Governo Bolsonaro pode provocar um banho de sangue indígena
Um barulho de trator ou caminhão já é suficiente para deixar toda a comunidade em alerta. No Estado com a maior concentração indígena fora da Amazônia —o Mato Grosso do Sul—, os índios guarani-kaiowá vivem sob uma tensão constante. Acampados na beira das estradas ou ocupando fazendas da região à força, eles protagonizam uma das mais simbólicas guerras fundiárias do Brasil e levam décadas em conflito contínuo com fazendeiros que alegam ter a titularidade de terras que os índios reclamam como tradicionalmente suas. Esperam que o Governo brasileiro lhes assegure o direito ao território que a Constituição Federal instituiu há 30 anos enquanto imergem em uma disputa violenta, com a ação direta de pistoleiros que invadem seus acampamentos para debelar as chamadas ações de retomada —ocupações de fazendas pelos indígenas sob o argumento de que a terra é um território ancestral retirado de seus parentes no passado.
Agora, índios e entidades indigenistas temem que as intenções do presidente eleito Jair Bolsonaro de paralisar a demarcação das terras e de permitir o armamento no campo possam agravar ainda mais esse tipo de conflito, frequente em diversas regiões do país. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio, cerca de 130 terras indígenas estão em processo de demarcação no Brasil e, portanto, poderiam ser afetadas pela medida planejada por Bolsonaro. Outras 116 estão em estudo para aprovação como terra tradicional e mais 484 áreas são reivindicadas para análise. No ano passado, pelo menos 20 conflitos relativos aos direitos territoriais foram contabilizados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em dez estados. As disputas do Mato Grosso do Sul são emblemáticas porque ali o conflito e os casos de violência são praticamente permanentes.
Há dois anos, os índios da comunidade de Dourados-Amambai Peguá, no município de Caarapó (MS), se colocaram mais uma vez em alerta ao ouvir um barulho de trator na estrada. Dois dias antes, 300 deles haviam ocupado parte da fazenda Yvu, que estava em processo de demarcação pelo Governo Federal. Ameaçados com rojões e tiros, viram as barracas que haviam montado serem destruídas e seus alimentos serem saqueados. Tentaram reagir atirando flechas, mas foram alvejados com armas de fogo. O conflito que durou quase quatro horas deixou um morto e cinco índios feridos, entre eles uma criança de 12 anos. O agente de saúde Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 23 anos, foi a maior vítima do que ficou conhecido como “Massacre de Caarapó”, mas um ano antes outro guarani-kaiowá, Semião Fernandes Vilhalva, também havia sido assassinado em circunstâncias parecidas.
Os conflitos frequentes levaram a Procuradoria Geral da República a iniciar a força-tarefa Avá Guarani para investigar casos de violência contra índios em oito comunidades do Mato Grosso do Sul em 2016. Nesse trabalho, o Ministério Público Federal concluiu que fazendeiros da região formaram milícias para atacar os índios com armas letais, e 12 pessoas foram denunciadas criminalmente. A operação, que inicialmente duraria alguns meses, segue vigente até hoje, mas as investigações e os processos estão sob sigilo. O Mato Grosso do Sul tem atualmente 16 terras indígenas em estudo e 26 em processo de regularização, mas a judicialização do processo de demarcação já iniciado tem reduzido as esperanças de que o conflito se encerre em breve.
A Constituição de 1988 estabeleceu que os territórios indígenas no Brasil fossem demarcados pelo Governo federal em até cinco anos. Não foram. O processo—que inclui várias fases e envolve a Funai, o Ministério da Justiça e a União — tem sido lento e repleto de tensões nas comunidades indígenas e em Brasília. No ano passado, o presidente Michel Temer (MDB) assinou parecer da Advocacia Geral da União que estabelece a tese do “marco temporal”, segundo o qual só poderiam ser demarcadas as terras que estivessem sob posse das comunidades indígenas na data da promulgação da Constituição, em outubro de 1988. A decisão se baseia na mesma tese acatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, quando analisou o caso da Raposa da Terra do Sol, mas naquela ocasião os ministros deixaram claro que a decisão não era vinculante (não valia automaticamente para todos os processos).
