Democracia no mundo: o pior está por vir
Leia o artigo de Anne Applebaum, colunista do Washington Post, ganhou o Pulitzer de não ficção pelo livro Gulag: Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos.
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O PIOR ESTÁ POR VIR
Em 31 de dezembro de 1999 demos uma festa. Um milênio se encerrava e um novo tinha início: era preciso comemorar, de preferência em algum local exótico. Nossa festa cumpria esse requisito. Seria realizada em Chobielin, no noroeste da Polônia, em um solar que meu marido e os pais dele haviam comprado fazia uns dez anos, quando a propriedade era uma ruína cheia de mofo. Tínhamos reformado a casa aos poucos. Não estava pronta de todo em 1999, mas o telhado era novo. Também tinha um vasto salão recém-pintado e sem nenhuma mobília – perfeito para uma festa.
Os convidados eram variados. Havia amigos jornalistas de Londres e de Berlim, uns poucos diplomatas baseados em Varsóvia, dois amigos vindos de Nova York, mas os poloneses constituíam a maior parte: amigos nossos e colegas do meu marido, que à época era vice-ministro das Relações Exteriores do governo polonês. Também compareceram alguns jovens jornalistas poloneses – nenhum deles particularmente conhecido à época –, junto com uns poucos funcionários públicos e um ou dois integrantes do governo.
Dava para mais ou menos agrupar a maioria daquelas pessoas na categoria geral daquilo que os poloneses chamam de “direita”: os conservadores, os anticomunistas. Só que naquele momento da história também era possível qualificar a maioria deles como liberais – liberais pró-livre mercado ou liberais clássicos –, ou quem sabe como thatcheristas. Mesmo aqueles com uma posição pouco clara em matéria de economia certamente acreditavam em democracia, no estado de direito e numa Polônia que era país-membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e estava em vias de ingressar na União Europeia, parte integrante da Europa moderna. Nos anos 90, era isso o que significava estar “à direita”.
Como costuma acontecer com as festas, os preparativos foram um tanto quanto improvisados. Na Polônia rural dos anos 90, não havia como encomendar comes e bebes – minha sogra e eu preparamos travessas de beterrabas assadas e carne ensopada com legumes. Tampouco havia hotéis – os cento e tantos convidados se hospedaram em fazendas das redondezas ou em casas de amigos na cidadezinha mais perto. Fiz uma lista de quem ia ficar onde, mas ainda assim umas duas pessoas acabaram dormindo num sofá do porão. O som – cds de músicas gravadas numa época anterior ao Spotify – gerou a única cizânia cultural séria da noite: a trilha sonora da época de faculdade dos americanos não era a mesma dos polacos, de maneira que foi difícil fazer com que todo mundo dançasse ao mesmo tempo. A certa altura fui para o andar de cima: soube que Boris Ieltsin tinha renunciado e escrevi uma coluna sucinta para um jornal britânico. Desci e tomei mais uma taça de vinho. Lá pelas três da madrugada, uma convidada polonesa eufórica tirou uma pequena pistola da bolsa e disparou tiros de balas de festim.
Foi uma festa desse tipo. Varou a madrugada e continuou no brunchda tarde seguinte, impregnada do otimismo daquela época. Tínhamos reconstruído nossa casa. Nossos amigos estavam reconstruindo o país. Tenho uma recordação particularmente nítida de um passeio na neve – talvez tenha sido no dia anterior à festa, talvez no dia seguinte – com uma turma bilíngue: todo mundo conversando ao mesmo tempo, o inglês e o polonês se mesclando e ecoando pelo bosque de bétulas. Naquele momento, com a Polônia na iminência de se integrar ao Ocidente, tinha-se a impressão de que torcíamos todos pelo mesmo time. Concordávamos sobre a democracia, o caminho para a prosperidade, o rumo que as coisas estavam tomando.
Aquele momento passou. Decorridas quase duas décadas, cheguei a mudar de calçada para evitar algumas das pessoas que celebravam o ano 2000. Por sua vez, elas não só se recusavam a entrar na minha casa como tinham vergonha de admitir que um dia a frequentaram. Na verdade, cerca de metade dos convidados nunca mais falaria com a outra metade. Os estremecimentos são políticos, não pessoais. Hoje a Polônia é uma das sociedades mais polarizadas da Europa – uma grave cisão divide não só o que costumava ser a direita polonesa, mas também a tradicional direita húngara, a direita italiana e ainda, com certas diferenças, a direita britânica e a direita norte-americana.
Alguns dos convidados da véspera de Ano-Novo, assim como meu marido e eu, continuaram a apoiar a centro-direita pró-europeia, pró-estado de direito, pró-mercado, permanecendo em partidos políticos que, em certa medida, se alinhavam com os democratas-cristãos europeus, os partidos liberais da Alemanha e da Holanda e o Partido Republicano de John McCain. Outros tantos passaram a se considerar de centro-esquerda. Outros ainda acabaram por tomar um rumo diferente, apoiando um partido ultranacionalista chamado Lei e Justiça – que se afastara de modo impressionante das posições que tomava quando dirigiu o governo pela primeira vez por um breve período, de 2005 a 2007, e quando ocupou a Presidência de 2005 a 2010 (na Polônia não se trata da mesma coisa, pois o país é uma república parlamentarista).
Desde então o Lei e Justiça passou a adotar um novo conjunto de ideias, não apenas xenofóbicas e bastante arredias quanto ao resto da Europa, mas também francamente autoritárias. Depois que o partido conquistou uma ligeira maioria parlamentar em 2015, seus dirigentes violaram a Constituição ao nomear novos juízes para a corte constitucional. Mais tarde, seguiu um roteiro igualmente inconstitucional para tentar cooptar a Suprema Corte polonesa. Assumiu o controle da emissora de televisão pública, a Telewizja Polska, demitindo apresentadores prestigiados e passando a fazer propaganda descarada – eivada de mentiras facilmente refutáveis – à custa dos contribuintes. O governo granjeou notoriedade internacional ao aprovar uma lei que cerceava o debate público sobre o Holocausto. Ainda que a lei tenha sido alterada depois da pressão dos Estados Unidos, gozou de amplo apoio da base ideológica do Lei e Justiça – jornalistas, escritores e intelectuais, incluídos aí alguns de meus convidados, para os quais forças antipolonesas buscam culpar a Polônia por Auschwitz.
Posições dessa ordem me impedem de falar sobre o que quer que seja com alguns dos presentes à festa. Por exemplo, não tive uma única conversa com uma mulher que outrora era uma das minhas amigas mais íntimas, madrinha de um dos meus filhos – vou chamá-la de Marta –, desde um telefonema histérico em abril de 2010, alguns dias depois que um avião que transportava o então presidente caiu perto de Smolensk, na Rússia.[1] Nos anos seguintes, Marta se aproximou de Jarosław Kaczyński, líder do Lei e Justiça e irmão gêmeo do falecido presidente. Regularmente ela o recebe para almoços em seu apartamento e discute quem ele deve nomear para seu gabinete. Há pouco tempo procurei encontrá-la em Varsóvia, mas ela se recusou; enviou-me uma mensagem assim: “Sobre o que conversaríamos?” – e não se manifestou mais.
Outra convidada – aquela que atirou no ar com a pistola – acabou por se separar do marido, um britânico. Soube que agora passa os dias na internet, provocadora em tempo integral, promovendo fanaticamente uma série de teorias conspiratórias, muitas delas de um antissemitismo virulento. Dispara tuítes sobre a responsabilidade dos judeus pelo Holocausto, e certa vez postou a imagem de uma pintura medieval inglesa que retratava um menino supostamente crucificado por judeus, com o seguinte comentário: “E ficaram surpresos por terem sido escorraçados…” Segue e engrandece os expoentes da “direita alternativa” (alt-right) norte-americana, cuja linguagem reproduz.
