Para filósofo americano, Bolsonaro “ameaça a democracia”

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Francis Fukuyama  é um filósofo e economista político nipo-estadunidense e um dos ideólogos do governo Ronald Reagan e mentor intelectual de Margaret Thatcher Doutor pela Universidade de Harvard na Universidade Johns Hopkins, fala à Folha de SP sobre eleições no Brasil. Vale ler

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FOLHA DE SÃO PAULO

Ele ficou mundialmente conhecido em 1989, ao lançar um artigo intitulado O Fim da História, transformado em livro em 1992, chamado de “O Fim da História e o Último Homem”, tornando-o milionário. Atualmente vive em Palo Alto, e leciona estudos internacionais na Universidade Stanford.[1][2]

Bolsonaro é uma ameaça à democracia, diz Francis Fukuyama

Em entrevista à Folha, cientista político fala sobre riscos da ascensão de líderes populistas nacionalistas

22.abr.2018 às 2h00

Uirá Machado

Em entrevista à Folha, célebre pensador fala sobre riscos que a democracia enfrenta com a ascensão de líderes populistas nacionalistas, tema presente em seus últimos escritos.

Os dias de certeza de Francis Fukuyama há muito ficaram para trás. No final da década de 1980 e nos anos 90, o autor do célebre ensaio “O fim da história?” (1989) parecia convencido de que a democracia liberal representava o ápice da evolução ideológica da humanidade e se universalizaria como forma de governo.

Passadas quase três décadas do artigo de 18 páginas na revista “The National Interest” (o interesse nacional), Fukuyama está preocupado. Ainda acredita na sobrevivência da democracia, mas considera que a ascensão de líderes populistas nacionalistas —Jair Bolsonaro (PSL) entre eles— constitui sério risco para o sistema político e econômico que se difundiu no Ocidente.

fukuyama de braços cruzados
O cientista político Francis Fukuyama no campus da Universidade de Stanford, onde trabalha, nos Estados Unidos. – Noah Berger – 5.jan.2012/The New York Times
Não lhe faltam motivos para isso, como fica claro em texto escrito para o Instituto de Pesquisa Credit Suisse e distribuído no Fórum Econômico Mundial de Davos deste ano.

O professor de ciência política da prestigiosa Universidade Stanford registra que o número de países democráticos saltou de 35, em 1970, para quase 120 nos anos 2000. A partir de então, a onda começou a refluir.

Do ponto de vista qualitativo, a situação piora. Fukuyama afirma que não se trata só de observar que o apoio à globalização tem sido substituído em muitos lugares por uma ênfase na soberania nacional. O problema é maior porque essa nova tendência ganha força dentro do próprio mundo democrático.

Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Holanda, Hungria e Polônia, cada um a seu modo, são exemplos de países ocidentais nos quais a agenda do nacionalismo populista ganha espaço crescente.

Com a engenhosidade típica de seus livros —sempre best-sellers mundiais—, Fukuyama lembra que a democracia liberal está construída sobre três pilares: um Estado que concentra poder e o utiliza pelo bem dos cidadãos; a igualdade de todos perante a lei; e mecanismos de controle do poder, como eleições livres.

Em seguida, chama a atenção para um aspecto grave: líderes populistas nacionalistas usam esse terceiro pilar para chegar ao poder e, a partir de dentro, corroer os outros dois. Ou seja, a legitimidade do processo democrático transforma-se em arma contra a própria democracia.

riscos com arame farpado em volta
Ilustração – Adams Carvalho
“A única maneira de derrotá-los [os populistas nacionalistas] é criando uma mobilização para vencê-los nas urnas”, afirma Fukuyama em entrevista à Folha, por email.

É fácil falar, difícil fazer. O professor de Stanford sabe que políticos populistas se saem bem na comunicação com os eleitores. Nas redes sociais, tiram proveito da difusão de notícias falsas e da manipulação digital. Há esperança de que a informação verdadeira venha a prevalecer?

“A defesa tradicional da liberdade de expressão depende da percepção de que, num livre mercado de ideias, as melhores vão vencer. Com os algoritmos das redes sociais, isso não é verdade”, diz. “Precisamos de mais curadoria na internet. Precisamos do retorno de editores e outros guardiães da informação, e as plataformas digitais precisam assumir sua responsabilidade.”

A manipulação, entretanto, é apenas parte da história. A depender do país, pode ser majoritária a parcela da sociedade disposta a apostar num candidato populista. Seu apoio “não vem dos pobres, mas de pessoas de classe média que perderam status devido à globalização, ou de grupos étnicos e raciais que deixaram de se sentir culturalmente dominantes”, diz o cientista político.

A dimensão cultural é especialmente relevante. Para Fukuyama, mesmo quando o discurso anti-imigrantes expressa uma disputa por emprego, a motivação não é apenas econômica. “Hegel era um observador melhor do que Marx. Ele viu que a luta por reconhecimento move a história, e não a luta por recursos. Reconhecimento é a grande questão nessa insurreição populista.”

