Projeto “Escola sem Partido” causa rotina de ameaças contra professores
Com 15 anos de magistério, Fabíola (nome fictício a pedido da entrevistada), 38, pela primeira vez afastou-se do trabalho por motivo de saúde. Na semana passada, entregou à Secretaria de Educação do DF um atestado psiquiátrico de 15 dias. No documento, consta a CID 10 F41.0, o que, no sistema de classificação de doenças, significa transtorno de pânico.
A professora de história já pensa em mudar de profissão. Acostumada a malcriações e rebeldias de estudantes adolescentes, jamais pensou, porém, que o comportamento de alunos fosse afetá-la a ponto de adoecer. Desde o ano passado, ela diz sofrer ameaças e constrangimentos pelo teor de suas aulas. “Criaram perfis falsos para me atacar no Facebook. Apaguei todas as redes sociais. Na sala de aula, apontam o celular para mim”, relata. No período eleitoral, a perseguição ficou acentuada, segundo a professora. “Recebi mensagem no Facebook dizendo que seria torturada por ‘ideologia de gênero’”, afirma Fabíola.
Mesmo antes da aprovação da polêmica Escola sem Partido, o Projeto de Lei nº 7180/14, programa que proíbe “doutrinação ideológica” em sala de aula, professores relatam assédio de alunos, pais e até colegas de profissão. “Eu não concordo com doutrinação, não acho que sala de aula é palanque. Mas as coisas tomaram uma proporção assustadora. A escola é, ou deveria ser, um ambiente de livre debate. Aí, você dá uma aula sobre direitos civis, sobre voto feminino, e te acusam de ideologia de gênero, uma coisa que nem existe”, revolta-se. Além de perseguição, ela diz que, entre os professores, o temor é de processos e, especialmente nos estabelecimentos particulares, de demissão.
Na semana passada, procuradores dos direitos dos cidadãos instauraram procedimentos administrativos para acompanhar episódios de assédio moral contra professores de nível básico, técnico e superior em 10 estados. De acordo com o Ministério Público Federal, entre 5 e 9 de novembro, o órgão abriu ações do tipo em quase todas as capitais e em diversos municípios. Vinte e quatro instituições públicas receberam recomendação do MPF para não atuarem de forma abusiva contra os docentes em Pernambuco, Santa Catarina, Paraíba, Goiás, Minas Gerais, Tocantins, Amapá, Paraná, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.
Contrária à criação da Escola sem Partido, que considera inconstitucional, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, afirma que tentar impedir a abordagem e o debate de ideias, sejam filosóficas, religiosas, políticas, sejam ideológicas, viola a legislação. “Um ensino e uma aprendizagem efetivamente plurais, que são os objetivos fundamentais de nosso sistema educacional, somente podem se desenvolver em um ambiente de liberdade de ideias e de respeito à imensa diversidade que caracteriza o nosso país”, defende.
Um dos estados acionados, Pernambuco foi palco de ameaças contra professores e estudantes do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal. No dia 6, uma carta não assinada listava “doutrinadores e alunos que serão banidos do CFCH-UFPE em 2019”. O texto, afixado na instituição e reproduzido em redes sociais, chamava as pessoas listadas de escória e anunciava: “O mito vem aí”, em referência ao presidente eleito, Jair Bolsonaro. O futuro governante é um entusiasta do PL da Escola sem Partido e defende que os estudantes filmem os professores em sala de aula. O MPF e a Polícia Federal investigam ameaças.
Paulo aceitou falar com a reportagem sob várias condições: nome fictício, não fornecer idade nem disciplina que ministra. Professor em uma escola de classe média alta em Brasília, ele teme ser identificado e perder o emprego. Conta que a direção alertou os funcionários para evitarem “assuntos sensíveis”, incluindo feminismo, sexualidade, aborto e, especialmente, política. “Um professor de física ou de matemática pode se adaptar a essa mordaça com mais facilidade. Mas como um professor de humanas vai fazer?”, questiona.
Ele ressalta que, no colégio onde trabalha, mesmo antes das discussões do Escola sem Partido, muitos alunos intimidavam os professores. “Eles pagam, eles mandam, né?”, ironiza. “Eu não cheguei a ser diretamente atacado por alunos, embora tenha colegas que foram, inclusive foram filmados pelos estudantes na maior cara de pau. Você já vai trabalhar naquele clima de terror. Como é que você vai educar alguém assim?”.
A comissão especial que analisa a lei da Escola sem Partido (7180/14) não votou o substitutivo do relator, deputado Flavinho (PSC-SP), na semana passada. O relatório do parlamentar mantém a proibição de professores do ensino básico e superior promoverem suas preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias. Também proíbe ensinamentos sobre gênero e orientação sexual. “O nosso projeto não diz que não possam ser ensinadas e debatidas. Diz que essas questões devem ser abordadas cientificamente, mostrando dois, três lados, as principais correntes acerca da ideia”, defendeu o fundador do movimento Escola Sem Partido, Paulo Miguel Nagib.
Na sexta-feira, o Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior da Bahia lançou uma cartilha para orientar os professores a se protegerem de situações de intimidação e assédio. “A cartilha foi motivada pelo momento de lamentáveis retrocessos, a educação e a atividade docente, assim como os movimentos sindicais e sociais, têm sido os primeiros alvos”, justifica a assessoria de comunicação do sindicato. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) se manifestou em nota sobre o projeto de lei: “A lei da mordaça se pauta em conceitos e critérios políticos, sociais e pedagógicos diametralmente opostos aos estabelecidos na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que têm a gestão democrática e o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas como pilares da educação”, diz.
A professora de artes da rede estadual de Pernambuco Valéria Alves de Almeida, 26 anos, teme que, se o PL for aprovado, os professores sejam mais assediados e perseguidos. “Já tem aluno olhando para você e fazendo aquele gesto de arma com as mãos”, diz, em referência a um dos símbolos de campanha do presidente eleito. Ela não acredita que os estudantes, ao menos do nível básico, sejam fechados à discussão de ideias. Para Valéria, eles têm sofrido grande influência dos pais e das redes sociais. “Esses reacionários vão criar gerações de pessoas completamente submissas ao que lhes forem imposto, porque os jovens estão sendo ensinados a não questionar, não pensar, não discutir. Temos de resistir a isso, mas precisamos que as instituições estejam ao nosso lado. A aprovação desse projeto será catastrófica.”