Homossexuais temem que Bolsonaro acabe com união estável
O sim que Érica Pascoal, 27, e Yandra de Andrade, 30, guardavam para dizer uma a outra só no segundo semestre de 2019 foi dado às pressas no dia 31 de outubro.
Elas pretendiam reunir as famílias e os amigos para oficializar a união de três anos e meio em uma cerimônia em São Paulo. O plano caiu por terra após a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência.
O casal antecipou o enlace por temer que odireito à união estável e ao casamento civil conquistado pelos LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) seja dissolvido no próximo governo.
“O resultado da eleição foi fator decisivo para assinar esse papel antes da posse de Bolsonaro. Esse papel assinado agora foi um grito e a nossa forma de dizer que a gente existe para parte de uma sociedade que nos classifica como de segunda categoria”, disse Érica, diretora de fotografia.
Ela, de calça jeans e bota, e Yandra, de vestido preto, foram até o 16º Tabelionato de Notas, um cartório “gay-friendly” da rua Augusta, centro de SP, para registrar a união estável na quarta-feira (31).
Menos burocrática, a união estável exige apenas cópias de documentos pessoais(RG e CPF) dos noivos e uma taxa de R$ 411,59, no caso dos estabelecimentos paulistas.
O procedimento também serve para o casal regular o patrimônio com a escolha do regime de bens e garantir outros direitos, como herança após a morte de um dos parceiros.
Os casais LGBTs só tiveram direito à união estável no país em 2011 quando o Supremo Tribunal Federal mudou regra do Código Civil e entendeu que família não era formada apenas pela união de um homem e uma mulher.
Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça estendeu o benefício e mandou os cartórios celebrarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
O dia mais especial de Érica e Yandra teve a presença de quatro amigas, do irmão e do afilhado de Yandra. A família de Érica, de Porto Velho (RO), acompanhou pelo Instagram.
Menos de uma hora após pedir o documento, o “sim” veio ao assinar a união estável. “O que é nosso, o direito de amar, ninguém mais vai tirar a partir de agora”, disse Yandra.
A corrida desses casais aos cartórios preocupados com o futuro de suas relações após a posse de Jair Bolsonaro, em 1º de janeiro de 2019, não é exclusividade de Érica e Yandra.
A Folha conversou com outros casais que optaram por oficializar o matrimônio ainda em 2018 por medo de perder o benefício que, segundo eles, foi conquistado com muita luta e articulação política.
Dez cartórios que concentram grande volume de registros de união estável e casamento em São Paulo disseram, sem dar números, que os pedidos de casais LGBTs estão na média após as eleições.
Segundo o Colégio Notarial do Brasil, o estado de SP manteve neste ano média de 32 pedidos concedidos de união estável homoafetiva por mês.
No país, os casamentos entre gays e lésbicas cresceram 60% de 2013 a 2017, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
O temor dos casais não encontra base nas propostas do futuro governo, mas nas declarações de seu comandante. Como esta, de 2013, logo após o CNJ mandar os cartórios oficializarem casamentos de pessoas do mesmo sexo. “Está bem claro na Constituição: a união familiar é [entre] um homem e uma mulher. Essas decisões só vêm solapar a unidade familiar, os valores familiares. Vai jogar tudo isso por terra”, disse Bolsonaro.
O psicólogo João Burnier, 41, e o fotógrafo Henrique de Paiva, 24, moradores da capital, dizem que não se encaixam na família-margarina —“mamãe, papai e filhinhos”— defendida pelo novo presidente. “No primeiro discurso como eleito, ele põe a mão na Bíblia e diz que vai governar para uma família que não é a nossa. Isso ascendeu o alerta para corrermos por um direito que ainda está aí”, disse Burnier.
O casal, que mora junto há dois anos, antecipou o casamento civil para 1º de dezembro em vez de trocar as alianças só na metade de 2019. “O sim de dois gays não é só uma manifestação de amor, mas uma resistência, um ato político”, afirmou Henrique.
O analista de mídias sociais, Marcelo Serrano Goltzman, 37, de São Caetano (Grande São Paulo) resume o drama: “temos direitos, mas não uma lei”. É por isso que Marcelo vai se casar também em 1º de dezembro após oito anos dividindo o mesmo teto com o designer Wellington Pereti, 41.