Americanos e europeus conhecem bem esse cenário. Quando o governo acolhe imigrantes ou refugiados, ainda que lhes oferecendo estruturas precárias de assistência, fatias das populações locais reclamam do uso de impostos para benefício de estrangeiros e protestam contra o aumento da competição no mercado de trabalho —sobretudo quando há incentivos aos desfavorecidos.

Mais que isso, interpretam a hospitalidade como falta de reconhecimento a grupos que sempre foram a base da identidade nacional. Isto é, os forasteiros estariam recebendo tratamento melhor do que os responsáveis por manter o país de pé.

Isso não significa que outros fatores devam ser desconsiderados. Desemprego e concentração de renda de fato têm aumentado, e a resposta dos governos chega quase sempre tarde demais para a população.

A análise de Fukuyama é precisa para o contexto americano (Donald Trump) e britânico (Brexit), mas vale também para outros países da Europa e mesmo para o Brasil.

Embora não exista por aqui uma crise migratória, sempre houve problemas econômicos e um Estado ineficiente. Além disso, os mais pobres, ao melhorar de vida, passaram a cobrar mais dos governos e a recear a perda de suas conquistas. Ao mesmo tempo, grupos mais endinheirados, percebendo o movimento de ascensão social das classes baixas, sentiram que talvez deixassem de ser culturalmente dominantes.

Em alguns de seus livros, Fukuyama cita o Brasil. Não dedica grande espaço ao país, mas conhece a história e acompanha eventos importantes, como as manifestações de 2013.

Questionado sobre a possibilidade de o nacionalismo populista ser um risco para o sistema político brasileiro, disse: “Bolsonaro representa uma verdadeira ameaça à democracia. Subjacente a isso, há uma polarização social no Brasil, que transformou em luta ideológica o que começou como campanha anticorrupção”.

Para o professor de Stanford, Estados modernos se caracterizam, entre outras coisas, pelo fato de a lei valer não só para cidadãos comuns mas também para atores políticos relevantes. Por isso atribui grande importância ao combate à corrupção.

Se o país está no caminho certo com os avanços da Lava Jato? “Sim, sem dúvida. O Brasil tem os tribunais mais fortes e independentes da América Latina, bem como uma imprensa livre. Apesar das notícias deprimentes de meses recentes [não disse quais], acho que os brasileiros devem se orgulhar disso.”

Fukuyama, no entanto, preferiu não responder sobre a condenação de Lula (PT): “Esse é um assunto muito complexo que não quero abordar nesta entrevista”. À época da troca de emails, o ex-presidente ainda não tinha sido preso.

RECÉM-LANÇADO NO BRASIL, NOVO LIVRO DISCUTE CAUSAS DA DECADÊNCIA POLÍTICA

Desde que foi projetado mundialmente, em 1989, Fukuyama nunca esteve mais distante das convicções que expressou sob o impacto do esfacelamento da União Soviética e a derrocada do comunismo. As hesitações de agora, contudo, estão longe de configurar uma guinada em sua prolífica carreira intelectual.

A rigor, já no livro “O Fim da História e o Último Homem” (1992), ele matizou as conclusões expostas três anos antes em seu famoso ensaio.

Com o passar do tempo, acrescentou novas cores ao argumento central sobre a universalização da democracia, sem nunca perder a pretensão de realizar uma grande síntese do desenvolvimento político (a palavra “pretensão” vai aqui sem nenhuma carga negativa; as ciências sociais se beneficiariam se existissem mais pensadores com tamanho fôlego e esse tipo de ambição).

Em mais de mil páginas, Fukuyama descreve transições ocorridas nas instituições políticas em todas as etapas da organização humana: do nível de bando às sociedades tribais, destas aos Estados arcaicos e destes aos modernos, com o desenvolvimento de sistemas legais independentes e de instituições de controle.

No segundo tomo, lançado no Brasil em fevereiro, ele argumenta que qualquer regime está sujeito à decadência, um processo que se desenrola por dois motivos principais: descompasso entre as instituições e a dinâmica social, resultando em crescente desconfiança quanto à capacidade de o governo resolver problemas, e a tendência de voltar a uma configuração patrimonialista do Estado, com o favorecimento de grupos de interesse em detrimento do restante da população.

Fukuyama mostra-se convencido de que a democracia liberal é a forma mais capaz de corrigir rumos sem abrir mão do controle social sobre governantes. Por isso, acredita que estejamos vivendo sob simples recessão democrática, e não uma depressão como a que se viu às vésperas do fascismo, do nazismo e da Segunda Guerra Mundial.

A questão, naturalmente, é saber se as correções de rumo chegarão a tempo. Uma questão crucial para os brasileiros —os sinais da decadência política estão em toda parte.

Uirá Machado, 37, bacharel em direito e em filosofia, é editor da Ilustríssima. Foi editor de Opinião, repórter de Poder e coordenador de Artigos e Eventos.

Adams Carvalho, 39, é pintor e ilustrador