Versão alemã do Escola sem Partido é organizada por grupos neonazistas
Um acalorado debate invadiu as escolas alemãs nas últimas semanas. O partido Alternativa para a Alemanha (AfD) lançou em diversos estados do país sites chamados Neutrale Schulen (Escolas Neutras, em tradução para o português) para que estudantes denunciem professores críticos ao próprio partido e que expressem sua opinião política em aulas.
O AfD é considerado por diversos historiadores como uma legenda de extrema-direita e parte de seus apoiadores tem conexões com grupos neonazistas.
A Neutrale Schulen guarda algumas semelhanças com o Escola Sem Partido, projeto em análise na Câmara dos Deputados brasileira. A iniciativa do deputado Erivelton Santana (PSC-BA) proíbe que professores promovam “seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”.
Mas também há diferenças. A investida do AfD não ocorre via Legislativo, mas por meio de denúncias. Esse é um tópico contencioso na Alemanha, já que essa era uma prática incentivada pela ditadura nazista e pela Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental – ambos perseguiam brutalmente inimigos de seus regimes.
“Existem certamente algumas semelhanças [entre o Escola Sem Partido e o Neutrale Schulen]. Mas no caso alemão, creio que o governo não aprovaria essa iniciativa. Não é uma abordagem sancionada pelo Estado”, argumenta Martin Mills, diretor do Centro para Professores e Pesquisa de Ensino no Instituto de Educação da University College London, no Reino Unido.
No Brasil, Mills completa, “é uma questão diferente porque o medo [dos professores] seria do governo”. “Quais serão as sanções do Estado se os professores falarem sobre o partido no poder? Este não é um partido marginal como o AfD na Alemanha, trata-se do governo.”
Outra diferença em relação à Escola Sem Partido é que a Neutrale Schulen tem um foco mais específico, a suposta discriminação e tratamento injusto dado ao partido AfD e seus apoiadores nas escolas alemãs. “Lançamos o site porque recebemos diversas reclamações de pais e estudantes sobre professores difamando o AfD como extremista ou mesmo nazista. Alguns até se recusam a abordar o partido ou dão aos alunos informações erradas sobre nosso programa político”, afirma Franz Kerker, membro do AfD no parlamento estadual de Berlim.
A medida recebeu uma enxurrada de críticas na Alemanha. Em protesto, diversos professores se autodenunciaram ao partido.
Segundo a especialista em educação da Fundação Heinrich-Böll Sybille Volkholz, responsável pela gestão desse setor na cidade de Berlim entre 1989 e 1990, o argumento de que o AfD está sendo injustiçado nas escolas é incorreto. “Devido à nossa história, é compreensível que AfD e outros partidos de direita estejam sob observação. O AfD colabora de perto com alguns movimentos neonazistas. É correto que os professores sejam muito sensíveis em relação à extrema-direita”.
Para ela, as escolas alemãs têm a obrigação histórica de educar democratas e torná-los resistentes à ideologia nazista. “Muitos professores disseram que continuarão a cumprir essa tarefa. Diversos alunos escreveram cartas ao AfD com piadas como ‘nossos professores sempre escrevem com a mão esquerda’.”
“É uma péssima iniciativa. Parece-me que essa chamada para denúncias visa contaminar o debate político aberto nas escolas”, argumenta Volkholz, ex-senadora pelo Partido Verde para Escola, Formação Profissional e Esporte em Berlim.
Winfried Kretschmann, premier do estado de Baden-Württemberg foi além: comparou o sistema do AfD às bases “do totalitarismo”.
“Há pessoas no AfD com conexões com a extrema-direita e neonazistas. É dever dos professores alemães apontar a incompatibilidade das visões desses políticos com a estrutura constitucional democrática livre de nosso país”, afirma à BBC News Brasil Heinz-Peter Meidinger, presidente da Deutscher Lehrerverband, a maior associação de professores da Alemanha.
“Os professores na Alemanha não tolerarão que seu direito de se expressar de maneira política seja retirado”, completa.
O AfD chegou ao Bundestag (o parlamento federal alemão) pela primeira vez em 2017, defendendo uma plataforma anti-imigração, antirrefugiados e em prol da identidade alemã. Com 92 cadeiras, tornou-se a principal força de oposição à coalização da chanceler Angela Merkel.
Alguns membros da legenda também se envolveram em polêmicas. Em julho, Alexander Gauland, co-líder do partido, disse que a era nazista foi uma breve mancha, ou “fezes de pássaro”, na longa e bem sucedida história da Alemanha. O comentário causou furor, uma vez que mais de 50 milhões de pessoas morreram na Segunda Guerra Mundial – incluindo seis milhões de judeus exterminados em campos de concentração nazistas.
“Não creio que os professores serão impedidos de apresentar uma discussão livre. Tenho esperanças de que eles sejam autoconfiantes o bastante para continuar a oferecer uma educação civil de qualidade”, diz Volkholz.
