Pesquisador afirma que repressão às drogas gera mais violência e vício

Todos os posts, Últimas notícias

A guerra às drogas é, possivelmente, a mais antiga e mais custosa da humanidade: já se arrasta por um século, custou mais de U$ 1 trilhão, matou centenas de milhares de pessoas, prendeu milhões e não está nem próxima de uma conclusão vitoriosa.

É a história dessa luta inglória que o jornalista britânico Johann Hari, 39 anos, conta em seu recém-lançado livro “Na Fissura – Uma história do fracasso no combate às drogas” (Companhia das Letras).

Hari diz que o contato com pessoas próximas que eram dependentes o motivou a pesquisar sobre o tema. Uma de suas primeiras memórias da infância é a de tentar em vão despertar uma parente muito próxima que estava desacordada por conta do abuso de drogas. Posteriormente, um ex-namorado usuário de heroína passou a fumar crack.

— Não sabia o que fazer, então me lancei nessa jornada ao redor do mundo, visitei países que tinham as políticas antidrogas mais severas, como o Vietnã, onde eles mandam os viciados para campos de trabalho forçado, e os que tinham as abordagens mais piedosas, como Portugal, a Suíça e o Uruguai. Aprendi que quase tudo que sabemos sobre esse assunto está errado. As drogas não são o que pensamos que são, o vício também não é, nem a guerra às drogas e as alternativas a ela.

O escritor permeia o livro com exemplos de pessoas que foram afetadas das mais diversas formas pela guerra às drogas: da cantora Billie Holiday, perseguida por um oficial racista que foi um dos artífices da proibição, até o brasileiro Raull Santiago, ativista do Complexo do Alemão, passando por um travesti traficante do Brooklyn e um assassino que trabalha para os cartéis mexicanos. Ele também entrevista diversos cientistas que estudaram o tema, além do então presidente José Mujica, do Uruguai.

— Não há nenhum lugar no mundo onde a guerra às drogas tenha funcionado. Maior repressão só gerou mais violência e mais vício.

Como teve início a guerra às drogas?

Foi há cerca de cem anos, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Quando você olha os debates sobre o tema no Senado americano de então, vê que os argumentos não são os que pensamos hoje em dia, de evitar que as pessoas se viciem ou que as crianças usem. Elas foram banidas porque havia um medo racista de que negros e chineses nos EUA estivessem usando drogas e “esquecendo seu lugar”, atacando os brancos. O homem que inventou a moderna guerra às drogas, Harry Anslinger, assumiu o departamento federal responsável pela proibição do consumo do álcool assim que ela caiu e queria manter o lugar funcionando. Ele foi motivado por seu forte ódio aos negros e aos viciados.

No Brasil, a proibição também teve esse viés racial?

Sim, a dinâmica foi similar à dos EUA. A proibição no Brasil inicialmente era específica para os escravos negros, que não podiam fumar. Quando vim ao país pela primeira vez, para pesquisar, fiquei em Ipanema e, assim que saí, alguém me ofereceu cocaína. Nas semanas seguintes, estive no Alemão e na Maré, e a diferença de tratamento era gritante. Havia tanques nas favelas. Se eles fizessem o mesmo em Ipanema, seria um dos maiores escândalos do país. Por que não se pode fazer isso contra os ricos, mas sim contra os pobres? Nos EUA, 50% da população já infringiram alguma lei antidrogas. Não sei como é no Brasil, deve ser algo entre 20% e 50%. Não é possível prender metade de um país, então o que acontece? A guerra às drogas é usada como pretexto contra grupos que a sociedade quer reprimir. Nos EUA, são os negros e latinos. Aqui, há uma clara intereseção entre raça e classe. Para meus amigos brasileiros ricos, as drogas já foram descriminalizadas. Eles não temem a polícia ou punição.

Qual era o tamanho do problema no início da proibição?

É dificil achar dados precisos, mas sabemos que, quanto maior a intensidade do combate às drogas, maior a violência e o problema do vício. A chave do que acontece foi descoberta por um professor canadense incrível, Bruce Alexander: ele fez um experimento com ratos que mostrou que, quando eles recebiam heroína numa galoia sem nenhum outro atrativo ou distração, a maioria consumia a droga compulsivamente e morria. Mas, quando eles recebiam a mesma heroína num ambiente que lhes era favorável, não acontecia. Isso nos mostra que o contrário do vício não é a sobriedade, mas conexão. Quando os usuários estão cercados de coisas que dão significado à vida, não consomem droga compulsivamente. E isso explica porque políticas que punem os dependentes pioram o vício. O núcleo do vício é a vontade de não querer estar presente em sua vida, porque ela é muito dolorosa. Uma vez que você entende que a dor é a causa da dependência, que a droga é uma forma de anestesiar a dor de viver, entende por que impor mais dor aos dependentes só piora a situação.

O livro defende que a crise de abstinência não é o que as pessoas imaginam. Por quê?

