Escolas particulares resistirão ao “escola sem partido”
Caso seja aprovada pelo Congresso Nacional, a lei que limita o que o professor pode falar nas escolas e veta abordagens de identidade de gênero na educação, obrigando ainda a colocação de um cartaz nas salas de aulas, também impactará a rede privada.
Conhecido como Escola sem Partido, o projeto tramita no Congresso e deve ser debatido novamente nesta quarta-feira (7) em comissão especial que o analisa.
A procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat disse à Folha que, se aprovado e sancionado, todas as escolas deverão seguir o que prevê o texto. “Não não há diferença substancial entre escolas neste aspecto”, diz.
Duprat é autora de nota técnica encaminhada ao Congresso em 2016 em que afirma ser inconstitucional o teor do projeto de Escola Sem Partido. A iniciativa subverteria a ordem constitucional ao impedir o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, negar a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem, além de contrariar a laicidade do Estado ao permitir no espaço público da escola visões morais e religiosas particulares.
A tendência é que o STF barre a legislação, visão reforçada, segundo a procuradora Deborah Duprat, pelo posicionamento do STF no julgamento das operações policiais nas universidades nas vésperas do segundo turno.
Projetos de lei similares em municípios têm sido derrubados pela Justiça, como ocorreu, por exemplo, em Jundiaí, Rio Preto (SP) e Curitiba (PR).
De acordo com a professora da USP Nina Ranieri, que é especialista em direito educacional, as escolas de educação básica não têm um grau de autonomia assegurado como as universidades.
“Mas, se a lei for aprovada, ela fatalmente terá sua constitucionalidade questionada”, diz ela. “As escolas particulares contrárias aos princípios poderiam entrar com mandado de segurança pedindo suspensão imediata das medidas”, completa.
O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) já disse ser favorável ao projeto. Os filhos dele foram pioneiros ao ingressar no Legislativo do Rio, em 2014, com projetos de Escola sem Partido.
No programa de governo de Bolsonaro, a suposta doutrinação política dos professores é apontada como um dos maiores problemas da educação. Também afirmou que a implementação do ensino a distância na educação básica seria uma solução para acabar com o marxismo.
A entidade que representa escolas particulares em todo país, a Fenep, não tem posição definida a favor ou contra o projeto. Mas segundo, Ademar Batista Pereira, presidente da Fenep, o debate é bem-vindo. “É um bom debate, mas não dá para criminalizar os professores. O professor é um aliado da educação”, diz ele, segundo quem a proposta deve ser melhor debatida e não seria positivo “interferir demais” no trabalho docente.
Para Pereira, entretanto, “a doutrinação de esquerda existe”. A Fenep, segundo ele, não tem estudos que comprovem a dimensão de uma suposta doutrinação de esquerda. O presidente da Fenep diz ainda que a escola não é o lugar para educação sexual e a abordagem das temáticas de gênero. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, aprovados nos anos 1990, prevê a educação sexual como tema transversal.
Uma das escolas mais tradicionais de São Paulo, o colégio Bandeirantes divulgou nesta quarta-feira (7) carta à comunidade em que defende a liberdade de pensamento, de expressão e de opinião de seus alunos, professores e funcionários, repudiando totalmente qualquer atitude ameaçadora ou intimidadora que fira esse direito, além do respeito à diversidade.
“Nos últimos meses, no entanto, o ambiente escolar passou a ser um espaço de reprodução das polaridades políticas existentes na sociedade brasileira. Em um lugar como o Band, caracterizado pela diversidade de religiões, de etnias, de classes sociais, de gêneros e de ideologias, não há espaço para o ódio, sendo fundamental a adoção de um meio essencial para se lidar com essas diferenças: o respeito”, diz a nota do Colégio Bandeirantes.
Em debate realizado na Folha em 2016, o diretor do colégio Bandeirantes, Mauro Aguiar, se posicionou contrário ao que prevê o projeto Escola sem Partido.
O projeto em discussão no Congresso defende que os professores não devem aproveitar da audiência cativa dos alunos para “promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”.
O mais contundente no texto é que ele proíbe o desenvolvimento de políticas de ensino, menção em currículos ou existência de disciplina, mesmo que facultativa, que abordem “o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”.
“O discurso é muito sobre o tal do aparelhamento, mas na verdade a grande preocupação é de natureza moral e religiosa”, diz Deborah Duprat.
Toda escola deve ter cartaz com deveres do professor em salas de aula, sala de professores e em outros locais do ambiente escolar. Nas instituições de educação infantil, o cartaz só precisa estar na sala dos professores.
No cartaz, estão previstos seis deveres dos professores, como não fazer propaganda político-partidária nem incentivar alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas. Diz ainda que o professor respeitará “o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Também consta no cartaz que o professor não permitirá “que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula”.
Reportagem da Folha publicada no mês passado mostrou como o movimento contra suposta doutrinação ideológica incorporou pauta mundial da Igreja Católica na guerra contra o que seria um ataque ao conceito de família.
Segundo estudiosos, a abordagem educacional sobre questões de gênero pode colaborar com o combate a problemas como gravidez na adolescência, machismo, violência contra mulher e homofobia. A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
O próprio termo “ideologia do gênero”, citado também no projeto de lei, foi gestado entre os que atacam essas discussões, segundo estudos. Não há entre educadores, portanto, quem defenda uma “ideologia de gênero” e a expressão nunca foi usada em documentos educacionais.