Segundo argumentam as entidades indigenistas, o problema é que muitos povos foram expulsos de suas terras tradicionais antes de a Constituição ser promulgada, durante a ditadura, e, por isso, refutam essa tese. O caso dos guarani-kaiowá do Mato Grosso do Sul está incluído nesse contexto. Enquanto esperam a análise do plenário do STF sobre a demarcação, o cenário de ameaças e conflitos é intensificado pelas milícias armadas e pelas ações de retomada dos índios.
“Há um risco muito grande de aumento desses conflitos em todo o país. Se o presidente não demarca a terra, os índios não vão desistir da luta pelo território, que já dura décadas”, afirma a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e candidata a vice-presidenta derrotada, Sônia Guajajara. “Bolsonaro quer flexibilizar a legislação e rever processo de demarcação para entregar a terra ao agronegócio, à mineração e à especulação imobiliária. A gente teme ter que pagar com a própria vida, mas não vamos recuar”, emenda. Em entrevista recente, o presidente eleito Bolsonaro afirmou que, no que depender dele, não haverá mais demarcação de terra indígena no Brasil, mas garantiu que suas decisões serão tomadas de acordo com a lei.
O secretário executivo do Cimi, Cléber Buzzato, acredita que o presidente eleito não terá autonomia para descumprir a norma constitucional que determina a demarcação. “As terras indígenas são patrimônio da União e ficam para usufruto dos povos. O presidente não tem legitimidade pra abrir mão de um patrimônio público em favor de particulares, sob pena de responder por improbidade administrativa”, argumenta. No entanto, o temor é que uma maior morosidade nos processos de demarcação, que já vinham em ritmo lento, agravem ainda mais os conflitos pela terra no campo. Isso porque, de um lado, os índios tendem a intensificar as ações de retomada e, de outro, a resposta de grileiros e fazendeiros pode ser violenta. “A proposta do novo presidente sobre a posse de arma no campo vai gerar muito mais violência”, afirma Guajajara. “Não temos como prever [as ações de retomada] porque é uma decisão estritamente dos povos indígenas. O que é provável, pelos indicadores que temos, é de que pode haver aumento da violência por ação e iniciativa dos fazendeiros e grileiros, que já está em curso em vários estados”, completa Buzzato.
A desaceleração das demarcações vem desde o Governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, considerado um dos que menos demarcaram desde a redemocratização do Brasil pela pressão da bancada ruralista. Durante os dois anos de Governo de Michel Temer, a situação se agravou. Segundo o Cimi, nenhuma terra foi homologada nesse período. Essa paralisação já vinha intensificando os conflitos do campo e, agora, as declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro soam como fogo em gasolina para os indígenas. O sentimento é de preocupação até mesmo em comunidades que já tiveram as terras demarcadas. Isso porque, em muitas delas, o Governo federal não completou a retirada de posseiros e fazendeiros que ocupam os territórios tradicionais.
Em Rondônia, os indígenas Karipuna identificam as invasões pelo som. Raramente veem os responsáveis, mas percebem que suas terras estão sendo ocupadas pelo barulho de tratores e caminhões e pelo rastro de madeira cortada. Nos últimos dois anos, eles têm denunciado cada vez mais casos de invasão, loteamento ilegal e exploração madeireira no território demarcado em 1996 e localizado a cerca de 200 quilômetros da capital Porto Velho. As investigações correm em segredo de Justiça. “Não teve conflito nem confronto ainda, mas a gente vem denunciando há dois anos porque isso vem aumentando”, conta uma liderança indígena que pediu para não ser identificada por vir sofrendo ameaças. “Eles estão degradando, formando pastos e retirando madeira da nossa terra”, acrescenta. Essa guerra fria —concentrada principalmente nos distritos de Jacinópolis, União Bandeirantes e Nova Dimensão— vem prejudicando a sustentabilidade dos indígenas, que deixaram de usar a única estrada para escoar a produção de farinha de mandioca e castanha por medo de alguma emboscada. Eles vivem basicamente da agricultura familiar.
