Crise migratória é tema da cúpula ibero-americana da Guatemala
Poucos fenômenos mudaram tanto a face da América Latina nos últimos anos quanto a migração. De norte a sul. Assim, apesar de não estar incluída como tal na agenda, os ministros das Relações Exteriores e os chefes de Estado que comparecerem à cúpula ibero-americana em La Antigua (Guatemala) na quinta e sexta-feira, buscarão uma posição de consenso sobre uma questão que afeta quase todos os países da região e que incomoda a maioria, seja por sua condição de origem, lugar de trânsito ou destino.
Enquanto os chefes de Estado estiverem se reunindo na cidade colonial, milhares de centro-americanos estarão chegando a Tijuna, uma das fronteiras mexicanas com os Estados Unidos, que esperam poder atravessar apesar das ameaças de Donald Trump, que ordenou a mobilização de 15.000 soldados para detê-los. Estima-se que 300.000 pessoas estejam cruzando o México clandestinamente neste momento. Agora elas perderam o medo e caminham com o rosto descoberto e em grupos pelas estradas do país. Tijuana pode se tornar um ponto de chegada para todas elas e, por extensão, um gigantesco campo de refugiados se não conseguirem entrar nos Estados Unidos.
A caravana de migrantes e os insultantes tuítes de Trump contra seus integrantes colocaram sobre a mesa uma questão que afeta o México e toda a América Central. Diante desse desafio, os países reagiram sem coordenação, planos e nem orçamento frente a um problema regional.
A passagem dos centro-americanos chamou a atenção nas últimas semanas, mas a crise está se ampliando ao sul. À emigração tradicional a partir de El Salvador, Honduras e Guatemala por causa da pobreza e da violência agora se junta a saída maciça de migrantes da Nicarágua devido à instabilidade que atravessa o país e a deriva repressiva contra a oposição empreendida pelo Governo de Daniel Ortega, que confirmou sua participação na cúpula. E o fenômeno mais drástico. Mais de dois milhões de venezuelanos deixaram o país por causa da crise institucional e humanitária que se abate sobre o país caribenho depois da deriva autoritária do Governo de Nicolás Maduro.
A magnitude da crise torna inevitável que os 17 chefes de Estado da América Latina, Espanha e Portugal que já confirmaram presença na reunião organizada pela Secretaria-Geral Ibero-americana (Segib) tenham de se pronunciar sobre o assunto. As características e as implicações da migração para os países tornam complicada uma declaração que vá mais além das boas intenções. Os países que fazem fronteira com a Venezuela buscam uma crítica enfática ao madurismo e a Daniel Ortega, mas isto também implicaria condenar a atitude de outros países, onde a deriva autoritária está crescendo, como a anfitriã Guatemala ou o silêncio do México, cujo presidente, Enrique Peña Nieto, deixará o cargo dentro de duas semanas. Junto do presidente brasileiro, Michel Temer, será outro dos que usarão a reunião para se despedir de seus colegas.
O rascunho do texto, segundo fontes diplomáticas de vários países presentes, será uma mera declaração de intenções sem gestos concretos para expressar solidariedade com os imigrantes que tiveram de abandonar seus países por causa da pobreza e da violência; pedem que os direitos humanos desses milhões de pessoas sejam respeitados e exortam os países a alcançar mecanismos para que o processo seja organizado.
Outras crises sobrevoarão o encontro em La Antigua. A situação da Venezuela, como aconteceu há dois anos em Cartagena das Índias, será uma das questões que os chefes de Estado discutirão em sua reunião a portas fechadas na sexta-feira. A presença do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, ainda é uma incógnita. Sua presença não foi confirmada, mas ninguém descarta que acabe aparecendo, como aconteceu na Assembleia Geral da ONU. Delcy Rodríguez, presidenta da Assembleia Nacional Constituinte, lidera a delegação venezuelana até o momento. Quem estará em La Antigua, salvo surpresa, é Daniel Ortega, presidente da Nicarágua. O país centro-americano vive uma crise política e social desde maio, depois da violenta repressão que o regime sandinista empreendeu e que fez centenas de mortos. Mais de 40.000 nicaraguenses se exilaram na Costa Rica devido à deriva de seu país.
A própria anfitriã é uma presença incômoda, embora não escape da tempestade regional. A Guatemala está passando por um período turbulento em pleno divórcio entre o Governo de Jimmy Morales, a sociedade civil e a comunidade internacional por causa da Comissão contra a Impunidade das Nações Unidas (CICIG). O presidente empreendeu uma cruzada contra a CICIG e anunciou que não renovará o acordo que mantêm, de modo que terá de encerrar suas atividades no próximo ano. Paralelamente proibiu o promotor-chefe da mesma, o colombiano Iván Velásquez, de voltar ao país, o que provocou a um confronto com o Secretário-Geral da ONU e vários países doadores, entre eles a Espanha.
A decisão de Morales é interpretada como uma tentativa de se blindar diante das investigações em andamento, uma vez que Velásquez solicitou a audiência preliminar por suposto financiamento irregular de sua campanha. As últimas pesquisas mostram que 70% dos guatemaltecos aprovam o trabalho, contra 15% que apoiam Morales, em seu momento mais baixo desde que chegou ao poder há mais de dois anos, quando ganhou as eleições de goleada. Desde então, sua popularidade não parou de cair e as eleições do próximo ano se apresentam como um plebiscito a favor ou contra a CICIG, a instituição que mais fez na região para desmantelar as estruturas de corrupção dos últimos Governos.
Do El País