O Neutrale Schulen é administrado pelas seções regionais do AfD. A iniciativa está presente, entre outros estados, em Brandenburg, Baden-Württemberg e Berlim.
No momento, esses sites preservam a identidade dos denunciados. E, em alguns casos, o partido se oferece para mediar as reclamações com escolas e professores.
Os portais do Neutrale Schulen, em geral, argumentam que o projeto foi criado devido a reclamações de pais e alunos que se sentem discriminados por apoiarem o partido.
O AfD afirma que em algumas escolas de Berlim “professores estão espalhando uma visão política parcial do mundo”, da qual estudantes não podem discordar por medo de “exclusão social”. Em Hamburgo, o partido fala em “ataques desajeitados”.
Segundo o partido, o Neutrale Schulen não visa interromper o debate livre nas escolas, mas evitar que o AfD e seus apoiadores sejam atacados ou impedidos de expressar suas opiniões políticas.
Steffen Königer, membro do AfD no parlamento estadual de Brandemburgo, define a medida como “nossa última forma de autodefesa”. “Na Alemanha, é normal discutir em muitas escolas opiniões tendenciosas não apenas sobre nosso partido, mas sobre a ‘chamada mudança climática causada por humanos’. Os alunos que expressam sua opinião têm problemas por causa de pessoas politicamente corretas que os chamam de racistas ou nazistas.”
Segundo Kerker, os professores “têm que aceitar certos limites” de liberdade quando estão ensinando. Meidinger, entretanto, afirma que o AfD quer ser visto como “caçado, discriminado pelo Estado e servidores públicos, e como mártires”.
Desde 1976, os professores alemães seguem o chamado Beutelsbacher Konsens (Consenso de Beutelsbach) como diretriz para produção de aulas. O documento estabelece os princípios fundamentais para o ensino político-histórico nas escolas, a fim de coibir a doutrinação e abordar de maneira honesta temas controversos.
Segundo o Centro Nacional para Educação Política em Baden-Württemberg, o consenso tem três elementos:
1) a proibição de “sobrecarregar/oprimir” os alunos – não é permitido induzir os estudantes a emitir opiniões “desejáveis” e impedi-los de “formar um juízo independente”;
2) tratar assuntos controversos como tal – pontos de vista diferentes devem ser apresentados e discutidos. Os professores acabam, por vezes, sendo responsáveis por introduzir visões estranhas a alguns alunos;
3) considerar os interesses pessoais dos alunos – os estudantes devem ser capacitados à análise política e “avaliar como os seus interesses pessoais são afetados”.
O Beutelsbacher Konsens não proíbe os professores de exporem suas opiniões aos alunos desde que a identifiquem como tal. “Os professores devem fornecer informações sobre a agenda política dos diferentes partidos. Na discussão sobre o conteúdo, eles podem opinar. Além disso, existe a ordem para serem moderados. Eles devem expressar sua opinião de forma fundamentada e sem excessos”, explica Meidinger.
“Fui professora de educação cívica. É claro que dizíamos a nossa opinião sobre um assunto aos alunos. Eles têm o direito de saber, até para que possam julgar se o professor tenta dominá-los”, completa Volkholz.
O Centro Nacional para Educação Política destaca que os professores são “acima de tudo” obrigados a defender “a ordem básica democrática livre”. Ou seja, devem ser imparciais, mas não neutros em termos de valores. Por exemplo: se um político ataca minorias ou se partidos toleram antissemitas em seus quadros e possuem ligações claras com extremistas de direita, “é claro que isso deve ser examinado criticamente”.
No Brasil, por outro lado, o Escola Sem Partido pode vedar a manifestação da opinião política de professores em sala de aula, com apoiadores quase sempre se referindo a uma suposta doutrinação de esquerda e uso do marxismo.
O projeto ainda define como princípio para o ensino nas escolas o “respeito às crenças religiosas e às convicções morais, filosóficas e políticas dos alunos, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”.
Os professores brasileiros já sentem a pressão de movimentos que visam monitorar o conteúdo programático das aulas. “[O Neutrale Schulen e o Escola Sem Partido] soam como algo que se ouve em Estados totalitários”, diz Mills.
Recentemente, Ana Caroline Campagnolo, deputada estadual eleita pelo PSL em Santa Catarina, incentivou em suas redes sociais que estudantes gravassem seus professores para denunciá-los em caso de “manifestações político-partidárias ou ideológicas”. Uma decisão judicial determinou que as mensagens fossem apagadas.
“Professores devem falar sobre política. É desejável que os jovens compreendam a política e se envolvam em discussões respeitosas. A política democrática é negociar soluções para problemas comuns em que há perspectivas diferentes. Os jovens precisam fazer isso desde cedo”, afirma Mills.
Da BBC Brasil