Ciro Gomes insiste em criticar PT por resultado das eleições
Na primeira entrevista concedida após uma cirurgia na próstata, o convalescente Ciro Gomes, candidato derrotado à Presidência, nega que a eleição de Jair Bolsonaro configure um risco à democracia brasileira e afirma que é preciso respeitar “o tempo e a majestade da vitória do camarada”. Nem por isso, deixa de fazer duras críticas ao modo como o novo governo concebe as futuras estratégias econômica e política.
Em conversa de mais de uma hora no apartamento de seu filho, na Zona Oeste da capital paulista, Ciro Gomes declara ao Valor que Bolsonaro não entende o país. E a equipe que está recrutando, menos ainda. Para ele, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, “parou de ler nos anos 1980 e definitivamente não leu nada depois de 2008”, ano em que foi deflagrada a crise econômico-financeira mundial. E justamente a economia, a seu ver, será a grande definidora do sucesso do governo, em uma lua de mel que praticamente não existirá.
Ciro Gomes acusa o PT de dar origem à onda bolsonarista e afirma que a atuação do partido nestas e em outras eleições não permite distingui-lo moralmente em relação a Bolsonaro. Sobre Fernando Haddad, também derrotado, Ciro não tem acusações morais e elogia a excelente formação, mas não o considera um quadro de liderança capaz de vencer eleições. “É um acomodatício, uma pessoa da elite”. Mas esperaria dele um convite para jantar. A seguir, trechos da entrevista:
Valor: Como o senhor avalia as definições do governo Bolsonaro até agora? O que sinalizam e o que se pode esperar da gestão, considerando, por exemplo, a formação da equipe?
Ciro Gomes: É um atributo do presidente eleito desenhar seu governo, recrutar as pessoas que entenda como convenientes e oportunas. Esse respeito ao eleito é um ritual que está muito desmoralizado no Brasil. É por aí que a democracia também se deteriora. Não vi nenhuma violação da democracia, mas a campanha do PT incitou ao terror, como se a eleição do Bolsonaro em si, por definição, fosse uma ruptura da democracia.
Valor: O senhor não vê assim?
Ciro: Absolutamente, não. Até aqui, 27 de novembro, às duas da tarde, nenhuma violação à democracia aconteceu. Aconteceram violações da regra democrática, eleitoral, mas de parte a parte. O PT fez exatamente a mesma coisa, caixa dois, mentira na internet, fake news, uso de pacotes do WhatsApp. Então é importante respeitar o tempo e a majestade da vitória do camarada que eu gostaria que tivesse sido eu. As pessoas optaram por outro candidato, então é meu dever dizer: “Boa sorte. Vou torcer.”
Valor: O senhor não o considera uma pessoa de extrema direita?
Ciro: Eu o considero, como já falei na campanha, uma cédula de 3 reais. Ele é qualquer coisa e é nada. Eu o conheço bastante bem, foi deputado por 28 anos, fui colega dele. Ele sai de uma agenda miúda, de bajulação corporativa dos militares reformados, para uma defesa da memória de 64, e acaba achando uma oportunidade de negar tudo o que está aí. Mas sendo exatamente parte orgânica e central de tudo de pior que está aí. Agora, ele foi eleito e, eleito, tem essa vênia. Isto dito, não creio, francamente, que [seu governo] possa dar certo, porque falta concepção.
Valor: O que isso quer dizer?
Ciro: Ele não entende o país. E a equipe que está recrutando, menos ainda. Então, a ideia de que será outdoor, um relações públicas na Presidência e que vai feudalizar o poder real em superministros fragmentários, isso não pode dar certo no presidencialismo e nem na conjuntura brasileira, que é trágica. Porque tem um problema de concepção que herdamos de Fernando Henrique [Cardoso] e do PT. E você não encontra a solução que estão propondo. Por exemplo, o que a gente consegue filtrar da agenda do Paulo Guedes, que eu conheço há muitos anos? É um cara razoável, nunca foi brilhante, é egresso [da Escola] de Chicago, parou de ler nos anos 1980 e definitivamente não leu nada depois de 2008. V
alor: Ganhou bastante dinheiro, não é?