Soube que ambas estão estremecidas com os filhos devido a suas posições políticas. Mas isso também é típico: essa linha divisória percorre tanto famílias como amigos. Temos um vizinho perto de Chobielin cujos pais escutam a Radio Maryja, uma emissora pró-governo. Repetem seus mantras, encampam seus inimigos. “Perdi minha mãe”, ouvi de meu vizinho: “Ela vive em outro mundo.”
Para ser transparente quanto a meus interesses e inclinações, devo esclarecer que sou alvo de parte desse pensamento conspiratório. Meu marido foi ministro da Defesa por um ano e meio, num governo de coalizão encabeçado pelo Lei e Justiça durante sua primeira e breve experiência de poder; posteriormente rompeu com o partido e durante sete anos foi ministro das Relações Exteriores em outro governo de coalizão, este encabeçado pelo partido de centro-direita Plataforma Cívica; nas eleições de 2015 ele não se candidatou. Como jornalista e mulher dele, nascida nos Estados Unidos, não passei despercebida à imprensa, mas depois que o Lei e Justiça venceu as eleições daquele ano figurei em matérias de capa de duas revistas pró-regime, wSieci e Do Rzeczy (ex-amigos nossos trabalhavam em ambas), como coordenadora judia clandestina da imprensa internacional e articuladora secreta da cobertura jornalística negativa da Polônia. Matérias similares foram veiculadas no noticiário noturno da Telewizja Polska. Por fim pararam de escrever a meu respeito: a cobertura jornalística negativa da Polônia pela imprensa internacional ficou generalizada demais para que uma só pessoa, mesmo judia, a coordenasse na íntegra – se bem que de vez em quando o assunto ressurja nas mídias sociais, como seria de se esperar.
Num célebre diário que manteve de 1935 a 1944, o escritor romeno Mihail Sebastian relatou uma mudança ainda mais extrema em seu país. Assim como eu, Sebastian era judeu e a maioria de seus amigos era de direita. No diário ele anotou como, um por um, eles foram atraídos pela ideologia fascista, tal um bando de mariposas em direção à luz. Relatou a convicção e a arrogância de que se imbuíam ao deixar de se identificarem como europeus – admiravam Proust, viajavam para Paris – e passarem a se qualificar como romenos de sangue e solo. Reparou que descambavam para o pensamento conspiratório ou se tornavam irrefletidamente rudes. Gente que ele conhecia fazia anos o insultava abertamente e depois se portava como se nada tivesse acontecido. “Será possível”, ele se perguntava em 1937, “manter amizade com pessoas que compartilham uma série de ideias e percepções incompatíveis com as minhas – tão incompatíveis que se calam de vergonha e constrangimento assim que entro no recinto?”
Não estamos em 1937. Entretanto, hoje vem ocorrendo transfiguração semelhante na Europa em que habito e na Polônia, um país cuja cidadania obtive. E vem ocorrendo sem a desculpa de uma crise econômica como aquela que a Europa sofreu nos anos 30. A economia polonesa tem sido a mais consistentemente bem-sucedida da Europa ao longo do último quarto de século. Mesmo depois do colapso financeiro global de 2008, o país não passou por nenhuma recessão. A onda de refugiados que tem atingido outros países europeus não se fez sentir por aqui. Na Polônia não existem campos de migrantes nem há terrorismo islâmico ou terrorismo de qualquer gênero.
E o mais importante: muito embora as pessoas que descrevo, os ideólogos ultranacionalistas, talvez não sejam todas tão bem-sucedidas quanto gostariam, não são gente pobre nem do meio rural, nem são de modo algum vítimas da transição política, tampouco constituem uma subclasse empobrecida. Ao contrário, são instruídas, falam diversas línguas e viajam para fora – assim como os amigos de Sebastian nos anos 30.
O que terá causado essa transfiguração? Alguns de nossos amigos teriam sempre sido autoritários enrustidos? Ou será que a turma com a qual brindamos os primeiros minutos do novo milênio teria mudado ao longo das duas décadas subsequentes? Minha resposta é complicada, pois creio que a explicação seja universal. Dadas as devidas circunstâncias, qualquer sociedade pode se voltar contra a democracia. Aliás, a julgar pela história, todas as sociedades acabarão por fazê-lo.
Antes de prosseguir, um parêntesis e um lembrete: tudo isso já aconteceu antes. Profundas mudanças políticas – eventos que de uma hora para outra separam famílias e amigos, atravessam classes sociais e reconfiguram alianças de maneira impressionante – não acontecem todo dia na Europa, mas tampouco são desconhecidas. Nos anos recentes pouca atenção foi dedicada a uma polêmica francesa do final do século XIX que prefigurou muitos dos debates do século XX e apresenta algumas inequívocas reverberações no presente.
O caso Dreyfus foi desencadeado em 1894, quando se descobriu um traidor no Exército francês: alguém estava passando informações para a Alemanha, que havia derrotado a França fazia um quarto de século e ocupara a Alsácia-Lorena. O serviço de informações militar francês conduziu investigações e alegou ter encontrado o culpado. O capitão Alfred Dreyfus era alsaciano, falava com sotaque alemão e era judeu – portanto, no entendimento de alguns, não era um francês de verdade. Como se verificaria, era também inocente. Só que investigadores do Exército francês apresentaram evidências forjadas e deram falso testemunho; em consequência, Dreyfus foi julgado por uma corte marcial, considerado culpado e sentenciado a confinamento solitário na ilha do Diabo, ao largo da costa da Guiana Francesa.
A polêmica dividiu a sociedade francesa em duas linhas ora bem conhecidas. Os que sustentavam a culpa de Dreyfus compunham a direita alternativa – ou o partido Lei e Justiça, ou a Frente Nacional Britânica – da época. Promoviam uma teoria conspiratória. Contavam com manchetes espalhafatosas na imprensa marrom direitista da França – a versão do século XIX de uma provocação de extrema direita nas mídias sociais. Seus líderes mentiam para preservar a honra do Exército; os adeptos se aferravam à convicção na culpa de Dreyfus – e à incondicional lealdade à nação –, mesmo depois que a impostura foi revelada.
Dreyfus não era um espião. Para demonstrar o indemonstrável, seus opositores precisavam desacreditar a evidência, a lei e até o pensamento racional. A própria ciência seria inconfiável, fosse por ser moderna e universal, fosse por conflitar com o culto emocional à ancestralidade e à pátria. “Em todo estudo científico”, escreveu um deles, há algo “precário” e “contingente”.
Já os partidários de Dreyfus argumentavam que certos princípios seriam superiores à honra nacional e que, sim, importava se ele era ou não culpado. Acima de tudo, argumentavam que o Estado francês tinha a obrigação de tratar todos os cidadãos de forma equânime, qualquer que fosse sua religião. Também eram patriotas, mas de um gênero diverso. Concebiam a nação não como um clã étnico, mas como a corporificação de um conjunto de ideais: justiça, honestidade, neutralidade dos órgãos judiciais. Era uma visão mais cerebral, mais abstrata e mais difícil de assimilar, mas não desprovida de certo apelo.
