia mais dinheiro do que entrava.

Entre 2011 e 2014 foram desonerados 428 bilhões de reais (114 bilhões de euros) e quando Dilma tentou acabar com essa ajuda o Senado não deixou.

O segundo erro veio quando a presidenta anunciou o ajuste fiscal e traiu o eleitorado que a elegeu em 2014, ao qual prometemos que manteríamos os gastos (sociais). Assim, começamos a perder credibilidade.

O ano de 2015 foi muito parecido a 1999, quando Fernando Henrique Cardoso tinha uma popularidade de 8% e o país havia quebrado três vezes. Porém, nessa ocasião o presidente da Câmara era Michel Temer e ele ajudou a governar. Nós tínhamos Eduardo Cunha, que se encarregou de rejeitar cada reforma que Dilma propunha.

Foi ele (Cunha) quem impulsionou um impeachment ilegítimo. Tínhamos o inimigo em casa.

El Mundo – O senhor se arrepende de não ter se candidatado [a presidente] em 2014 [no lugar de Dilma]?

Lula – Não me arrependo porque antes de tudo sou leal à democracia e a Dilma Rousseff. Ela era a mandatária e tinha o direito de ser reeleita. Porém, pensei [em me candidatar] muitas vezes e, que eu saiba, Dilma também [pensou na minha candidatura]. O que acontece é que não sou o tipo de pessoa que se lamenta. Há que olhar para frente. Quero voltar a ser presidente para mostrar ao mundo que o Brasil pode funcionar.

El Mundo – Como futuro candidato do PT nas eleições de 2018, qual é sua fórmula para recuperar o país?

Lula – O Brasil tem que voltar a ser  governado pensando na maioria e não em uns poucos, por isso a primeira coisa que penso propor é um referendo revogatório de muitas das medidas aprovadas por Michel Temer.

É criminoso ter uma lei que limita durante 20 anos a possibilidade de investimento do Estado. No Brasil ainda faltam coisas básicas como saneamento, tratamento da água, residências.

Temos um potencial de investimento em infraestrutura que pode resolver boa parte da [falta] de geração de empregos e recuperar a economia.

O Brasil não depende nem dos EUA, nem da China, mas de suas próprias decisões. Quando os pobres voltarem ao orçamento do Estado, o país voltará a crescer e recuperaremos a confianza internacional. O capital é covar e só virá quando souber que pode ganhar.

El Mundo – A reação dos mercados ante o governo Temer foi mais positiva que com os últimos anos de [Dilma] Rousseff…

Lula – Claro, pretendem privatizar o país. Só que há que ver o que querem fazer com a Petrobrás. O petróleo era nosso passaporte para o futuro. Se for vendido, nos deixarão sem soberania. É uma pena que destruam assim a nossa empresa.

El Mundo – Para muito, o que a destruiu foi a corrupção e os desvios milionários de dinheiro que ocorriam na petroleira…

Lula – Suponhamos que tenha sido assim. Que prendam todos os corruptos, mas que não quebrem a empresa e acabem com o trabalho de milhares de pessoas.

El Mundo – O senhor pretende se candidatar nas eleições de 2018 e tem uma condenação em primeira instância de nove anos de prisão por lavagem de dinheiro e corrupção passiva relacionada ao escândalo da Petrobrás.

Lula – Candidato-me aos 72 anos porque há muita gente que sabe governar, porém ninguém que saiba cuidar do povo mais necessitado como eu cuido. Conheço suas entranhas, como vivem, o que necessitam.

Se achavam que uma condenação me faria desistir de ser candidato, conseguiram o efeito contrário.

O processo a que estou submetido é uma farsa. Nem a Polícia Federal, nem o Ministério Público encontraram uma só prova para me acusar. Por isso, digo que a sentença do juiz Sergio Moro é eminentemente política.

No primeiro julgamento disseram que havia um apartamento na praia e que nele havia dinheiro da Petrobrás. Quando entramos com um recurso, o mesmo juiz que me condenou depois disse que nunca havia dito que o apartamento era meu e que tinha dinheiro da Petrobrás. Então, s e não é meu, não tem dinheiro da Petrobrás, por que me condenaram?

A única resposta que tenho é que fazem isso porque são reféns da imprensa. Hoje, no Brasil, a mídia tem mais poder que o Ministério Público e pela primeira vez um juiz se comporta de acordo com a opinião pública.

Encontraram dinheiro na casa de Aécio neves, na do governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, e na do ex-ministro Geddel Vieira Lima, mas na minha casa não encontraram nada. Vasculharam contas em bancos de todo o mundo para encontrar algum desvio de dinheiro e [não encontraram] nada. Porém, de manhã, de tarde e de noite a impresna me destrói e se nega a publicar que não há provas contra mim.