Ciro: Continua ganhando bastante dinheiro, essa é a vocação dele. Nunca teve vocação para lidar com pessoas e nenhuma vivência no serviço público. Mas a questão é que a concepção dele está desmoralizada no campo teórico. Não há mais uma única cabeça relevante no planeta Terra – e eu frequento esse universo, estou indo para os Estados Unidos no aniversário do [linguista e filósofo americano] Noam Chomsky, a convite dele – conheço diversos lados, e ninguém mais defende o Consenso de Washington. Tem umas questões básicas, fáceis de entender, que é reduzir o Estado a uma dimensão mínima, desentranhá-lo do domínio econômico, que deveria ser um teatro monopolista da iniciativa privada, e esperar daí que, cumprida essa agenda, nós seremos salvos – pelo capital dos outros – da nossa imprudência, da nossa incapacidade conceitual de nos compreender como nação e de desenhar nossa estratégia. Não existe precedente teórico nem empírico disso em nenhuma nação, em tempo algum. Na concepção econômica, não vejo como dar certo diante do baixo nível de formação bruta de capital, de gravíssima desqualificação do nosso capital humano, do grave problema de infraestrutura, da falta de financiamento privado e público da economia, da crise fiscal sem precedentes e da crise patrimonial que sinaliza rupturas. Essas são as questões que deveriam ser tratadas. De outro lado, a questão da concepção política. Há um problema gravíssimo de hiperfragmentação da representação política no país, é um fim de ciclo, e a coesão não será feita por cooptação individual como ele [Bolsonaro] está fazendo. Esse é o cenário certo do fracasso. Você pode tentar repetir aquilo que já vimos, que é lotear o governo, o que dá errado também, ou tentar uma outra e audaciosa relação.
Valor: É o que o senhor tentaria fazer se tivesse ganhado?
Ciro: Sim, trocar a interlocução de varejo por uma interlocução de atacado, redesenhando o pacto federativo em troca das reformas do país. Ele faz o oposto. “A ideia de que [Bolsonaro] será um outdoor, um relações públicas na Presidência da República não pode dar certo”
Valor: Como seria isso que o senhor propõe?
Ciro: A federação está quebrada. E só quem tem o poder de reestruturar essa quebradeira é a União federal. São coisas audaciosas que não passam na cabeça do Paulo Guedes e nem quer ouvir, porque tem interdição preconceituosa que ele chama de inteligência. Por exemplo, qual a grande questão de Minas Gerais? Previdência Social, assim como no Rio Grande do Sul. Não tem reforma da Previdência, que viola direitos adquiridos, que resolva. Tem pensar outros modelos. Minas Gerais possui ativos, como direitos de lavra, que podem chegar à conta de meio trilhão, ou um quatro de trilhão, mas aí está um ativo ilíquido. Como a Previdência não precisa de um ativo líquido, à vista, a União poderia pegar esse direito de lavra, emitir um lote especial de títulos prefixados, fazer o lastro… Enfim, existem desenhos. Mas precisa discutir, pensar, refletir. Aí o governador [eleito] de Minas [Romeu Zema, do Novo], na mesma linha, acha que a solução é vender o Palácio da Liberdade.
Valor: A lua de mel acabará logo? Ou nem haverá lua de mel?
Ciro: Como estamos vivendo um fim de ciclo. Mas Bolsonaro tem um universo que intuitivamente domina: esse universo “criptoconservador” de costumes. Ele pode se refugiar nisso. Assim, pode extrair seis meses, e propor a redução da maioridade penal, o agravamento da lei de execução penal…
Valor: Enquanto isso vai ganhando tempo?
Ciro: Ganha tempo e cumpre a palavra [de campanha]. Porque o povão é muito mais sábio que os políticos e jornalistas supomos. O povão quer ver você agarrado com o problema, de forma coerente com o que você falou para se eleger. Por exemplo, Escola sem Partido. Isso é uma picaretagem! Imagine a fiscalização que teria de ter para romper com a conquista do Iluminismo, da Renascença, que superou a Idade Média…
Valor: Ou seja, ele direciona os holofotes para esses assuntos, desviando a atenção da economia e da política que sofrem os problemas de concepção que o senhor citou?
Ciro: A economia é quem será o definidor [do sucesso do governo]. Mas eu não vejo o novo governo nem sequer considerando as questões que tentei dizer na campanha. Tem o tal mercado especulando que vamos crescer 3 pontos [crescimento de 3% no PIB], isso dá uma ilusão, uma propaganda, mas devemos chegar a 1,5%, 1,75%.
Valor: O mercado está colocando fichas na reforma da Previdência, como se resolvesse boa parte dos problemas econômicos?
Ciro: É uma baboseira. Também não há concepção aí. O modelo previdenciário brasileiro, de repartição, é irreformável. Impressionante como as pessoas não querem ouvir isso. Só o Brasil, a Argentina e a Venezuela insistem no modelo de repartição. Neste caso, não são uma boa companhia, certo? Os três estão quebrados. Um regime de repartição funciona com esse nível de precariedade na relação de trabalho?
