Olavo de Carvalho: O ideólogo sem ideologia
Ornitorrincos, como se sabe, são animais dotados de ironia. É como se Deus, para zombar da ciência, tivesse colocado a Teoria da Evolução no modo randômico e criado animais com bico de pato, cauda de castor e pelos espessos. Antiestablihsment por natureza, o ornitorrinco é mamífero e bota ovo.
O ideólogo sem ideologia é um ornitorrinco da direita. Tem bico de pato, cauda de astrólogo, lapiseiras penduradas pelos bolsos. Trata-se de uma espécie brasileira que só sobrevive fora do Brasil. É mamífero e fuma cachimbo.
Sua obra é um mosaico de referências que servem apenas para comprovar teses conspiratórias. O mundo viveria numa luta maniqueísta entre o bem e a esquerda. Um sistema binário universal em que a Igreja ensinaria o respeito pela vida humana e o comunismo seria uma antirreligião. Em linhas gerais, o ideólogo sem ideologia quer a substituição gradual do conhecimento pela fé. Do pensamento livre pelo dogma.
De um lado, defende que o cristianismo eliminou a escravidão no mundo antigo, inventou os hospitais, as maternidades, a alfabetização universal, os direitos humanos, o Danilo Gentili. Do lado oposto, acusa a esquerda de tentar reverter o processo para sodomizar a humanidade. O marxismo cultural já tomou o controle da MPB, do cinema, da literatura, do circo do Marcos Frota, dos partidos, dos movimentos de rua, das universidades e da libido.
Em sua visão de mundo, o balaio da esquerda comporta elementos tão diversos como a ONU e a OEA; o Foro de São Paulo e a Folha de S.Paulo ; George Soros, Rockefeller e Eike Batista; Karl Marx e Carl Sagan; União Europeia e União da Ilha do Governador; Madonna e Jorge Vercillo. Ou seja: todo mundo que não embarcou em sua ideologia.
Pois é. Os ideólogos sem ideologia, como se sabe, são dotados de ironia. Sua ideologia, ironicamente, existe. Ela é enraizada na desconfiança de tudo que é oficial — portanto, de esquerda. Por isso, acredita-se piamente naquilo que um amigo lhe sussurra, mas desconfia-se da ciência, das urnas eletrônicas, das universidades, do Judiciário, da cultura e da tomada de três pinos.
Para sintetizar suas teses conspiratórias contra o sistema, o ideólogo sem ideologia une palavras contraditórias em slogans sonoros: “desarmamento é genocídio”, “desmatamento é vida”, “efeito estufa é ecologia”, “epidemia de vacinação”, “laicismo é um dogma maior do que qualquer religião”, “a Globo é plana”, “melhor que salada, só o cigarro”, “Felipe Melo é craque”.
Seu dogma é aquele old fashioned que orientou a Igreja a queimar bruxas e livros enquanto acumulava ouro livremente. Na versão atual, essa ideologia sem ideologia quer silenciar feministas, gays, minorias, comunistas e livros enquanto movimenta o salário de assessores livremente. Na prática, se baseia num Estado que não atrapalhe os empresários, mas interfira nas escolhas amorosas dos cidadãos. Que dê liberdade para portar uma arma, mas tire a liberdade de apertar um baseado.
São youtubers místicos cujo trabalho passa longe de apontar caminhos ou soluções a longo prazo. Sua seita on-line quer mesmo é ter razão. Para isso, correm como hamsters engaiolados para desmascarar uma suposta ordem mundial armada em conluio por esquerdistas e astrólogos charlatães. É como se a humanidade vivesse mesmerizada diante de um interminável período em que os signos estivessem sob efeito do Comunismo Retrógrado.
No tempo que sobra, o ideólogo sem ideologia se autoelogia.
Eis a dissecação de uma tese de um ideólogo sem ideologia pelo passo a passo da estrela de cinco pontas criada pelos illuminati.