El Mundo – Porém, Antonio Palocci, q eu foi seu braço direito, disse ao juiz Moro, há algumas semanas, que o senhor havia lhe dito que fizera um “pacto de sangue” com a Odebrecht, uma das principais construtoras acusadas de desvio de dinheiro da Petrobrás.

Lula – A única verdade que o Palocci disse é que queria o benefício da lei. Uma  delação como essa, sob pressão, com pessoa presa que acusa estando presa, não pode ser aceita pelas instâncias superiores da Justiça. Não se pode encarcerar um cidadão durante três anos e oferecer-lhe liberdade ou redução da pena em troca de que conte algo que não sabe.

Vários advogados me disseram que o Ministério Público disse a seus clientes que a delação só seria aceita se tivessem algo contra Lula. Primeiro me julgaram por um apartamento que não é meu e me condenaram. Agora, julgam-me por um terreno do Instituto Lula que tampouco me pertence, depois vai ser por uma casa de campo que tampouco é minha. Logo, por umas obras no estádio do Corinthians…

Assim, todos os dias inventam algo, porém eu sigo liderando as pesquisas eleitorais. O povo confia em mim porque sabe quem sou e o que fiz por ele. Tenho o apoio da minha honra e da minha honestidade. E aos 72 anos não tenho o direito de ficar nervoso.

Eles fazem seu jogo e eu faço o meu. Eles me acusam através da imprensa e eu me defendo com o povo. É uma pena o que está fazendo a mim e à minha família. Todo esse processo apressou a morte da minha mulher. A polícia invade a casa dos meus filhos e não encontram nada, porém não pedem desculpas.

El Mundo – O senhor se sente mais próximos dos populistas latino-americanos ou da social democracia europeia?

Lula – Respeito a social democracia europeia, é exemplo de Estado do Bem Estar, da defesa dos direitos dos trabalhadores, mas, no Brasil, construímos o Estado à nossa maneira, nem melhor, nem pior.

Sobre “populismo latino-americano”, acho uma bobagem. Que significa ser “populista”? Falar a língua do povo e defendê-lo? Numa me considerei um populista, mas, sim, um presidente extremamente popular.

El Mundo – O Partido dos Trabalhadores disse que apoiava incondicionalmente o governo de Maduro, porém o senhor se manteve calado.

Lula – Não dou nenhum apoio incondicional. Há muitas coisas com as quais não estou de acordo com Maduro, como com presidentes de outros países. Defendo para a Venezuela o mesmo que para o Brasil, que conduza seus assuntos sem ingerência externa. Não entendo por que a Europa se preocupa tanto com Maduro. Ao fim e ao cabo, foi eleito democraticamente e os venezuelanos terão que resolver seus problemas entre eles.

El Mundo – E o que me diz de [Donald] Trump?

Lula – Sou muito cuidadoso na hora de analisar as pessoas. Posso dizer que me surpreende que o presidente de um país do tamanho e da importância dos Estados se ponha a falar de tudo. Há coisas que tem que dizer a um funcionário de Estado, a um secretários, quem sabe seja porque acaba de chegar e ainda le faltam coisas para aprender. Porém, não se pode governar o mundo pelo Twitter.

El Mundo – Qual é sua opinião sobre a situação da Catalunha?

Lula – Como deve acontecer com vocês, o primeiro que me vem à cabeça é dizer como é complicado falar desse assunto. Normalmente, as teses separatistas sucedem as regiões mais ricas, os pobres nunca quiseram separar-se.

Entendo perfeitamente que o nacionalismo catalão tem uma longa história, porém prefiro uma Espanha unida. E, quem sabe, me atreveria a dar um conselho ao Rei [de Espanha], quem conheço e por quem tenho muito carinho: em uma situação de tensão como a que estão vivendo, ele não deveria tomar partido. Seu papel é de mediador. É um papel mais simpático e que diz respeito a um rei.

El Mundo – Na semana passada, o senhor disse que Lula era mais que uma pessoa, era uma ideia assumida por milhões de pessoas. Que quis dizer com isso?

Lula – O que quis dizer é que além da minha pessoa, Lula é uma ideia de que os pobres podem ter acesso a bom emprego e salário digno, a entrar na universidade. Sempre digo que o melhor efeito do meu governo não foram as obras que fiz, mas fazer o povo descobrir que podia ser o sujeito da história.

El Mundo – Se o condenarem em segunda instância e não puder se candidatar nas eleições [de 2018], o PT terá alguma chance sem Lula da Silva?

Lula – Espero poder me candidatar, mas ninguém é imprescindível. Há milhares de Lulas.