Essas duas visões da nação racharam a França ao meio. Os ânimos se acirraram. Arrebentavam bate-bocas nas salas de jantar de Paris. Familiares deixaram de falar uns com os outros, às vezes por mais de uma geração. A divisão continuou a se fazer sentir na política do século XX, nas divergentes ideologias da França de Vichy e da Resistência. Persiste até hoje, no conflito entre o nacionalismo da “França para os franceses” de Marine Le Pen e a visão mais aberta de Emmanuel Macron de uma França que representa um conjunto de valores abstratos: justiça, honestidade e neutralidade dos órgãos judiciais, bem como globalização e integração.
Do meu ponto de vista, o caso Dreyfus é mais interessante porque foi suscitado por uma única causa célebre. Bastou um caso judicial – um julgamento contestado – para lançar um país inteiro num debate furioso, gerando desavenças indirimíveis entre pessoas que não sabiam que discordavam entre si. Mas isso indica que interpretações bastante diferentes sobre o que se entendia por “França” já estavam ali, prontas para emergir. Duas décadas atrás, diferentes interpretações de “Polônia” também já deviam estar presentes, à espera do momento de vir à tona, conforme as circunstâncias e em razão de ambições pessoais.
Talvez isso não surpreenda. Todos esses debates, seja o da França dos anos 1890, seja o da Polônia dos anos 1990, têm em seu cerne uma série de questões fundamentais. A quem cabe definir uma nação? E a quem, por conseguinte, cabe conduzir uma nação? Por muito tempo imaginamos que essas questões estivessem resolvidas – mas por que haveriam de estar?
Monarquia, tirania, oligarquia, democracia: tudo isso era familiar a Aristóteles há mais de 2 mil anos. Mas o regime antiliberal de partido único, ora encontrado em todo canto do mundo – considere-se a China, a Venezuela, o Zimbábue –, foi pela primeira vez desenvolvido por Lênin, na Rússia, a partir de 1917. No futuro, as obras de referência de ciência política com certeza se lembrarão do fundador da União Soviética não por suas convicções marxistas, mas por ter inventado essa persistente forma de organização política. Ela é o modelo pelo qual se pautam muitos dos autocratas hoje em ascensão no mundo.
À diferença do marxismo, o regime leninista de partido único não é uma filosofia. É um mecanismo para deter o poder. Ele funciona porque define claramente quem vem a ser a elite – a elite política, a elite cultural, a elite financeira. Em monarquias como as da França e da Rússia pré-revolucionárias, o direito de governar era conferido à aristocracia, que se pautava por rígidos códigos de educação e etiqueta. Nas modernas democracias ocidentais, o direito de governar é conferido, pelo menos em tese, mediante diversas formas de competição: campanha e votação eleitorais, testes de aferição de mérito para acesso ao ensino superior e ao funcionalismo público, mercados livres. Hierarquias sociais antiquadas ainda têm influência, mas na Grã-Bretanha, na América, na Alemanha, na França e até há pouco na Polônia admite-se que a concorrência seja o meio mais equânime e eficiente de distribuir poder. As empresas mais bem administradas devem auferir mais lucros. Os políticos mais sedutores e competentes devem governar. As disputas entre eles devem ocorrer em condições de igualdade para que se assegurem resultados justos.
O regime de partido único de Lênin se baseava em outros valores. Derrubou a ordem aristocrática, porém não implantou um modelo baseado na concorrência. O regime unipartidário bolchevique não era apenas antidemocrático: era também não competitivo e não meritocrático. Vagas nas universidades, empregos no funcionalismo público e postos no governo e na indústria não cabiam aos mais diligentes ou aos mais capazes: cabiam aos mais leais. As pessoas progrediam na medida em que se dispusessem a proceder de acordo com as regras da filiação partidária. Ainda que tais regras fossem diferentes em diferentes períodos, eram persistentes em certos aspectos. Em geral, excluíam a elite dirigente anterior e seus filhos, assim como segmentos étnicos malvistos. Favoreciam os filhos da classe operária. Acima de tudo, favoreciam gente que professasse o credo em alto e bom som, frequentasse comícios, participasse de exibições públicas de entusiasmo. À diferença de uma oligarquia comum, o regime de partido único admite mobilidade de baixo para cima: os fiéis autênticos podem progredir. Como escreveu Hannah Arendt nos idos da década de 40, o pior tipo de regime unipartidário “invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam suas simpatias, pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade é ainda a melhor garantia de lealdade”.
O sistema unipartidário de Lênin também refletia seu desdém pela ideia de um Estado neutro, servidores públicos apolíticos e meios de comunicação objetivos. Ele escreveu que a liberdade de imprensa “é uma enganação”. Zombava da liberdade de associação como uma “expressão oca”. Quanto à democracia representativa em si, não passava de “uma máquina para a supressão da classe operária”. Na concepção bolchevique, a imprensa podia ser livre e as instituições públicas podiam ser imparciais, mas apenas quando fossem controladas pela classe operária – por intermédio do partido.
Esse descaso com as instituições competitivas da “democracia burguesa” e do capitalismo tem se manifestado em versões direitistas há tempos. A Alemanha de Hitler é o exemplo comumente mencionado, mas há vários outros. A África do Sul do período do apartheid era na prática um Estado unipartidário que corrompia a imprensa e o Judiciário do país a fim de excluir os negros da vida política e promover os interesses dos africâneres, sul-africanos brancos descendentes sobretudo de colonos holandeses, que não estavam prosperando sob a economia capitalista engendrada pelo Império Britânico.
Na Europa, dois partidos com tais características antiliberais agora estão no poder: o Lei e Justiça, na Polônia, e o Fidesz, de Viktor Orbán, na Hungria. Outros, na Áustria e na Itália, fazem parte de coalizões de governo ou gozam de amplo apoio. Esses partidos toleram a existência de oponentes políticos, porém empregam todos os meios possíveis, legais e ilegais, para reduzir a capacidade deles de atuar e para tolher a concorrência na política e na economia. Não gostam de investimento estrangeiro e desaprovam privatizações, salvo se em benefício de seus apoiadores. Comprometem a meritocracia. Assim como Donald Trump, ridicularizam as noções de neutralidade e profissionalismo, quer por parte de jornalistas, quer por parte de servidores públicos. Desencorajam empresas a fazer propaganda na mídia “oposicionista” – com o que querem dizer ilegítima.
Deve-se ressaltar que um dos primeiros atos de governo do Lei e Justiça, no início de 2016, foi alterar o estatuto do funcionalismo público, tornando mais fácil demitir profissionais e contratar amadores vinculados ao partido. O serviço diplomático polonês, além disso, pretende suprimir o requisito de que os diplomatas saibam duas línguas estrangeiras, uma exigência que certos candidatos diletos não conseguiam cumprir. O governo demitiu dirigentes de companhias estatais. Antes, o pessoal que exercia essas funções pelo menos tinha alguma experiência prévia em administração pública ou empresarial. Agora esses postos se encontram em grande medida ocupados por membros do Lei e Justiça, bem como por seus amigos e parentes. É exemplar o caso de Janina Goss, amiga de longa data dos Kaczyński: o ex-primeiro-ministro certa vez lhe pediu emprestada uma grande soma, aparentemente para pagar um tratamento de saúde para a mãe. Ambiciosa fabricante de geleias e conservas, hoje Goss ocupa a diretoria da maior companhia energética da Polônia, a estatal Polska Grupa Energetyczna, que emprega 40 mil pessoas.
Pode-se chamar de nepotismo, captura do Estado por interesses privados… Só que isso também pode ser qualificado em termos positivos: seria o fim das execráveis noções de meritocracia e competitividade, princípios que por definição nunca beneficiaram os menos afortunados. Um regime manipulado e sem competição haverá de parecer ruim caso a gente deseje viver numa sociedade dirigida pelos competentes. Só que, se esse não for nosso interesse primordial, qual o problema?