Valor: Então, mesmo obtendo sucesso em aprovar a reforma da Previdência, não vai adiantar muito? Nem mesmo se a aprovação criar uma onda de otimismo em torno da recuperação da economia?
Ciro: A questão básica é o déficit de transações correntes, que aprecia o câmbio. Apreciando o câmbio, temos inflação.
Valor: A sua previsão para a economia não é das melhores?
Ciro: É de medíocre para ruim. Na economia, as expectativas influem mas, quando colidem com as premissas fáticas, as expectativas são falsas. Primeiro: o consumo das famílias lamentavelmente é o grande motor do crescimento econômico brasileiro, imitando os americanos, que financiam esse consumismo explosivo com emissão de dólares sem efeito inflacionário – mas nós não temos essa peculiaridade. Como está o consumo das famílias aqui? Você tem 63 milhões de pessoas inadimplentes no SPC [Serviço de Proteção ao Crédito] e isso é um problema macroeconômico, nenhuma chance de o mercado, individualmente, resolver. Você tem número de desempregados e de informalidade, portanto, o consumo das famílias muito provavelmente não será muito estimulante.
Valor: Mas os lucros estão voltando, segundo manchete do Valor de hoje [a reportagem de 28/11 mostra que o lucro líquido de 281 companhias abertas cresceu 16,3% em relação a mesmo período do ano passado].
Ciro: Como pode ter lucro se estamos com 30% de capacidade ociosa e com o Brasil se desindustrializando tão selvagemente? Terceiro: o investimento do setor público. Qual o cenário? Eles se interditaram na campanha dizendo que não tem aumento de tributo. Já falaram em CPMF. Sem aumento de receita, há zero chance de restaurar a condição fiscal brasileira. E quarto: o desequilíbrio externo. Sem uma política industrial, a crença de que o Brasil vai pagar eletroeletrônico, bens de capital, informática e química fina com feijão, milho, boi e soja in natura é completamente ilusória.
Valor: Diante dessa situação econômica que o senhor descreve, como ficará o eleitor do Bolsonaro, que parece desejar soluções rápidas que, segundo o senhor, não vai entregar?
Ciro: Não, mesmo.
Valor: Essa direita que está assumindo poderá não durar muito tempo no poder?
Ciro: Não tem essa direita. Essa daí só se reuniu para negar. E nisso é indispensável refletir a contribuição do PT. Não ganhou a direita, ganhou o antipetismo. Se não, eu seria obrigado a achar que 65% do eleitorado do Rio Grande do Sul é fascista, de direita, e sei que não é. Precisa tomar um pouco de cuidado com essa mistificação petista. O PT produziu essa onda [bolsonarista], que é a maior força política, mas é uma força para negar. O Sergio Moro está encarregado da Justiça, que engloba combate à corrupção e segurança pública. Corrupção é um problema gravíssimo, mas na cabeça do povo o maior problema são 63 mil homicídios e 60 mil estupros registrados por ano, quase todo mundo jovem. Moro, despreparadíssimo, exibicionista, jejuno – como meu pai chamava o cabra que não tem vivência nenhuma – não é má pessoa, mas é um quadro publicitário. E onde acontece a corrupção que é a predileção do Moro? Por definição, acontece no governo, e não na oposição. Como será seu comportamento? Vai fazer o que fazia em Curitiba, vazar informações para a imprensa?
Valor: Como é a pessoa do Bolsonaro?
Ciro: Ele domina um assunto que lhe deu sete mandatos: quinquênio, aposentadoria, progressão, viúva de militar… Do petismo para cá, ele começa a ser mandatado para reagir à agenda “revanchista” – ponha muitas aspas nisso, porque a palavra é deles – do PT. Por exemplo, Comissão da Verdade. O Bolsonaro disse lá atrás que tinha votado em mim para presidente da República [anteriormente, Ciro Gomes concorreu em 1998 e 2002]. Então, eu tinha uma certa ascendência sobre ele. Poucas pessoas na Câmara o cumprimentavam. É tímido, retraído, se sente meio sombreado por todo mundo, é solitário mesmo.
Valor: Teria um complexo de inferioridade?
Ciro: Gravíssimo.
Valor: Um apoio crítico seu ao Haddad, no segundo turno, não teria evitado a eleição do Bolsonaro?
Ciro: Eu dei o apoio crítico ao Haddad. Agora deixa eu lhe dizer que, se o Haddad estive sido eleito pouca coisa seria diferente. Você pode evidentemente destacar a personalidade do Haddad como homem cordial, do diálogo, mas perdeu as eleições para prefeito na reeleição de São Paulo dois anos atrás. E não perdeu como é natural qualquer um de nós perder. Perdeu em todas as urnas. Perdeu para os votos nulos e brancos, estando no cargo! Qual país do mundo lançaria para presidente da República alguém com essa biografia? Ele é um acomodatício, uma pessoa da elite.
