Xico Calmon e João Dornelles: A esperança contaminada
Por Xico Calmon e João Dornelles
Quanto mais a esperança reside no Judiciário e, em especial, no STF, mais lamentamos as escolhas desastrosas dos governos Lula e Dilma para as instâncias superiores do Judiciário. De forma cuidadosa e também introvertida, essa questão é abordada nos meios políticos e jurídicos, de viés democrático, porém, é de tal gravidade essa questão, pois encobre ignorâncias e concepções metafísicas da história, que deveria ser analisada e debatida abertamente, com o peso do erro e da consequente autocrítica, no sentido de tirar lições para não mais repetir, porque o risco persiste.
O Judiciário é um poder que não emana do povo, é produto da meritocracia e do corporativismo – os quintos, do MP e da OAB. Sem advir da soberania popular é, entretanto, o epicentro ideológico da luta de classes. Nele, especialmente no STJ e STF, reside a última palavra relativa aos interesses e direitos, tanto dos cidadãos trabalhadores, quanto dos cidadãos capitalistas, e de suas respectivas organizações representativas.
A esfera jurídico-política se apresenta na superestrutura de um modo de produção da vida social, em última instância condicionada pela infraestrutura material. É reservado à instância jurídico-política a função de mediar as relações materiais (luta de classes) e participar no aparato de afirmação da ideologia burguesa.
O Estado localiza-se na esfera superestrutural, cuja gênese foi para ordenar essa luta de classes, minimizando-a, conciliando-a, originalmente atendendo interesses da classe dominante, a qual não interessa o acirramento das contradições no seio da sociedade, o que poderia levar a um estado de conflito permanente e instabilidade. Tal forma de Estado de classe, ou o Estado Restrito, foi constatado pela reflexão de Marx, sob às condições do capitalismo do Século XIX e início do Século XX.
Foi Gramsci que possibilitou perceber as novas condições do capitalismo nas sociedades industriais do século XX, com a “Ampliação do Estado”, que passa das condições de Estado de classe, ou “comitê central de administração dos interesses gerais das classes dominantes”, para um Estado Ampliado sob o domínio hegemônico das classes dominantes.
Ou seja, hegemonia de classe que garante o controle político e ideológico do conjunto da sociedade. As classes dominantes passam também a ser hegemônicas, garantindo a sua dominação e opressão de classe não apenas com o aparato repressivo do Estado, mas também com os instrumentos ideológicos de hegemonia (meios de comunicação de massa, igrejas etc). Portanto, um Estado em que a luta de classes perpassa todos os espaços da sociedade e onde o Estado é entendido como Sociedade Política mais Sociedade Civil.
Assim, o aparato burocrático do Estado, nas sociedades democráticas dos séculos XX e XXI, passou a ser um espaço de luta que vai mais além do que a expressão legal – jurídica e policial – dos interesses de uma classe social, a dos proprietários dos meios de produção.
Os instrumentos do controle social nas sociedades contemporâneas apresentam no sistema penal as políticas de segurança pública do aparato burocrático do Estado como o braço repressivo da burguesia, atuando em conjunto com outros meios de controle e dominação das classes populares através da submissão ideológica e repressiva.
Assim, o corpo de funcionários do aparato do Estado é orientado, através do desenvolvimento organizacional, no sentido de perpetuar as condições de exploração e opressão vividas na infraestrutura. O Direito, por sua vez, configura-se como fenômeno social e político, surgido das contradições da base econômica.
Para Marx, o Direito é percebido como síntese de um processo dialético incessante, histórico, dos interesses antagônicos das classes sociais. (O poder econômico não se dá somente sobre o Direito, atinge também a cultura, a educação e as relações sociais, onde é disseminado a ideologia dominante). De maneira que a dominação econômica de uns poucos sobre milhões de outros se legitima por intermédio de um Estado de Direito. E o Direito só pode ser encarado como instrumento pacificador dos conflitos sob a perspectiva ideológica de uma homilia do poder burguês, logo, não é neutro e nem descomprometido em relação aos interesses de classes, estando diretamente ligado à práxis.