Caso se julgue, tal como ora julgam meus velhos amigos, que seria melhor para a Polônia se o país fosse dirigido por gente que mereça fazê-lo – ao proclamar aos quatro ventos certa forma de patriotismo, ao ser leal à liderança partidária ou ao representar, para reproduzir a expressão do próprio Kaczyński, um “polaco de melhor jaez” –, então um regime de partido único de fato seria mais justo do que uma democracia competitiva. Por que admitir que diversos partidos concorram em condições de igualdade se um só deles tem o direito moral de compor o governo? Por que admitir que empresas concorram no livre mercado se apenas algumas delas são leais ao partido e, por isso, dignas de riqueza?
Essa disposição é reforçada, na Polônia assim como na Hungria e em vários outros países outrora comunistas, pela generalizada impressão de que as regras da concorrência são falhas porque as reformas dos anos 90 teriam sido viciadas. Ou melhor: teriam permitido que muitíssimos ex-comunistas reciclassem seu poder político sob a forma de poder econômico.
Só que esse argumento, que se afigurava tão importante um quarto de século atrás, agora parece fraco e superficial. Desde 2005 pelo menos, a Polônia tem sido dirigida por presidentes e primeiros-ministros cujas biografias políticas tiveram início no movimento Solidariedade, de caráter anticomunista. Tampouco há algum monopólio empresarial ex-comunista expressivo na Polônia – pelo menos não no âmbito nacional, em que um monte de gente vem ganhando dinheiro sem se valer de ligações políticas especiais. O ex-comunista mais proeminente a atuar na direita política polonesa hoje em dia é Stanisław Piotrowicz, um parlamentar do Lei e Justiça que, talvez de modo previsível, se comporta como grande inimigo da independência do Judiciário.
No entanto, esse argumento sobre a persistente influência do comunismo guarda um apelo aos intelectuais direitistas da minha geração. Para alguns, parece explicar seus fracassos pessoais ou simplesmente sua má sorte. Nem todos os dissidentes nos anos 70 se tornaram primeiros-ministros, autores de sucesso ou respeitados intelectuais após 1989. E para muitos isso é fonte de candente ressentimento. Se você julga ser alguém que mereça mandar, então tem forte motivação para combater a elite, cooptar o Legislativo e engambelar a imprensa a fim de realizar suas ambições. Ressentimento, inveja e, sobretudo, a crença na injustiça do “sistema” são sentimentos importantes entre os intelectuais da direita polaca.
Isso não quer dizer que o regime antiliberal careça de um apelo genuíno. Ocorre, no entanto, que alguns de seus defensores também se beneficiam na vida privada – tanto que é extremamente difícil distinguir motivações pessoais e políticas. Foi isso que aprendi com o caso de Jacek Kurski, diretor da televisão estatal polonesa e principal ideólogo do regime antiliberal polonês. Ele começou sua trajetória no mesmo lugar e ao mesmo tempo que o irmão dele, Jarosław Kurski, que edita o maior e mais influente jornal liberal polonês. Eles são dois lados da mesma moeda.
Para entender os irmãos Kurski é fundamental entender de onde vieram: de Gdańsk, cidade portuária à beira do mar Báltico, onde guindastes de estaleiros assomam como cegonhas gigantescas. Os Kurski atingiram a maioridade no início dos anos 80, quando Gdańsk era o centro da atividade anticomunista na Polônia e um fim de mundo desgraçado, um lugar onde intriga e tédio se faziam medir em doses iguais.
Naquele momento e naquele local em particular, os irmãos Kurski se sobressaíam. O senador Bogdan Borusewicz, um dos mais importantes ativistas sindicais clandestinos da época, me disse que o colégio em que eles estudavam era conhecido por estar zrewoltowane – em revolta contra o regime comunista. Jarosław representava sua classe no parlamento estudantil e fazia parte de um grupo que estudava história e literatura conservadoras. Jacek, um pouquinho mais novo, era menos interessado no debate intelectual contra o comunismo e se assumia como ativista e radical. Logo depois da lei marcial, os dois irmãos iam a passeatas, bradavam palavras de ordem, agitavam bandeiras. Ambos atuaram em um jornal estudantil ilegal e depois no Solidarność, a publicação oposicionista, também ilegal, do Solidariedade, o sindicato de Gdańsk.
Em outubro de 1989, Jarosław foi assessor de imprensa do líder do Solidariedade, Lech Wałęsa, que após a eleição do primeiro governo não comunista da Polônia se sentia desanimado e ignorado: em meio ao caos gerado pelas reformas econômicas revolucionárias e pela rápida mudança política, não lhe cabia nenhuma função evidente. Em fins de 1990, Wałęsa acabou por se candidatar à Presidência e venceu – arrebatando gente que já se ressentia das concessões que acompanharam os trâmites da desintegração do comunismo na Polônia (com a deliberação de que ex-comunistas não seriam encarcerados e nem punidos, por exemplo). A experiência fez com que Jarosław se desse conta de que não gostava de política, em especial da política do ressentimento: “Eu entendi o que era de fato fazer política: promover intrigas terríveis, vasculhar sujeira, fazer campanhas difamatórias.” Também foi assim seu primeiro encontro com Kaczyński, “um mestre daquilo”: “Em seu pensamento político não tem nada desse negócio de acidente; se alguma coisa aconteceu, foi armação alheia. A palavra predileta dele é ‘conspiração’.” (Ao contrário de Jarosław, Jacek não falou comigo. Um conhecido em comum me passou seu celular. Enviei uma mensagem e em seguida liguei umas duas vezes, deixando recados. Liguei de novo e alguém gargalhou quando anunciei meu nome; aí repetiu meu nome em voz alta e disse: “É claro, é claro…” – o diretor da televisão estatal retornaria minha ligação, pensei. Não foi o que ocorreu.)
Jarosław acabou se demitindo e ingressando na Gazeta Wyborcza, jornal fundado à época das primeiras eleições parcialmente livres do país, em 1989. Na nova Polônia, tal como me relatou, ele podia ajudar a construir alguma coisa, a montar uma imprensa livre, e isso lhe bastava. Jacek se voltou para a direção oposta. “Você é um idiota”, disse ao irmão, ao saber que ele desistira de trabalhar para Wałęsa. Embora ainda estivesse cursando o ensino médio, Jacek já estava interessado numa carreira política própria e até aventou assumir o emprego do irmão, sob a justificativa de que ninguém ia reparar. Sempre fora – conforme me disse o irmão – “fascinado” pelos irmãos Kaczyński, por suas tramoias, esquemas, conspirações. Embora estivesse na direita, não se sentia particularmente interessado pelas particularidades do conservadorismo polaco, pelos livros ou debates que cativavam o irmão. De acordo com uma amiga dos dois, Jacek não tem nenhuma filosofia política de verdade. “Se ele é conservador? Acho que não, pelo menos não na definição estrita de conservadorismo. É alguém que quer estar no topo.” E desde o final dos anos 80 foi ali que almejou estar.