Passo 1: exposição da tese. Em um vídeo que chama de “aula”, o ideólogo youtuber aparece cercado de livros e inicia sua explanação sem usar nenhum deles como referência. Afirma que um amigo lhe soprou uma tese encantadora. Não cita o nome do amigo. Mas apresenta a tese: a Suprema Corte está empenhada em tomar posse do país para promover o retorno da esquerda na marra. Isso deve acontecer em cinco anos, no máximo, nos Estados Unidos e no Brasil. Estamos correndo contra o tempo para impedir.
A tese é perfeita porque:
1. não apresenta evidências, fatos, estatísticas;
2. elege um inimigo comum;
3. o inimigo está conspirando neste momento;
4. transmite pânico e sentimento de urgência;
5. não traz propostas para melhorar a sociedade.
Passo 2: desqualificar o inimigo. Todos aqueles que discordarem dessa tese são de esquerda. Portanto, beócios sem capacidade intelectual de debater. São todos comunistas que na infância tiveram sérios problemas com a autoridade paterna. Na adolescência, desenvolveram graves problemas sexuais que trouxeram à tona desejos de incesto. Tornaram-se adultos que, no fundo, optariam pelo aborto de si mesmos. São todos petistas que tiveram lavagem cerebral completada assistindo ao Greg News. Frase de arremate: por causa deles, nos próximos meses o STF vai aprovar o aborto. Contra as leis e contra o povo brasileiro.
A desqualificação lacradora é aquela que:
1. adota um discurso feroz e difuso que faz o interlocutor desistir do debate;
2. nunca abandona a ofensa ao interlocutor;
3. nunca parte para o debate de ideias. Afinal, o que está errado não é a teoria. O que está errado é o interlocutor;
4. tudo é dito num tom de conspiração — silêncios e movimentos com os olhares de quem acabou de te revelar o Santo Graal;
5. arremata os xingamentos com um raciocínio sofista que associa o interlocutor com incesto, aborto ou pedofilia.
Passo 3: fundamentação para comprovar a tese. É importante seguir o ritual. Primeiro, o ideólogo sem ideologia formula uma tese e depois corre atrás de argumentos para comprová-la. Nunca o contrário.
Nesse caminho, é possível selecionar trechos da Bíblia , por exemplo, para comprovar a tese de que o iPhone pode explodir num posto que abasteça com gasolina venezuelana. Um parágrafo solto de Herbert Marcuse, sem contexto, pode ser a prova definitiva de que o nazismo era de esquerda. Uma frase de Sartre é suficiente para comprar drogas.
Na tese de que o STF vai trazer a esquerda de novo ao poder com uma canetada, o escolhido para fundamentar a tese é Ronald Dworkin.
Ao ler um parágrafo de Dworkin, o ideólogo sem ideologia escolhe a afirmação de que algumas leis requerem interpretação. É o suficiente para o duplo twist carpado retórico: se as leis requerem interpretação, não existe lei. (Aqui cabe uma pausa dramática para o ouvinte ficar de queixo caído.) A partir da cambalhota, o discurso é armado para comprovar a tese: o juiz, portanto, vai obedecer aos princípios da sociedade democrática laica moderna. Ou seja, o politicamente correto, os abortistas, as feministas, os atores da Globo.
Numa fabulosa conexão de ideias, o ideólogo sem ideologia concluiu, portanto, que é questão de tempo para a esquerda voltar ao poder pela via jurídica.
Passo 4: recado à militância. É preciso conter a conspiração da vez. É preciso agir com veemência. Senão a esquerda volta ao poder. Reforça o pânico e o sentimento de urgência (essa dupla infalível).
Passo 5: a volta. O ideólogo sem ideologia mexe com as frustrações e emoções contidas em seu séquito. Vende livros. Ganha poder de indicar ministros. E continua sem dar uma ideia para aprimorar a sociedade. Ou os ornitorrincos.
Da Época