Mesmo que ainda não haja uma lei vigente, professores já têm sofrido pressões. No mês passado, um docente de história em Natal foi ameaçado de morte depois que o pai de um aluno entendeu como ataque político uma explicação dele sobre a Lei Rouanet. Uma escola tradicional do Rio proibiu um livro que foi considerado comunista por pais de alunos (a obra “Meninos sem pátria” retrata vida de família exilada na ditadura).
Uma deputada eleita em Santa Catarina chegou a criar um canal de denúncias contra professor e, em vídeo disseminado na internet, o próprio Bolsonaro sugere que alunos filmem professores. Bolsonaro já disse em entrevista gravada que é homofóbico.
Na semana passada, a professora de história Juliana Lopes, 38, relatou no Facebook que fora demitida do Colégio Liceu Jardim, em Santo André, grande São Paulo, como punição por ter falado de política na sala de aula.
“Por várias vezes [os alunos] quiseram que eu abrisse meu voto, mas eu sempre me esquivava, até que sinalizei em quem não votaria em hipótese alguma, Bolsonaro, obviamente, uma vez que seu projeto de país era excludente e, como ele mesmo diz, para as maiorias”, escreveu.
Segundo ela, pais de alunos teriam pressionando a escola contra sua postura e de outros professores. Lopes afirma que, um dia após a eleição, não teria se sentido bem e foi embora da escola antes do fim das aulas. No dia seguinte, foi demitida.
“Algumas semanas antes do primeiro turno a direção foi na sala de professores avisar que havia um grupo de pais que estavam se mobilizando”, disse à Folha. “É tudo muito nebuloso. No calor das eleições, a escola não teve muita habilidade e acabou cedendo a pressões”.
À reportagem, a direção do colégio Liceu Jardim atribuiu a demissão exclusivamente ao fato de ela ter abandonado a escola durante o dia. Segundo diretora do fundamental 2 e ensino médio do colégio, Patrícia Teixeira Ribeiro Passos, a professora “vinha sendo avaliada” por conta do teor das aulas, mas a demissão se deu pela falta de comprometimento.
“Ela tinha ido embora e simplesmente largou a sala no dia que tinha nove aulas. O que é mais agravante: na véspera de grandes vestibulares”, diz. “Uma professora que vira no meio de uma prova e fala que não tem condições emocionais e que ela teme pela vida dela e dos alunos [após a vitória de Bolsonaro], não posso aceitar como uma coisa tranquila”.
Também no Facebook, a escola publicou nota em que relata a postura política da professora e explica a demissão.
“Apesar de orientar e reorientar a professora sobre a linha apartidária da escola, recebemos observações recorrentes da nossa comunidade de pais e mesmo de nossos alunos sobre o prejuízo do conteúdo programático, decorrente do excesso de tempo de aula destinado por ela à abordagem do cenário político, com expresso viés partidário”, diz a nota.
“O fato que desencadeou o desvínculo da professora ocorreu nesta segunda-feira. Para surpresa de todos, alegando que diante do resultado das eleições não teria condições emocionais de prosseguir com suas atividades docentes, unilateralmente deixou seu local de trabalho, apesar de ainda ter nove aulas para serem ministradas.”
O Sinpro (sindicato dos professores) do ABC realizou na manhã de terça-feira (6) manifestação em frente à escola por entender que houve perseguição. A professora Juliana Lopes, cuja publicação nas redes sociais ocorreu após à realizada pela escola, diz que a direção mudou a versão da demissão após a repercussão do fato.
A Fepesp (Federação dos Professores do Estado de São Paulo) criou um canal de comunicação para que professores que se sintam assediados por pais ou escolas busquem ajuda. A entidade também acionou o Ministério Público do Trabalho, o Instituto Vladimir Herzog e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
“Estamos criando uma rede de proteção para que os professores não sejam assediados e humilhados por famílias, diretores ou mantenedores. A autocensura é pior do que a censura”, diz o presidente da Fepesp, Celso Napolitano.
A Rede Escola Pública e Universidade, que agrega pesquisadores de instituições de ensino superior, prepara um manual de defesa de professores. Para o professor Fernando Cássio, da Universidade Federal do ABC e que faz parte da rede, os casos em escolas particulares mostram que é necessário o restabelecimento das relações de confiança nas escolas, um lugar naturalmente de permanente conflito.
“Há previsões nas legislação educacional que independem de a escola ser pública ou privada, entre elas está a liberdade de cátedra e a pluralidade de concepções pedagógicas”, diz. “Essas coisas não deveriam ser avaliadas nesse marco da clientela e da prestação de serviço”.
Cássio ainda critica a divulgação, realizada no site do Movimento Escola Sem Partido, de modelos de notificações extrajudiciais que poderiam ser endereçadas a professores. “Explora uma relação jurídica inexistente entre professor e família. A relação dos professores é de trabalho com a escola.”
Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), também lamenta que as discussões estejam centradas em aspectos legais.
“O vínculo de confiança das famílias com a escola é fundamental para o processo de ensino e aprendizagem, e isso tem de fazer parte desse debate”, diz.
Altenfelder diz que ninguém é favor da partidarização da escolas, mas já há previsão de várias instâncias no âmbito educacional para possíveis reclamações. “Essa é uma lei que está na direção contrária de promover a igualdade, o respeito, evitar a violência e fortalecer o professor.”
Com relação às redes públicas, já havia, até abril, 91 projetos apresentados em Câmaras Municipais e Assembleias do país, segundo reportagem da revista Gênero e Número. Segundo a procuradora Deborah Duprat, como o sistema educacional tem responsabilidades divididas, possíveis questionamentos jurídicos teriam que ser analisados caso a caso.