Os LGBTs citam um dos aliados de Bolsonaro, o senador Magno Malta (PR/ES), como um dos grandes entusiastas pelo fim do casamento gay. Ele é autor de um projeto de lei que prevê a suspensão do benefício concedido pelo CNJ.
Em 1º de novembro, o Senado abriu votação online para a população. Segundo a última atualização, a maioria dos votantes (371.331) apoiava o casamento entre pessoas de mesmo sexo, e 22.523 eram contra. O projeto aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Só com aprovação no Congresso o casamento gay pode virar lei. Por isso a presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Maria Berenice Dias, gritou aos quatro ventos na última semana: corram aos cartórios!
“É inquestionável a postura homofóbica do presidente eleito. Ainda que ele tenha arrefecido seu tom de escracho, não assume nenhum compromisso pelos direitos dos gays”, disse Maria Berenice.
A advogada Adriana Galvão, presidente da comissão paulista de diversidade sexual da OAB, vê, porém, que “toda investida contra direitos já garantidos serão facilmente questionados no próprio STF”.
Para Toni Reis, líder da Aliança Nacional LGBTI+, o momento é de “desarmar os palanques” para abrir diálogo com Bolsonaro. “Temos uma pauta difícil para aprovar: a criminalização da homofobia”.
MAIS SOBRE AS REGRAS DO CASAMENTO HOMOAFETIVO
Desde quando casais homoafetivos têm direito à união estável no Brasil?
Em maio de 2011, o STF mudou o entendimento do Código Civil de que a família era formada por um homem e uma mulher. A partir daí, as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser permitidas. No julgamento em questão, ficou decidido que o reconhecimento das uniões estáveis entre casais gays deveria seguir as mesmas regras e ter as mesmas consequências que aquelas entre casais heterossexuais.
E ao casamento?
Como a decisão dizia que as normas deveriam ser as mesmas, casais homoafetivos passaram a pedir a conversão da união estável em casamento, o que está previsto no Código Civil. Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça publicou uma resolução que permite aos cartórios registrarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo e os proíbe de se recusarem a fazê-lo.
Isso quer dizer que o casamento homoafetivo é permitido por lei?
Não, já que nenhuma lei foi aprovada nesse sentido. O que garante os casamentos e uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo é a jurisprudência.
Existe diferença jurídica entre casamentos homo e heteroafetivos? Não, os direitos e deveres são os mesmos.
O direito ao casamento homoafetivo pode ser revertido?
A jurisprudência que garante o direito de casais homossexuais se casarem só poderia ser revertida caso o Congresso aprovasse uma lei proibindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Segundo especialistas consultados, isso não poderia ser feito por decreto presidencial, mas o presidente pode encaminhar o projeto de lei ao Legislativo. De toda a forma, tal lei seria facilmente questionada na Justiça.
Quem já casou pode ter seu casamento anulado caso a lei mude?
Não, isso é considerado inegociável pelos especialistas ouvidos pela Folha.
Jair Bolsonaro ameaçou acabar com o casamento homoafetivo?
Diretamente, não, nem fez disso uma proposta concreta durante sua campanha à Presidência. Contudo, o presidente eleito já deu declarações consideradas ofensivas ao público LGBT e disse, em 2013, que “está bem claro na Constituição: a união familiar é [entre] um homem e uma mulher. Essas decisões só vêm solapar a unidade familiar, os valores familiares”.
Existem propostas para que o casamento homoafetivo vire lei?
Sim. O PL (projeto de lei) nº 612/2011, de autoria da senadora Marta Suplicy (sem partido), muda o Código Civil para retirar menções de gênero em relação ao casamento e à união estável. A proposta foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, mas um recurso do senador Magno Malta (PR-ES), da bancada evangélica, solicitou que a matéria fosse votada em plenário. O projeto foi colocado na pauta para votação em dezembro do ano passado, mas não houve quórum. Para que vire lei, o PL precisa ser aprovado nas duas Casas do Legislativo e passar por sanção presidencial.
Fontes: CNJ, STF, OAB, Adriana Galvão, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB-SP e Maria Berenice Dias, presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB
Da FSP.