A história completa do que Jacek fez em seguida não caberia num único artigo. Ele acabou por se voltar contra Wałęsa, talvez porque Wałęsa não lhe tenha dado o posto que julgava merecer. Casou-se e divorciou-se; processou o jornal do irmão várias vezes e o jornal o processou de volta. Foi coautor de um livro inflamado e realizou um filme conspiratório sobre as forças secretas alinhadas contra a direita polonesa. Integrou, em diversas ocasiões, distintos partidos ou facções, por vezes bem periféricos e por vezes mais centristas. Tornou-se membro do Parlamento Europeu. Especializou-se na prática de campanha difamatória. É sabido que contribuiu para torpedear a campanha presidencial de Donald Tusk (que acabou por se tornar primeiro-ministro), em parte espalhando o boato de que um de seus avôs se alistara voluntariamente na Wehrmacht, o Exército nazista. Quando um pequeno grupo de jornalistas lhe perguntou sobre essa invenção, Jacek declarou que aquilo obviamente não era verídico, só que ciemny lud to kupi – numa tradução aproximada, “os camponeses ignorantes iam acreditar”. Borusewicz o caracteriza como um sujeito “sem escrúpulos”.
Jacek não conquistou a aclamação popular que julgava caber a um ativista adolescente do Solidariedade. E isso foi uma baita decepção. Jarosław afirma o seguinte a respeito do irmão: “Durante a vida inteira ele acreditou que lhe cabia uma grande carreira, que ia ser primeiro-ministro, que estava predestinado a realizar algo grandioso. Contudo, quis o destino que fracassasse a cada vez… Chegou à conclusão de que era tudo uma grande injustiça.” Jarosław, por sua vez, teve uma trajetória de sucesso e se tornou uma figura do establishment.
Em 2015, Kaczyński arrancou Jacek da relativa obscuridade da política periférica e o nomeou diretor da televisão estatal. Desde sua chegada à Telewizja Polska, o Kurski mais novo transformou a emissora, demitindo jornalistas renomados e reorientando radicalmente suas diretrizes. Embora a emissora seja financiada pelos contribuintes, os telejornais já nem procuram aparentar objetividade ou neutralidade. Em abril deste ano, por exemplo, a emissora fez uma publicidade de si mesma. Também exibiu o trecho de uma entrevista coletiva em que o líder oposicionista Grzegorz Schetyna é perguntado sobre o que seu partido realizou durante os oito anos em que esteve no governo, de 2007 a 2015. Schetyna faz uma pausa e franze o cenho; o vídeo dá ênfase à pausa dele e então termina – como se ele não tivesse nada a dizer.
Na verdade, Schetyna falou por vários minutos e relacionou uma série de realizações – massiva construção de estradas, investimentos rurais, avanços na política externa. Só que aquele trecho do vídeo manipulado foi considerado um sucesso de tais proporções que ficou no topo do Twitter da Telewizja Polska por vários dias. Sob o Lei e Justiça, a televisão estatal não apenas apresenta propaganda do regime como se compraz com fazê-lo. Não apenas altera e distorce informações como se regozija com o embuste.
Desprestigiado no decorrer de tantos anos, Jacek enfim se desforra. Está bem ali onde acha que merece estar: no centro das atenções, o radical lança metafóricos coquetéis molotov na multidão. O regime antiliberal de partido único lhe convém à perfeição. E, se o comunismo não está mais disponível como um autêntico inimigo para que ele e seus colegas o combatam, é preciso encontrar novos inimigos.
De George Orwell a Arthur Koestler, os escritores europeus do século XX ficaram obcecados com a ideia da Grande Mentira. Os vastos construtos ideológicos que eram o comunismo e o fascismo, os cartazes a conclamar fidelidade ao Partido ou ao Líder, os camisas-pardas e os camisas-negras marchando em formação, as passeatas à luz de tochas, o terror policial – essas Grandes Mentiras tão absurdas e desumanas requeriam que se impusesse violência prolongada e se mantivesse a ameaça de violência. Requeriam doutrinação, controle absoluto da cultura, politização do jornalismo, dos esportes, da literatura e das artes.
Em comparação, os movimentos políticos polarizados da Europa do século XXI demandam bem menos de seus adeptos. Não requerem crença numa ideologia amadurecida, de maneira que não requerem uso de violência ou terror policial. Não forçam pessoas a acreditar que preto seja branco, que guerra seja paz e que estabelecimentos agrícolas estatais atingiram 1.000% da produção planejada. A maioria deles não se vale de propaganda conflitante com a realidade cotidiana. Ainda assim, todos dependem, senão de uma Grande Mentira, daquilo que o historiador Timothy Snyder certa vez me disse que caberia denominar Mentira de Médio Porte, ou talvez de um punhado de Mentiras de Médio Porte. Em outras palavras, todos esses movimentos incitam seus seguidores a se ocupar, pelo menos em parte, de uma realidade alternativa. Por vezes essa realidade alternativa se desenvolve de forma orgânica; no mais das vezes é formulada meticulosamente, recorrendo a modernas técnicas de marketing, segmentação de audiência e campanhas na mídia social.
Os norte-americanos estão decerto familiarizados com os meandros pelos quais uma mentira pode intensificar uma polarização e inflamar a xenofobia: Donald Trump ingressou na política americana graças à falsa suposição de que o presidente Barack Obama não teria nascido nos Estados Unidos – uma teoria conspiratória cuja força foi gravemente subestimada na ocasião e que abriu caminho para outras mentiras, desde a dos “estupradores mexicanos” até a do “Pizzagate”. Só que na Polônia, bem como na Hungria, agora temos exemplos do que acontece quando uma Mentira de Médio Porte – uma teoria conspiratória – é propagada por um partido político inicialmente como o principal item de sua campanha eleitoral e, depois, na gestão do governo, com toda a força de um aparato estatal moderno e centralizado a sustentá-la.
Na Hungria, a mentira é convencional: trata-se da crença, compartilhada pelo governo russo e pela alt-right americana, nos poderes sobre-humanos de George Soros – o bilionário judeu húngaro-americano estaria tramando para arrasar a nação mediante propositada importação de migrantes, muito embora na Hungria não existam tais migrantes.
Na Polônia, a mentira pelo menos é sui generis. Trata-se da teoria conspiratória de Smolensk: a crença de que um nefando complô teria derrubado o avião que transportava o presidente em abril de 2010. O boato tem especial força no país porque o desastre contou com sinistras reverberações históricas. O presidente que morreu, Lech Kaczyński, ia a um evento em memória do massacre em Katyn, o local onde, em 1940, Stálin assassinou mais de 21 mil poloneses – uma grande porção da elite do país. A bordo do avião estavam dezenas de militares de alta patente e políticos, muitos deles conhecidos meus. Meu marido acha que conhecia todo mundo no desastre, inclusive os comissários de bordo.
Uma enorme onda de comoção se seguiu ao acidente. Uma espécie de histeria assolou a nação, algo semelhante à loucura que tomou conta dos Estados Unidos após o 11 de Setembro. Locutores de tevê se apresentavam com fitas de luto; amigos reunidos em nosso apartamento em Varsóvia falavam sobre a repetição da história naquela sombria e úmida floresta russa. A princípio, a tragédia parecia unificar o país. Afinal de contas, políticos de todos os principais partidos estavam no avião e realizavam-se um sem-número de funerais em várias cidades. Até Vladimir Putin, então primeiro-ministro russo, parecia comovido. Foi a Smolensk para se encontrar com Tusk, primeiro-ministro polonês por ocasião do desastre. No dia seguinte, um dos canais de tevê mais populares da Rússia exibiu Katyn, um filme polonês emocionante e antissoviético dirigido por Andrzej Wajda, o mais destacado diretor do país. Jamais se apresentou algo do gênero com tamanha amplitude na Rússia, nem antes nem depois.
Só que o desastre não uniu a população. Tampouco a investigação de sua causa.