Valor: Mas o senhor deu mesmo apoio crítico ao Haddad?
Ciro: Quase o partido [PDT] se arrebenta, porque a maioria esmagadora do partido, 90%, queria a neutralidade ou o oposto [apoiar Bolsonaro]. Iam brigar, eu tive de interferir na reunião. O [presidente do PDT Carlos] Lupi fez a resolução e ameaçou renunciar. Quando vi que a coisa tinha azedado, entrei e disse: “Com respeito a todo mundo, apoio a resolução do presidente. E faço um apelo porque o que está em jogo aqui é a nossa unidade. Esta eleição já está perdida!” No domingo à noite da eleição, eu desci do meu prédio, a imprensa estava lá e eu falei: “Ele não!” Para mim já estava muito claro que “Ele não” e acabou!
Valor: Mas “Ele Não” significava “Haddad Sim”?
Ciro: Não sei! Agora repare bem. O que o PT fez nestas eleições e em todas as outras não permite a eles terem qualquer distinção moral em relação ao Bolsonaro. Dói para mim dizer isto. Não permite que eles falem em democracia.
Valor: Mas e a questão da defesa de direitos humanos, por exemplo?
Ciro: Papo furado. A retórica do PT é maravilhosa. Qual é a mudança, na prática, das torturas das delegacias brasileiras ao longo dos últimos 16 anos? O PT virou isto: cooptação, manipulação, aparelhamento das instituições. O resultado é que a sociedade brasileira debilitou-se. Qual foi a deformação que o Bolsonaro fez que o PT não fez? E eu, Ciro Gomes, sou obrigado a coonestar isto? Em nome de quê? Sabe qual o único estado que deu dois terços dos votos contra o impeachment no Brasil? O Ceará. O único! Sabe com quem o Haddad foi se aliar nesta eleição lá? Com o Eunício [Oliveira, do MDB]. Vou te contar uma que as pessoas não sabem. Nós, pelas tantas, na habilidade extraordinária do meu irmão Cid, resolvemos convidar a Dilma para ser senadora pelo Ceará. Fizemos pesquisa, tínhamos boa condição, ela é bem querida no Ceará. Nós sempre divulgamos o que ela nos ajudou a fazer e tal. O Cid com 80 e a Dilma com 60 [% das intenções de voto]. Ela topou, nós alugamos uma casa, para ela poder fisicamente transferir o domicilio e não ter contestação. O jato que o nosso partido pagou foi buscá-la e ela não apareceu. No dia seguinte, me liga o Fernando Pimentel [PT], governador de Minas. e pede para falar comigo urgente. Aí eu vou a Minas falar com Pimentel e ele me diz: “O Lula me ligou impondo a candidatura da Dilma a senadora, tá desfazendo a minha aliança inteira aqui. Desse jeito eu vou perder a eleição”. Ou seja, enterrou o Pimentel, tirou a Dilma de uma aliança feita onde estava eleita, para forçar a mão pelo Eunício. Aí quer o meu apoio?
Valor: Na sua opinião, o que deve acontecer com o PT a partir de agora?
Ciro: Há vários PTs. Enquanto a grande tese for o Lula Livre e ir a Curitiba perguntar o que fazer na semana, eles vão definhar. Mas é um partido importante. Tem base.
Valor: O senhor é candidato à Presidência da República em 2022?
Ciro: O PDT pediu autorização a mim para dizer que vai me lançar agora, na sequência da posse do Bolsonaro, eu não vetei. Mas uma candidatura depende de um conjunto de fatores que só serão dados lá na frente. Enfim, você vai me ver em permanente campanha como eu já estou há muitos anos.
Valor: O senhor não vê o risco de uma ruptura democrática no governo Bolsonaro?
Ciro: Não vejo. O PT introduziu no imaginário brasileiro, principalmente nas elites, esse terror.
Valor: Não se fundamenta em nada?
Ciro: Não, nada.
Valor: Qual sua relação pessoal com Haddad?
Ciro: Excelente. Não sei se restou alguma mágoa dele. Mas eu não misturo pessoalidades com meus adversários, todos eu cumprimento.
Valor: Mas vocês conversaram depois das eleições?
Ciro: Não. Inacreditavelmente eu soube que ele está dando entrevista e fala de mim toda hora [concedeu entrevista à “Folha de S.Paulo”, publicada no dia anterior]. Mas, desse jeito, ele tem de me esquecer. Ou me esquece, ou me convida para jantar!
Do Valor