Por isso mesmo, quando uma revolução vai triunfando, as primeiras mudanças acontecem na esfera jurídica, como ocorre na Venezuela, a legislação vai mudando consoante às mutações na correlação de forças das classes em contenda. Conhecer basicamente economia, história e direito é essencial para o político de esquerda. O desconhecimento basilar vai levar a cometer erros que serão determinantes em situações de formulação e gestão.
As escolhas desastrosas dos ministros da principal Corte do Poder Judiciário não é produto de quem tinha a incumbência de escolher e escolheu muito mal, pois seria reconhecer que a questão é de percepção subjetiva e, neste caso, errar humano é, e poderia ser repetido ao longo do tempo. Inobstante a percepção ter muita valia, o processo de escolha é que vai ser determinante, e em sua falta, aí, sim, só vale a percepção. E num processo de seleção subjetivo, a fragilidade aumenta à medida das inevitáveis pressões. Dos atuais ministros do STF sete foram indicados pelos governos Lula e Dilma. Um número significativo também foi indicado para o STJ.
Ou seja, é muita percepção errada, e provavelmente continuaria se Dilma não tivesse sofrido o golpe, talvez chegasse a 90% de indicações nas instâncias superiores de adversários ideológicos e políticos dos interesses da classe trabalhadora.
Não se trata de, como ocorre na sacristia política do PT, dizer que, se tivesse sido outros que fizeram parte da lista entregue a Lula ou a Dilma, não teria havido o golpe. Há os ressentidos, por não terem sido selecionados, que estão sempre lembrando isso, mas não cremos que seja por aí a causa maior, afinal, até ex-filiados do PT já foram escolhidos e o poder os corrompeu e ou chantagens os abateram em suas dignidades de outrora.
A ausência de critérios, de um modo transparente no processo de escolha e, principalmente, de um entendimento do papel desempenhado pelo Direito (e suas agências e instituições) no processo político da luta de classes é a causa maior.
Em algum momento a esquerda voltará ao governo e, espera-se, voltará mais amadurecida. Contudo, não basta conquistar o poder de parte do aparato burocrático de Estado (no caso, o Executivo), é imprescindível que desde já comecemos a estruturar um modelo de escolha menos subjetivo e mais criteriosamente objetivo, menos sujeito a lobby e mais sujeito a preenchimentos de quesitos políticos, ideológicos e históricos pregressos.
Xico Celso Calmon é ex-combatente da ditadura militar, tendo atuado como dirigente e militante da AP, NML, COLINA, VAR-Palmares. Profissional de Administração de Empresas, públicas e privadas, Advogado e Analista de TI. É membro da coordenação da FPB-ES e do Fórum Memória, Verdade e Justiça. Autor dos livros “Sequestro Moral e o PT com isso”, e “Combates Pela Democracia”, e coautor dos Livros “Resistência ao golpe de 2016” e “Uma Sentença anunciada – o processo Lula”
João Ricardo Dornelles é Doutor em Serviço Social – Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001). Mestre em Direito – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1984). Graduado em Direito – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1979). Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio. Coordenador-Geral do Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Membro do Instituto Joaquín Herrera Flores. Membro Fundador e Diretor Nacional da ANDHEP (Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e Pós-graduação). Ex-membro da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Pesquisador da Cátedra Unesco/PUC-Rio “Direitos Humanos e Violência: Governo e Governança”. Ex-Diretor do Departamento de Direito da PUC-Rio (2002-2005). Membro Fundador da Red Latinoamericana de Derechos Humanos y Seguridad Pública. Membro do Instituto Carioca de Criminologia. Tem experiência acadêmica (pesquisa e docência) na área de Direito Público, Criminologia, Direitos Humanos e Sociologia Jurídica (ênfase em Direito Público).
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