Equipes de peritos poloneses estiveram no local naquele mesmo dia. Fizeram o possível para identificar os corpos, muitos dos quais reduzidos a cinzas. Examinaram os destroços. Quando encontraram a caixa-preta, puseram-se a transcrever a gravação das conversas na cabine. À medida que surgia, a verdade se mostrava cada vez mais incômoda para o partido Lei e Justiça e seu líder, o irmão gêmeo do falecido presidente. O avião decolara com atraso; o presidente provavelmente estava com pressa de pousar, já que pretendia aproveitar a viagem para lançar sua campanha de reeleição. Havia cerração em Smolensk, a qual não contava com nenhum aeroporto propriamente dito, apenas uma pista de pouso em meio à floresta; os pilotos cogitaram desviar o avião, o que implicaria um percurso de várias horas até o local da cerimônia. Depois que o presidente fez um breve contato telefônico com o irmão, seus assessores aparentemente pressionaram os pilotos para que pousassem. Alguns funcionários, contrariando o protocolo, zanzavam pela cabine durante o voo. Também ao arrepio do protocolo, o chefe da Força Aérea foi se sentar ao lado dos pilotos. Zmieścisz się śmiało – “Sejam valentes que vão conseguir” –, ele disse. Dali a segundos o avião colidiu com topos de bétulas, rodopiou e arrebentou no solo.
De início, Jarosław Kaczyński parecia julgar que o desastre fora um acidente. “A culpa é de vocês e dos tabloides”, ele disse a meu marido, então ministro das Relações Exteriores, que o informou do desastre. Com isso queria dizer que a culpa era do governo, que se recusara a comprar novas aeronaves porque teria se deixado intimidar pela imprensa populista. Só que, à medida que a investigação se desenrolava, as averiguações aeronáuticas não eram de seu agrado. Não havia nada de errado com o avião.
Talvez Kaczyński, assim como tanta gente que se fia em teorias conspiratórias para atribuir sentido a tragédias fortuitas, simplesmente não pudesse admitir que seu querido irmão morrera à toa; talvez não pudesse admitir o fato ainda mais penoso de que os indícios davam a entender que Lech e sua equipe teriam pressionado os pilotos a pousar, o que acabara por causar o desastre. Ou talvez tivesse percebido, assim como Donald Trump, a força de uma teoria conspiratória para ajudá-lo a obter poder.
Do mesmo modo que Trump usou a falsa suposição sobre o nascimento de Barack Obama e a fictícia ameaça de criminalidade de imigrantes para motivar a base de seus apoiadores, Kaczyński se valeu da tragédia de Smolensk para arrebatar seus seguidores e convencê-los a não confiar no governo nem na mídia. Em certas ocasiões dava a entender que o governo russo derrubara o avião. Em outras, culpava o partido anteriormente na situação (agora o maior partido de oposição) pela morte do irmão: “Vocês o destruíram, assassinaram-no! Escória!”, gritou ele no Parlamento certa vez.
No entanto, nenhuma de suas acusações poderia ser provada. Talvez para se distanciar um pouco das mentiras que precisavam ser contadas, confiou a um de seus mais antigos e esquisitos companheiros o serviço de promover a teoria conspiratória. Antoni Macierewicz faz parte da geração de Kaczyński e é um anticomunista de longa data, muito embora tenha alguns amigos e hábitos esdrúxulos. Seu olhar fixo estranho e suas obsessões – chegou a considerar plausíveis os Protocolos dos Sábios de Sião – levaram o Lei e Justiça a fazer uma promessa eleitoral em 2015: garantiram que Macierewicz não seria ministro da Defesa.
Contudo, assim que o partido venceu, Kaczyński quebrou a promessa e nomeou Macierewicz, que logo passou a institucionalizar a mentira acerca de Smolensk. Montou uma nova comissão de investigação composta por figuras excêntricas, dentre elas um etnomusicólogo, um piloto aposentado, um psicólogo, um economista russo e outras pessoas sem nenhum conhecimento sobre acidentes aéreos. O relatório oficial previamente apresentado foi excluído de um website do governo. A polícia entrou nas residências dos peritos em aviação que haviam deposto durante a primeira investigação, interrogaram-nos e confiscaram seus computadores. Quando Macierewicz foi a Washington para se reunir com os equivalentes americanos da sua pasta no Pentágono, a primeira coisa que fez foi perguntar se a inteligência dos Estados Unidos tinha alguma informação secreta sobre o acidente. Disseram-me que a reação foi uma generalizada preocupação com o estado mental do ministro.
Quando, algumas semanas após a eleição, instituições europeias e grupos de direitos humanos passaram a reagir às ações do Lei e Justiça, o governo focou as intervenções no Judiciário e nos meios de comunicação, não na institucionalização da teoria conspiratória sobre Smolensk – a qual, diga-se francamente, era bizarra demais para a compreensão de gente de fora. Entretanto, a decisão de colocar uma fantasia no âmago das políticas governamentais foi de fato a fonte das ações autoritárias que se seguiram.
Muito embora a comissão de Macierewicz jamais tenha apresentado uma explicação alternativa crível para o acidente, a mentira acerca de Smolensk preparou a base moral para o plantio de outras mentiras. Quem aceitasse aquela teoria rebuscada, sem qualquer comprovação, podia aceitar o que quer que fosse. Podia aceitar, por exemplo, a promessa furada de que Macierewicz não seria incorporado ao governo. Podia aceitar – se bem que o Lei e Justiça em teoria seja um partido “patriótico” e antirrusso – as decisões de Macierewicz de destituir vários comandantes militares, revogar contratos de fornecimento de armas, promover gente com estranhos vínculos russos, ordenar uma incursão numa instalação da OTAN em Varsóvia no meio da madrugada. A mentira também proporcionou aos apoiadores da extrema direita uma base ideológica para tolerar outros abusos. Quaisquer que fossem os erros que o partido cometesse, os regulamentos que ele descumprisse, pelo menos a “verdade” acerca de Smolensk ia enfim ser contada.
A teoria conspiratória sobre o acidente, assim como a teoria conspiratória húngara sobre importação de migrantes, servia a outro propósito: para uma geração mais jovem que já não se recordasse do comunismo e para uma sociedade em que os ex-comunistas tinham em grande medida sumido da vida política, ela oferecia um novo motivo para desconfiar dos políticos, empresários e intelectuais que haviam emergido dos embates dos anos 90 e então dirigiam o país. E, sobretudo, oferecia um meio de definir uma elite nova e melhor. Não havia necessidade alguma de concorrência, exames de admissão ou um currículo tinindo de realizações. Qualquer um que professe crença na mentira acerca de Smolensk é por definição um autêntico patriota – e pode muito bem, aliás, qualificar-se para um posto no governo.
O apelo emocional de uma teoria conspiratória está em sua simplicidade. Ao explicar fenômenos complexos, esclarecer acasos e acidentes, ela propicia a sensação gratificante de se ter acesso privilegiado ou especial à verdade. Só que – uma vez mais – é muito difícil separar o apelo da conspiração dos modos como afeta as carreiras dos que a promovem. Para aqueles que se tornam guardiões do regime de partido único, que reiteram e fomentam as teorias conspiratórias oficiais, a admissão de tais explicações singelas traz mais uma recompensa: poder.
Mária Schmidt não estava na minha festa, mas eu a conheço há bastante tempo. Ela me convidou para a inauguração do Terror Háza – Museu Casa do Terror – em Budapeste em 2002, e desde então estive mais ou menos em contato com ela. O museu que Schmidt dirige, um dos mais inovadores da porção oriental da Europa, explora a história do totalitarismo na Hungria.
