Advogada negra algemada em audiência diz que Estado brasileiro é racista
A advogada Valéria Lucia dos Santos, 48, foi algemada por policiais na última segunda-feira (10) durante uma audiência em Duque de Caxias, no estado do Rio. Valéria e a juíza leiga discutiram, porque a advogada exigia ter acesso à peça da defesa. A juíza negou o pedido e chamou os policiais.
Pessoas na sala gravaram vídeos da discussão, mas não é possível ver todos os momentos ou o início do episódio. Segundo a OAB, Valéria estava “absolutamente correta”, e o ato foi uma grave violação. Questionado, o Tribunal de Justiça do Rio disse, em nota, que a juíza leiga pediu a presença de policiais “para conter uma advogada que não havia acatado orientações da magistrada”.
Valéria afirma que sofre diariamente com preconceito no trabalho e não se sente representada no Judiciário. Ela evita, entretanto, associar o seu caso ao racismo.
A OAB-RJ vai entrar com com representação contra os policiais e a juíza. A pedido da ordem, a audiência foi anulada e remarcada para 18 de setembro, quando será presidida por um juiz togado —o juiz leigo é um advogado que auxilia a Justiça em alguns juizados especiais, mas a decisão final é de um juiz togado.
A seguir, o depoimento de Valéria à Folha.
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A ficha do racismo só caiu quando eu estava no chão, algemada. Os policiais me pegaram cada um por um braço na sala de audiência e me arrastaram em pé até o corredor. Não fui violenta com ninguém, só não me movi. Quando chegou do lado de fora da sala, me deram uma rasteira e eu caí sentada. Depois colocaram as algemas.
Nesse momento chegou o delegado da OAB. Ele foi muito firme: “Tira a algema dela agora!”. Os policiais obedeceram na hora. Já eram quatro a essa altura. Aí você pensa: Como é a formação da nossa sociedade? Vamos dar os nomes: tem o senhor de engenho, a senhorinha, o capitão do mato. E quem estava no chão algemado? Eu.
O Estado é racista, entendeu? Mas se eu falo isso é mimimi, é vitimismo, por isso que eu não queria atrelar esse caso a racismo, porque eu não quero ouvir essa resposta. A minha luta ali era garantir o meu direito de trabalhar. O racismo vai voltar a acontecer. Eu tento abstrair, ignoro. Mas não dá para tirar o meu ganha pão.
Naquele dia, a juíza leiga já tinha começado a audiência com uma pergunta não muito amigável. A minha cliente também é negra, e a juíza falou: “vocês são irmãs?”. A cliente respondeu, eu fingi que não tinha ouvido e continuei o meu trabalho.
Episódios assim acontecem quase todo dia, mas muitos colegas não falam porque acham que não vale a pena ou não querem criar problema. Vou dar um exemplo simples. O direito tem várias formalidades. Tem uma cadeira para o advogado e uma para o cliente. Eu sento na cadeira do advogado e os juízes me perguntam: “a senhora é o quê?”. Ou eles falam para os outros advogados na sala que já os conhece, mas eu preciso mostrar a carteira da OAB. Não adianta eu dar o número, preciso mostrar o documento.
Não vou te enganar, eu entro nas audiências e não me sinto representada. A gente está em minoria na estrutura institucional do Judiciário. A última vez que um desses episódios aconteceu, eu me acovardei, não quis arrumar tumulto. Naquele dia em Caxias, decidi que isso não ia se repetir. Eu tinha direito de ver a peça da defesa.
A juíza leiga negou. Eu saí da audiência para buscar o delegado da OAB, mas ele não estava na sala dele. Avisei à atendente. Quando voltei, a juíza tinha encerrado a audiência e me mandou esperar do lado de fora. Me recusei. Disse que eles, como representantes do Estado, não estavam respeitando a lei. Ela decidiu chamar a força policial.
Tanto foi uma violação que a audiência foi remarcada, com um juiz togado. Aquele ato ali, tanto meu, se eu extrapolei, quanto o dela, foi anulado. Na hora eu não chorei, mas por dentro eu chorava. Fiquei muito mal. Quando cheguei em casa, sozinha, desabei.
