Ano da intervenção de Temer, em 2018 a polícia matou como nunca no RJ
Mantido o ritmo atual dos eventos no Rio de Janeiro, chegaremos ao fim deste ano com duas situações inéditas: nunca, desde 1998, início da série histórica, a polícia terá matado tantas pessoas em confronto; e, paradoxalmente, desde 1994, nunca tão poucos policiais militares terão sido mortos. Se vivemos uma guerra, como muitos PMs fazem questão de frisar, os agentes da lei têm sido bafejados pelas bênçãos dos deuses da batalha.
Até a última terça-feira, com a morte do major Alan de Luna Freire na Baixada Fluminense, 87 policiais militares haviam sido vítimas de homicídio desde 1º de janeiro, uma média de um policial morto a cada 3,8 dias. O que leva à conclusão simples de que pela primeira vez, desde 1994, haverá menos de cem PMs assassinados num ano. Nem no melhor momento das Unidades de Polícia Pacificadora, quando ocorreu uma redução significativa na morte de policiais, chegou-se a um índice tão baixo.
Contando os PMs mortos em serviço, o número, até outubro, estava em 26 casos. Em contrapartida, devido à atuação das tropas federais ligadas à intervenção, desde a tomada de Monte Castelo, em 1945, durante a Segunda Guerra, não havia tantos militares do Exército mortos em combate. Nos Estados Unidos, para efeito de comparação, morreram neste ano 134 policiais, já incluindo aí vítimas de ataques cardíacos e de doenças resultantes do 11 de Setembro, por exemplo.
Na outra ponta da guerrilha urbana, também até outubro (dados do Instituto de Segurança Pública) foram 1.308 homicídios por intervenção legal (ou homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial, ou autos de resistência, vários nomes, vários eufemismos para o mesmo fato). No momento em que você lê este texto, as mortes causadas por ações policiais já ultrapassaram, com folga, o pico histórico de 1.330 registros. E chegarão, sem esforço, aos 1.500 casos. Esqueça maridos com ciúmes, mulheres traídas, o homem comum colhido por um momento de privação de sentidos. Quem mata mesmo, no Rio de Janeiro, são três atores sociais: o tráfico, a milícia e a polícia — esta última, já respondendo por 23% de todas as mortes no estado, incluindo-se aí homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte e latrocínios. Ao apagar das luzes de 2018, provavelmente teremos, a cada quatro mortos, um para a polícia chamar de seu.
Antes de prosseguir, algumas informações: não gosto de bandido. Não, não quero levar um para casa. Definitivamente, não estou com peninha dos traficantes. Sim, acho que criminosos devem ser condenados e presos.
Dito isso, há alguns diagnósticos a fazer. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. A polícia do Rio, a que mais mata no Brasil. Este ano, a reboque da longa fila de homens e adolescentes mortos, a intervenção federal traz uma redução em diversos índices de criminalidade. Visto de longe, num sobrevoo, parece tudo interligado: se são os bandidos que cometem crimes e a polícia está matando bandidos como nunca, ora bolas, os roubos, por exemplo, têm de estar indo ladeira abaixo na mesma velocidade com que os corpos desses terríveis facínoras descem à cova.
Quando a sua vizinha puxa conversa no elevador e diz “a violência está um horror, não?”, ou o motorista do táxi que você pegou reclama da insegurança e afirma que vai sair da cidade, eles não estão se referindo aos estelionatos. Ou casos de vias de fato. Ou de perturbação de cerimônia religiosa. Nem mesmo ao tráfico, ou aos traficantes encarapitados em lajes que o novo governador do Rio promete atingir na cabecinha com tiros de fuzil. A violência que o cidadão sente na pele, no dia a dia, tem a ver com roubos. Estupros. Homicídios.
Pois bem: pegando as áreas dos dez batalhões da PM (as chamadas Áreas Integradas de Segurança Pública, ou Aisps) em que mais pessoas foram mortas este ano pela polícia — entre janeiro e outubro — era de se esperar que os crimes despencassem, na comparação com o mesmo período do ano passado. Afinal, os criminosos foram abatidos como moscas, certo? Errado.
Na área do batalhão de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, moram mais de 1 milhão de pessoas. Lá, a polícia matou este ano dia sim, dia não, na média. Cento e cinquenta pessoas. Em todos os Estados Unidos, entre janeiro e setembro, a polícia matou 857 seres humanos, segundo levantamento do Washington Post. E mesmo assim, de seis índices criminais (roubo a pedestre, de carga, de veículo, em ônibus, homicídio e estupro), cinco aumentaram na cidade entre 2017 e 2018.
O roubo a pedestre cresceu em oito das dez Aisps; estupro, a mesma coisa. Roubo em ônibus cresceu em seis das dez áreas. Roubo de carga, que caiu fortemente em todo o estado, só foi reduzido em metade das áreas com mais mortes. Nas demais, pegou a contramão e aumentou. Só roubo de veículo e homicídio tiveram queda em mais da metade dos locais em que mais suspeitos de cometer crimes foram mortos.
Ao fim e a cabo, esses e outros números assassinam a tese de que matar bandidos reduz obrigatoriamente a violência. Porque bandidos têm pernas, se movem e agem onde vale a pena o risco de cometer crimes. Porque não há polícia que chegue para tomar conta de cada esquina, cavoucar cada grota atrás de meliantes. Porque a impunidade indecente dá a qualquer aspirante a marginal algo como nove chances em dez de escapar sem ao menos ser reconhecido.
E por que tão poucos policiais militares morreram neste ano? Um dos motivos tem três letras: RAS, o Regime Adicional de Serviço. Na prática, um bico legalizado pela corporação no Rio, em que o PM, na folga, pode trabalhar em outro batalhão e ganhar um pouco mais. No fim de 2016, fase mais aguda da crise fiscal no estado, o RAS foi suspenso. Os policiais começaram a fazer bicos por conta própria. O que, obviamente, deixa o PM mais exposto. Resultado? Em 2017, oito em cada dez policiais militares mortos estavam fora do serviço regular; neste ano, com o retorno do RAS em maio, a proporção caiu para sete em dez. Ou seja, mais PMs morreram em serviço este ano.
Juntando-se os dois lados, são quase 20 mil mortos em 20 anos dessa guerra sem sentido e sem resultado. A eles, somam-se as vítimas de balas perdidas, as famílias de policiais assassinados, destruídas, os parentes dos criminosos mortos — que não podem carregar a culpa pelos erros de seus filhos, pais, irmãos, netos. E tudo isso para nada. Nada melhorou, não ficamos mais felizes ou mais seguros. Não dormimos em paz ou caminhamos tranquilos pelas ruas. Somos como os cegos guiando cegos do quadro de Bruegel, o Velho (ou, para quem preferir, da parábola de Jesus no Evangelho de Mateus). Andamos aos tropeções, sem rumo, à espera da vala.