Desde o dia de sua inauguração também tem recebido duras críticas. Muitos condenaram a primeira sala – numa das paredes há um painel de televisores exibindo propaganda nazista; na parede oposta, outro, mostrando propaganda comunista. Em 2002, ainda era um choque colocar os dois regimes lado a lado, se bem que agora talvez seja menos. Outros ressaltaram que os crimes do fascismo não receberam o devido peso e espaço, se bem que, como os comunistas administraram a Hungria por muito mais tempo, o material sobre eles é mais farto. Julguei positivo que mostrassem húngaros comuns colaborando com os dois regimes – na minha concepção, isso podia ajudar o país a reconhecer sua responsabilidade pelas próprias condições políticas e evitar a tacanha armadilha nacionalista de sempre jogar a culpa em cima de gente de fora.
No entanto, é justamente nessa tacanha armadilha nacionalista que a Hungria vem caindo. O acerto de contas tardio com seu passado comunista – ao erigir museus, ao realizar cultos em memória dos mortos, ao dar nome a malfeitores – não ajudou, ao contrário das minhas expectativas, a sedimentar respeito pelo estado de direito, pelos limites da ação do Estado, pelo pluralismo. Ao contrário, passados dezesseis anos da inauguração do Terror Háza, o partido da situação não respeita limites de espécie alguma. Tem ido bem mais além do que o Lei e Justiça ao politizar os meios de comunicação estatais e ao desmantelar a mídia privada, logrando esse último intento mediante coações e obstrução de acesso à publicidade. Vem constituindo uma nova elite empresarial leal ao primeiro-ministro Viktor Orbán. Um empresário húngaro que prefere não ser identificado contou que logo depois que Orbán assumiu o governo pela primeira vez, cupinchas do regime exigiram que ele lhes vendesse sua empresa a um preço baixo; visto que se recusou, providenciaram “inspeções fiscais” e outras formas de perseguição, bem como uma campanha de intimidação que o obrigou a contratar guarda-costas. Acabou vendendo seu patrimônio e deixando o país.
Assim como o governo polaco, o Estado húngaro fomenta uma Mentira de Médio Porte: produz ampla propaganda que joga a culpa dos problemas sobre migrantes muçulmanos inexistentes, sobre a União Europeia, sobre George Soros. Schmidt – historiadora, acadêmica e curadora de museus – está entre os principais articuladores daquela mentira. Em seu blog, ela publica com regularidade longas e furiosas invectivas contra Soros, contra a Universidade Centro-Europeia, em Budapeste, fundada com recursos dele, e contra “intelectuais de esquerda” – para ela, sobretudo democratas liberais, num leque que vai da centro-esquerda à centro-direita.
Ironias e paradoxos perpassam sua vida. Schmidt é uma beneficiária preferencial da transição supostamente conspurcada da Hungria: seu falecido marido fez fortuna no mercado imobiliário pós-comunista, graças à qual ela mora numa casa deslumbrante nas colinas de Buda. Ainda que tenha conduzido uma campanha midiática voltada a desqualificar a Universidade Centro-Europeia, foi por ela que seu filho se graduou. E ainda que saiba muito bem o que sucedeu no país nos anos 40, ao assumir o comando da Figyelő, uma reputada revista húngara, seguiu passo a passo o roteiro do Partido Comunista: substituiu os jornalistas independentes por redatores confiavelmente pró-governo.
A revista ainda é “de propriedade privada”, só que salta aos olhos quem a sustenta. Certa edição que destacava um ataque a ONGs húngaras – a capa as equiparava ao Estado Islâmico – trazia uma dúzia de páginas de anúncios pagos pelo governo – do Banco Nacional Húngaro, do Ministério das Finanças, da campanha estatal anti-Soros. É uma reinvenção da imprensa pró-governo do regime unipartidário, com o mesmo tom debochado e cínico que as publicações comunistas outrora empregavam.
Schmidt concordou em falar comigo – depois de me tachar de “arrogante e ignorante” – sob a condição de que eu escutasse suas objeções a um artigo meu que acabara de sair no Washington Post. Peguei um avião para Budapeste. Previsivelmente, minha expectativa – uma conversa interessante – se mostrou inviável. Embora seu inglês seja excelente, ela preferiu recorrer a um tradutor. Chamou um rapaz um tanto assustado, que a julgar pela transcrição deixou de fora consideráveis trechos do que ela disse. E, ainda que ela me conhecesse fazia quase duas décadas, jogou um gravador em cima da mesa, o que interpretei como sinal de desconfiança.
Então passou a reproduzir os mesmos argumentos que figuravam em seu blog. Como principal evidência de que George Soros é “dono” do Partido Democrata norte-americano, citou um episódio do Saturday Night Live. Como comprovação de que os Estados Unidos seriam “uma ferrenha potência colonizadora fortemente ideologizada”, citou um pronunciamento de Barack Obama em que ele mencionava que uma fundação húngara se propusera a erigir uma estátua em homenagem a Bálint Hóman, que escreveu as leis antijudaicas da Hungria nas décadas de 30 e 40. Reiterou sua opinião de que a imigração representa grave ameaça à Hungria e se irritou quando lhe perguntei, várias vezes, onde estariam os imigrantes. “Estão na Alemanha”, retrucou, ríspida, asseverando que os alemães iam acabar obrigando a Hungria a receber de volta “aquela gente”.
Schmidt corporifica aquilo que o escritor búlgaro Ivan Krastev recentemente qualificou como o anseio de muitos europeus centro-orientais de “se desvencilhar da dependência colonial já implícita no projeto de ocidentalização”, de se livrar do rebaixamento de terem sido imitadores, seguidores do Ocidente, em vez de fundadores. Schmidt disse que a mídia ocidental, na qual eu presumivelmente estou incluída, “trata os que estão abaixo com a mesma superioridade com que tratava as colônias”. A opinião ocidental sobre o antissemitismo, a corrupção e o autoritarismo húngaros seria “colonialismo”. Apesar de se devotar à singularidade da Hungria e ao fomento da “hungrianidade”, Schmidt tem emprestado boa parte de sua ideologia em geral do Breitbart News, um site norte-americano de extrema direita – inclusive a descrição caricatural das universidades norte-americanas e as piadas debochadas sobre os “banheiros transexuais”. Até convidou Steve Bannon e Milo Yiannopoulos, então ligados ao site, a irem a Budapeste.
Ao escutá-la, eu me convencia de que em momento nenhum suas opiniões “mudaram”. Ela jamais se voltou contra a democracia liberal, uma vez que jamais acreditou nela ou ao menos achou que ela fosse tão importante assim. Para Schmidt, o antídoto do comunismo não é a democracia, mas uma visão de soberania nacional própria à corrente de oposição a Dreyfus. E caso a soberania nacional assumisse a forma de um regime cuja elite se definisse não conforme seu talento, mas conforme seu “patriotismo” – o que na prática significa boa vontade de se sujeitar aos ditames de Orbán –, para ela estaria tudo bem.
O ceticismo de Schmidt é extremo. O auxílio de Soros aos refugiados sírios não pode ser filantropia: deve provir de um profundo desejo de arrasar a Hungria. A política de Angela Merkel em relação aos refugiados tampouco pode decorrer de um desejo de ajudar as pessoas. “Acho que isso é puro papo furado”, ela afirmou. “Eu diria que ela quer demonstrar que desta vez os alemães são os bonzinhos. E que podem passar um sermão sobre humanismo e moralidade em todo mundo. Para os alemães não importa o que vão dizer em seus sermões ao resto do mundo: eles simplesmente têm de passar um sermão e ponto.”
