Omissão do Judiciário leva à morte 10% das vítimas de tortura
Intitulado “Tortura em Tempos de Encarceramento em Massa”, um relatório produzido e divulgado neste fim de semana pela Pastoral Carcerária denuncia a omissão do Judiciário em termos de investigação, punição e reparação sobre ocorrências de tortura no sistema carcerário. O trabalho monitorou denúncias de 175 casos de tortura nos últimos quatro anos, sem que qualquer um deles tenha se desdobrado em abertura de ação penal para apuração de crime. Do total de ocorrências de tortura, 10% das vítimas morreram.
A entidade detectou os seguintes problemas no sistema carcerário: agressão física, prática mais atrelada à tortura (58% dos casos); condições degradantes das estruturas prisionais (41%); negligência na prestação de assistência material, como alimentação, vestuário, produtos de higiene e roupa de cama (35%). A negligência na prestação de assistência à saúde foi detectada em 33% dos casos, e em outros 15% foi relatada a utilização de armas de fogo ou de menos poder letal como instrumento potencializador do sofrimento.
A Pastoral Carcerária também constatou a ocorrência de tratamentos humilhantes ou degradantes impostos a familiares dos detentos, como revista vexatória durante visitas no cárcere. O que também é comum, revela o documento, é o uso de parentes, principalmente mulheres, como instrumento de punição aos presidiários – os abusos consistem, por exemplo, em restrições indevidas impostas às visitas e obstáculos colocados por carcereiros à entrega de alimentos e produtos de higiene. Trata-se de maus tratos indiretos aos apenados, diz a entidade.
“Nos seis casos em que consta alguma forma de violência sexual, chama atenção que a maioria envolvia mulheres como vítimas. Deste total, constam dois casos de estupro, uma denúncia de empalação, e três casos de ‘procedimentos’ envolvendo nudez forçada diante de outros presos e servidores, inclusive um em que as genitálias das presas teriam sido fotografadas como forma de humilhação e aplicação de castigo”, diz trecho do relatório, referente aos “tipos de violência”.
A Defensoria Pública foi acionada pela Pastoral Carcerária em 82% dos casos detectados. Já o Ministério Público foi notificado em 61% dos casos e a Justiça, em 46% das denúncias. Nenhuma das denúncias se desdobrou em ação penal para apuração de crime (fase seguinte ao inquérito), ou seja, nenhum agente público foi responsabilizado durante os procedimentos judiciais e disciplinares.
“As práticas torturantes, por sua vez, evoluíram, com novas técnicas que não deixam marcas, uso de armas menos letais, grupos de intervenção que agem acobertados pelo anonimato, técnicas sofisticadas de isolamento e desestruturação mental, privações de direitos e serviços básicos, e tantas
outras formas de imposição de sofrimento físico e psicológico agudos”, constata a organização.
Uma das principais conclusões do trabalho é que os ditames da Resolução 49/2014, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e da Recomendação 31/2016, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), têm sido descumpridos em ampla escala. Os comandos normativos reúnem padrões internacionais de investigação e documentação dos casos de tortura e outras modalidades de tratamento desumano reunidos no Protocolo de Istambul, documento oficial das Nações Unidas formulado em 1999.
Também foi constatado baixo percentual de solicitação de exame de corpo delito nas vítimas de agressão, diante do alto índice de ocorrências desse quesito (58%): na Defensoria Pública, o percentual de requisições foi de 4%, enquanto no Judiciário foi 6% e, no Ministério Público, de 5%. Como se não bastasse a baixa taxa de exames, a demora dos trâmites dos pedidos os torna obsoletos.
É notória a subnotificação das ocorrências de tortura ou outros tipos de violação, observa o trabalho. Vítimas de agressão física e demais abusos só foram ouvidas pela Defensoria Pública em apenas 33% das denúncias – 14% e 12%, respectivamente, no Judiciário e no Ministério Público. Em 32% das ocorrências a Defensoria Pública inspecionou o palco das agressões – em 17% e 13% dos casos, respectivamente, Judiciário e Ministério Público fizeram o mesmo.
“O sistema de Justiça, por meio de omissões e medidas absolutamente inaptas para documentar, apurar e responsabilizar o Estado e seus agentes pelos casos de tortura e outras violações de direitos no cárcere, opera, na prática, como uma rede de proteção e legitimação da ação estatal”, protesta a Pastoral Carcerária.
“Os resultados das denúncias falam por sí: em 37% dos casos foi instaurado procedimento de apuração perante a Vara de Execução ou outros órgãos de controle judicial; em apenas 12% dos casos foi instaurado inquérito policial; 7% das denúncias resultaram na propositura de Ação Civil Pública15; 4% deram origem a procedimento administrativo disciplinar contra servidor público e em apenas 0,5% dos casos foi proposta ação indenizatória em benefício da vítima ou dos seus familiares”, acrescenta o relatório.
A Pastoral recomenda, entre outras providências, ações integradas de desencarceramento, desmilitarização das forças de execução e diminuição do aparato securitário do Estado. O diagnóstico é que os códigos legais já não são suficientes para enfrentar os problemas do sistema carcerário.
“Reformas institucionais e legais, como a criminalização da tortura e a criação de um conjunto de mecanismos de monitoramento da realidade prisional, como o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, podem representar vitórias e ganhos pontuais, mas, abstraídos de um projeto político antiprisional e de enfrentamento ao encarceramento em massa, se mostram incapazes de responder às novas dinâmicas da tortura”, aponta o relatório.