Na OAB, quando uma outra advogada negra me abraçou e disse que tinha se sentido representada pela minha atitude, também fiquei muito comovida. Não esperava essa acolhida.
No dia seguinte tentei espairecer, fazer a minha corrida em Mesquita, na Baixada Fluminense, onde eu moro. Eu sempre fui atleta. Fiz atletismo e joguei basquete profissionalmente, muito antes do Direito chegar na minha vida. Meu pai era caminhoneiro e minha mãe, costureira.
Na adolescência, fui convidada para jogar no Iguaçu Basquete Clube e no América. Aos 17, me mudei para Santa Catarina para ser atleta em Criciúma e depois em Concórdia. Morava em uma república de jogadoras, treinava de manhã, ia para escola, estudava de tarde e treinava de novo. Recebia um salário, tudo direitinho. Joguei contra a Paula, a Hortência, várias atletas famosas.
Com 24, voltei para o Rio para fazer faculdade. Comecei com fisioterapia, depois mudei para educação física na Universidade Federal Rural. Fui a primeira da família a entrar na faculdade.
Antes de concluir, recebi uma bolsa para estudar e jogar nos Estados Unidos, na Oral Roberts University, em Tulsa, Oklahoma. Morei lá dez anos, casei com um americano e tive dois filhos. Quando fiquei grávida, perdi a bolsa. Fiz um curso técnico e me tornei auxiliar de enfermagem.
Em 2005, minha mãe foi diagnosticada com câncer de pulmão, e eu decidi voltar ao Brasil. Meu casamento já não estava bom, e nos divorciamos. As crianças vieram comigo, conheceram a avó. Retornei para a Baixada e segui com a enfermagem.
Aos poucos, o desejo de terminar a faculdade voltou. A saúde no Brasil estava muito precária e escolhi cursar direito. Passei em uma universidade particular, com o Prouni. Mas me angustiava com a situação dos meus filhos.
Infelizmente, com a implantação das UPPs na cidade do Rio, a Baixada ficou muito perigosa. Meus dois irmãos foram assassinados em Mesquita. Eu olhava para os meus filhos dormindo e pensava: ‘Meu Deus…’ Eles faziam várias atividades, futebol, natação, judô, mas eu tinha aquele receio de mãe. Eu trabalhava muito, fazia faculdade. Pensava: ‘E se eu vacilar, não for tão atenta? Com o tráfico e aquela violência toda…’
O Brasil não investe no ser humano, e eles vão ficando pelo meio do caminho. Tem uns que têm uma força muito grande e, mesmo com todas as dificuldades, conseguem quebrar barreiras. Outros não, e são esses que nós perdemos.
Então na época eu liguei para o meu ex-marido e chegamos a um acordo. Era melhor para os nossos filhos que eles voltassem para os EUA. Não consegui viajar para visitá-los ainda, faz sete anos que não os vejo. Sou advogada autônoma, no começo da carreira, me formei em 2016. Ganho pouco, cerca de R$ 1.500 por mês. Trabalho de casa, em Mesquita, e duas vezes por semana em um escritório de Caxias.
Foi uma decisão radical mandar meus filhos para os EUA, mas foi a melhor opção. Um está começando a faculdade de engenharia, na Carolina do Norte, e o outro está terminando o segundo grau. É difícil para mim falar disso [fica em silêncio, suspira]. Tenho saudade, mas vejo que eles estão evoluindo lá. O mais velho conseguiu uma bolsa de estudos. Então foi doloroso sim, mas valeu a pena.
Como meus pais já faleceram e meus filhos estão fora, a minha referência aqui são os meus tios. Foi com um deles que fui conversar depois do que aconteceu no fórum. Porque as pessoas mais velhas, mesmo sem estudo, são muito sábias. Ele me disse: “Você é igual à sua mãe, não leva desaforo para casa”. E me deu o melhor conselho: “Não abaixa a cabeça, segue em frente”.
Da FSP.