É evidente que a Mentira de Médio Porte está dando certo para Orbán – assim como funciona para Donald Trump –, nem que seja por chamar a atenção do mundo para sua retórica e não para suas ações. Nós duas passamos a maior parte de nossa desagradável conversa de duas horas discutindo sobre questões disparatadas. George Soros seria mesmo o dono do Partido Democrata? Imigrantes inexistentes – que de todo modo não querem viver na Hungria – seriam uma ameaça para a nação? Em nenhum momento discutimos a influência da Rússia no país, que agora se vê bastante fortalecida. Não tratamos de corrupção, nem das incontáveis maneiras (documentados pelo Financial Times e por outros órgãos) pelas quais pessoas próximas de Orbán têm se beneficiado de subsídios europeus e de mutretas legislativas (um partido governante que vem politizando o sistema judiciário e tolhendo os meios de comunicação é um partido que se vê em condições bem mais cômodas de roubar).
No fim das contas, sequer vim a saber muito a respeito da própria Schmidt. Em Budapeste há quem a julgue motivada pela compulsão por riqueza e poder. Zsuzsanna Szelényi, uma parlamentar que já foi filiada ao Fidesz, o partido de Orbán, mas que agora é independente, foi uma das várias pessoas que me disseram que “na Hungria ninguém consegue ficar rico sem ter alguma relação com o primeiro-ministro”. Graças a Orbán, Schmidt supervisiona o museu e alguns institutos históricos, o que lhe confere a faculdade ímpar de moldar a memória dos húngaros, atividade que muito a agrada. Talvez ela de fato julgue que a Hungria esteja diante de uma grave ameaça existencial sob a forma de George Soros e de alguns sírios invisíveis. Ou talvez ela apenas seja tão cínica acerca de seu próprio posicionamento quanto acerca de seus adversários e tudo se trate de uma manobra complexa.
O que aconteceu depois que a entrevistei já dá uma pista. Sem a minha permissão, ela publicou em seu blog uma transcrição de nossa conversa – bastante editada e apresentada como uma entrevista dela comigo. A transcrição também figurou, em inglês, no site oficial do governo húngaro. Só que a “entrevista”, é claro, não me foi favorável. Não passou de uma atuação para comprovar que Schmidt era leal ao regime e estava disposta a defendê-lo. O que é fato.
Não faz muito tempo, jantando num restaurante de frutos do mar junto a uma praça horrorosa de Atenas, descrevi minha festa de Ano-Novo para um cientista político grego. Ele riu de mim. Ou melhor, riu junto comigo: não pretendia ser grosseiro. O que eu chamava de polarização não era nenhuma novidade. “O momento liberal pós-1989 foi uma exceção”, disse Stathis Kalyvas. Polarização é algo normal. E, eu acrescentaria, ceticismo quanto à democracia liberal também é normal. E o apelo do autoritarismo é eterno.
Dentre outras coisas, Kalyvas é autor de vários livros importantes sobre guerras civis, inclusive a Guerra Civil da Grécia dos anos 40, um dos muitos momentos da história europeia em que segmentos políticos radicalmente divergentes pegaram em armas e passaram a se matar uns aos outros. Só que na Grécia “guerra civil” e “ordem civil” são, no mais das vezes, termos relativos. Na ocasião daquele jantar, alguns intelectuais gregos passavam por um momento centrista. Uma porção de gente de Atenas me contou que de repente era de bom-tom ser “liberal”, com o que se queria dizer nem comunista nem autoritário, nem de extrema esquerda, como o Syriza, o partido da situação, nem de extrema direita, como seu parceiro de coalizão nacionalista, o partido Gregos Independentes. Jovens avançados se qualificavam como “neoliberais”, assimilando um termo que pouquíssimos anos antes era uma heresia.
Só que nem os centristas mais otimistas estavam convencidos de que aquela mudança ia perdurar. “Sobrevivemos aos populistas de esquerda”, disseram-me várias pessoas, melancolicamente, “e agora estamos nos preparando para os populistas de direita”. Fazia tempo que estava se armando uma discussão feia em torno do nome e do estatuto da Macedônia, a ex-república iugoslava vizinha da Grécia; logo depois que deixei o país, o governo grego expulsou alguns diplomatas russos por buscarem fomentar histeria anti-Macedônia no norte do país. Qualquer que seja a estabilidade que uma nação alcance, sempre tem alguém, na pátria ou no estrangeiro, com motivos para subvertê-la.
Quem avisa amigo é. Os norte-americanos, com sua pujante trajetória fundadora, sua singular reverência pela Constituição, seu relativo isolamento geográfico e seus dois séculos de êxito econômico, há tempos se persuadiram de que a democracia liberal, uma vez conquistada, não pode ser alterada. A história americana é contada como um caso de progresso, sempre e cada vez mais adiante – a Guerra Civil representou um nó no meio desse vetor, um obstáculo que foi superado. Na Grécia a história não se afigura de modo linear, mas circular. Tem-se democracia liberal seguida de oligarquia. Então vem democracia liberal de novo. Em seguida, tem-se subversão estrangeira, tentativa de golpe comunista, guerra civil e ditadura. E assim por diante, desde os tempos da república ateniense.
A história também se afigura de modo circular em outros cantos da Europa. A divisão que tem despedaçado a Polônia guarda uma semelhança impressionante com a divisão que cindiu a França na esteira do caso Dreyfus. O linguajar empregado pela direita radical europeia – o chamado à “revolução” contra as “elites”, as fantasias de violência “purificante” e de um conflito cultural apocalíptico – é sinistramente semelhante ao linguajar outrora empregado pela esquerda radical europeia. A presença de intelectuais descontentes – gente para quem as regras não são justas e as pessoas erradas são influentes – nem é exclusivamente europeia. O escritor venezuelano Moisés Naím visitou Varsóvia poucos meses depois que o Lei e Justiça chegou ao poder. Pediu-me que descrevesse os novos dirigentes polacos: Pessoalmente, como eram? Enumerei alguns adjetivos: “raivosos”, “vingativos”, “rancorosos”. “Parecem”, ele disse, “ser iguaizinhos aos chavistas.”
Na verdade, a discussão sobre quem deve governar nunca termina, sobretudo numa era em que se rejeitou a aristocracia e deixou-se de supor que a liderança seja herdada do berço ou que a classe dominante seja endossada por Deus. Alguns de nós, na Europa e na América do Norte, temos optado pela ideia de que variadas formas de competição democrática e econômica sejam a alternativa mais correta ao poder legado ou imposto.
Contudo, não deveríamos nos assombrar – eu não deveria me assombrar – quando os princípios da meritocracia e da competitividade são contestados. Afinal de contas, regimes democráticos e livres mercados podem gerar resultados insatisfatórios, especialmente quando mal regulados, ou se ninguém confia nos reguladores, ou ainda quando agentes ingressam na disputa a partir de pontos de partida muito distintos. Mais cedo ou mais tarde os perdedores contestarão o mérito da competição em si.
Mais precisamente, mesmo quando incentivam o talento e geram mobilidade ascendente, os princípios da competitividade não necessariamente resolvem questões mais profundas sobre identidade nacional ou atendem o desejo humano de integração a uma comunidade moral. O regime autoritário ou mesmo o semi-autoritário – o regime de partido único, antiliberal – propiciam essa esperança: de que a nação será conduzida pelas melhores pessoas, as que merecem mandar, os quadros do partido, os que acreditam na Mentira de Médio Porte. Para tanto pode ser preciso subjugar a democracia, corromper a atividade empresarial ou arrasar o sistema judiciário. Mas nada disso é impossível para quem julga estar entre os que merecem mandar.
Da Piauí