Quando alguém tem um problema de dependência e para com a droga sem receber outras formas de apoio, há alguma dor física pela abstinência, mas a maior dor é a psicológica, por voltar à situação de que se tentava livrar usando a droga. É por isso que políticas baseadas em punição dos usuários falham. No Arizona (EUA), acompanhei presas que eram forçadas a saírem acorrentadas, usando camisetas que diziam “Eu era uma viciada”, para que a população zombasse delas e as atacasse. Resultado: a maioria delas, ao sair da prisão, estava ainda mais traumatizada e voltava a usar drogas. Compare com Portugal: no ano 2000, eles tinham um dos piores problemas com drogas do mundo, 1% da população estava viciada em heroína. Por anos, tentaram o método de Trump e Bolsonaro, com mais prisões, mais mortes, e o problema só piorou. Então decidiram que precisavam de algo diferente, criaram um painel de cientistas e médicos que sugeriu que todas as drogas fossem descriminalizadas e que, em vez de gastar dinheiro perseguindo usuários, se direcionasse para políticas de bem-estar. Hoje, o número de dependentes caiu mais de 50%, as mortes por overdose caíram 80%. Virtualmente nenhum português quer reverter essa política, nem a direita que se opôs a ela no início.

Como se deve lidar com o tráfico?

A grande questão moral da guerra às drogas é a violência causada pela proibição. Se você tentar roubar uma garrafa de vodca de uma loja, o dono dela vai chamar a polícia. Se você tentar roubar um saquinho de maconha ou de cocaína, o vendedor não vai poder chamar a polícia, então vai recorrer à violência. Quando você prende ou mata os chefes de uma gangue criminosa que controla uma área, cria um vácuo e dá início a uma disputa por território. Já vimos isso em várias favelas do Rio, nos Estados Unidos há pesquisas que mostram que, após batidas policiais contra drogas, o número de assassinatos sobe. O Brasil, assim como o México, é um dos lugares onde se vê os efeitos mais devastadores. São dezenas de milhares de assassinatos por ano resultantes de guerras do tráfico. Nos EUA, a taxa de homicídios subiu imensamente durante o período da proibição do álcool e despencou quando ela acabou.

Como funciona a legalização das drogas?

Drogas diferentes podem ser legalizadas de modo distintos. Na Inglaterra, você pode ter legalmente um cachorro, um macaco ou um leão, mas as regras para cada um são diferentes. O Uruguai legalizou a cannabis, a Suíça legalizou a heroína, mas são modelos diferentes. Ninguém defende que se possa comprar heroína numa loja. Lá, se você é dependente, é indicado para uma clínica, onde poderá receber e usar a droga, não a leva consigo. E recebe apoio terapêutico, ajuda  para se empregar. A Suíça criou esse programa há 15 anos e não teve nenhuma overdose de heroína nele até hoje, além de ter acabado com o tráfico, porque quem compra de um traficante se pode ter um produto melhor do governo? A legalização também cria uma barreira entre as crianças e as drogas que não existe hoje. Atualmente, a venda de drogas é controlada por gente que não liga para a idade de seus compradores.

O livro também relativiza o problema da dependência, não?

Se formos a um bar, a maioria das pessoas que estiver bebendo álcool não será alcoolatra. As pesquisas do doutor Carl Hart mostraram que apenas 10% a 20% dos usuários de drogas se tornam dependentes. O que é diferente para esse grupo não é a quantidade de droga que usam. Todos temos necessidades não apenas físicas, mas psicológicas: sentir que pertencemos a algo, que nossa vida tem propósito, que as pessoas nos valorizam. E muitas dessas necessidades psicológicas não são atendidas na sociedade atual, o que causa dor profunda. Essa é a principal razão por que as pessoas se tornam dependentes, estão tentando lidar com essa dor.

Você defende uma reabilitação social para os dependentes. O que é isso?

Os lugares mais bem-sucedidos na resolução de crises de drogas, como Portugal e a Suíça, são os que não tratam o dependente sob o prisma da patologia, mas o ajudam a reconstruir sua vida, a lidar com seus traumas, a achar um emprego, a se reconectar com amigos. Isso é a reabilitação social. No Brasil, havia um programa incrível e inspirador, De Braços Abertos, que lidava com algumas das pessoas mais vulneráveis na sociedade, na cracolândia de São Paulo. Leva tempo até se ter algum progresso, mas havia evidências de que o trabalho que eles faziam providenciando abrigo, auxiliando na busca por emprego, estava reduzindo o uso de drogas pelos dependentes e fazendo-os se reconectar com suas famílias. Mas o programa foi encerrado pelo (então) prefeito (João Dória).

Quanto já se gastou na guerra às drogas?

Os Estados Unidos gastaram um trilhão de dólares ao longo de um século, prenderam mais de um milhão de americanos, destruíram países inteiros como a Colômbia e, no fim das contas, não conseguem barrar as drogas nem em suas próprias prisões. Isso dá uma boa noção de quão inconcebível é acabar com as drogas num país com o Brasil. O que podemos fazer é regular o comércio de drogas, dar liberdade aos usuários e tratar com compaixão os dependentes, dando-lhes ajuda prática. Em algum momento o Brasil vai precisar deixar de copiar os países que falharam ao lidar com as drogas, como os EUA e as Filipinas, e passar a copiar os que foram bem-sucedidos, como Portugal e a Suíça. Os eleitores de Bolsonaro estão absolutamente corretos sobre o fato de que há problemas, como a horrível taxa de assassinatos e os casos de dependência. Mas as soluções que lhes venderam são falsas e farão o problema piorar.

Do O Globo