“Isso não começou agora”, pondera o Cacique André Karipuna. “Desde que nossa terra foi demarcada, lutamos com as invasões. Mas antes a Funai estava mais forte, tinha mais verba, e resolvia mais o problema. Depois que os órgãos foram enfraquecidos, tudo piorou na comunidade”, conta. Em um ano, a bancada ruralista derrubou dois presidentes da Funai. O último deles foi Franklimberg Ribeiro de Freitas, que em abril pediu sua exoneração depois de a Frente Parlamentar da Agropecuária apresentar ao presidente Michel Temer uma cartaassinada por 40 deputados e senadores exigindo o afastamento dele por não colaborar com o setor. As tensões são constantes, e os indígenas também têm ido reiteradas vezes à Brasília para tentar garantir o direito previsto na Constituição.
“A nossa preocupação é de que possa piorar. Sofremos ameaças de morte hoje, mas as matanças que outros povos sofrem a gente já sofreu. Chegamos a ter apenas oito pessoas e hoje somos 58 na aldeia. Estamos em fase de crescimento”, diz André Karipuna. O contato dos Karipuna com o não índio, na década de 1970, provocou um processo de diminuição da população da aldeia por conta de doenças e conflitos. Há cerca de 20 anos, eles conseguiram a demarcação de 152.000 hectares. “As pessoas acham que a gente tem tudo e vive às custas do Governo. Que atrapalhamos o desenvolvimento. Não é verdade. Falam que a gente tem muita terra e não trabalha, mas a gente preserva uma terra que é da União”, argumenta o cacique.
Ao comentar essa questão recentemente, Jair Bolsonaro disse que as áreas já demarcadas estão “superdimensionadas”, mas afirmou que não há como mexer nelas. Atualmente, o Brasil tem 436 terras indígenas plenamente reconhecidas —que somam 117 milhões de hectares, 14% do território nacional. No entanto, Bolsonaro defende que as terras indígenas sejam abertas para empreendimentos de infraestrutura e atividades de mineração. A lei proíbe a construção de projetos que tenham impacto direto em terras indígenas e seria preciso alterar a Constituição para viabilizá-los. “A gente sempre se organizou quando precisou. Já conseguimos barrar várias medidas anti-indígenas no Congresso”, assevera Sônia Guajajara.
Na última semana, lideranças indígenas e indigenistas circulavam pelos corredores do Congresso. O projeto de lei 490/2007, há anos paralisado na Câmara, havia sido posto novamente em pauta. A proposta altera o Estatuto do Índio, estabelecendo que a demarcação de terras indígenas ocorra somente por lei e não apenas pela administração federal, como ocorre atualmente. “As declarações de Bolsonaro já tem trazido uma agenda muito destrutiva para os indígenas. Ele está de olho em regiões ricas em minério. Tanto que falou dos yanomami”, considera Guajajara.
Bolsonaro tem criticado que 9.000 índios da etnia yanomami tenham demarcada uma área equivalente a duas vezes o estado do Rio de Janeiro no norte da Amazônia. “Isso não pode continuar acontecendo no Brasil”, defendeu ele. A comunidade que critica foi demarcada em 1991 pelo então presidente Fernando Collor, por pressões internacionais às vésperas da ECO 92. A região, rica em minério, é alvo de exploração há décadas. O garimpo levou à morte centenas de indígenas, especialmente pelas doenças trazidas pelo contato com o não índio. Agora, Bolsonaro defende que o índio não deve ficar isolado, que deve se integrar à sociedade, e deve poder explorar as suas terras. “O índio não pode continuar dentro de uma área demarcada como se fosse animal preso dentro do zoológico”, declarou o presidente eleito. Seria uma volta do pensamento dispensado às populações tradicionais durante a ditadura militar.
Do El País