Onda Trump gerou Bolsonaro, mas humanidade não se curvará a fascismo, diz NYT

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Do Brasil à Hungria, vários países parecem ainda se identificar com o nacionalismo belicoso de Trump –mas, nos EUA, os eleitores reagiram, enquanto a China tira vantagem de sua petulância. Já paira no ar a ameaça de uma guerra sino-americana.

Através da névoa da mudança precipitada pelo narcisismo voraz de Trump, uma nova ordem começa a tomar forma, mas ainda é indiscernível. Às vezes, uma besta de muitas cabeças parece querer surgir, guinchando em vozes dissonantes, prometendo conflito, mas talvez isso não passe de subestimação da premissa de um século 21 hiperconectado.

Depois do mundo bipolar e do unipolar, esta é uma era sem nome. As ideias que deram aos EUA sentido de propósito nas décadas pós-guerra, desde a propagação da liberdade a uma ordem internacional baseada em regras, foram abandonadas. O interesse próprio norte-americano, esclarecido e benéfico tanto para os EUA como para seus aliados, foi substituído por uma egolatria grosseira.

O ritmo do comportamento ofensivo se intensifica. Com a presidência de Donald Trump, é impossível lembrar na sexta o que parecia inadmissível na segunda; até a putrefação pode ser normalizada. É da natureza humana se adaptar. A “cultura” global é cada vez mais definida pelas elites ricas, sim, mas sem valores – como na Rússia, na Arábia Saudita, na China e nos EUA de Trump -, enquanto os excluídos se voltam para um nacionalismo xenófobo e raivoso. É “Podres de Ricos” x “Era uma Vez um Sonho: A História de uma Família da Classe Operária e da Crise da Sociedade Americana”.

A palavra norte-americana perdeu valor, e era com ela que a segurança do mundo contava nas décadas que se seguiram a 1945. Nesse vácuo, onde o objetivo norte-americano não vai além de vencer batalhas comerciais, a China ganha corpo, a impunidade se alastra, os agentes poderosos se multiplicam e os autocratas fazem o que bem entendem. A palavra “valores” parece bizarra. A China, nação repressora onde cada vez mais o acesso à informação é controlado, é líder mundial em formandos universitários. A competição de ideias entre o autoritarismo e a democracia liberal parece superequilibrada.

Começamos a dar de ombros a situações antes impensáveis: milhares de crianças separadas dos pais na fronteira mexicana; declarações falsas ou enganadoras divulgadas diariamente pelo Salão Oval; a imprensa atacada pelo presidente, que a classifica como “inimiga do povo” (frase puramente totalitária); um vídeo adulterado pela Casa Branca, na tentativa de desacreditar um correspondente da CNN; um presidente que desacredita seus serviços de inteligência e exalta Vladimir Putin; a União Europeia descrita como “violenta” por Trump, enquanto o líder norte-coreano Kim Jong-un passa de ameaça à humanidade a alguém com “grande personalidade”.

Ah, quase ia me esquecendo do cancelamento recente, quando Trump se recusou a visitar o Aisne-Marne, na França, nas comemorações do centenário do fim da Primeira Guerra Mundial, por causa da chuva. Sabemos que ele odeia o mau tempo porque afeta seu cabelo. Quem se importa com os mais de 2.250 norte-americanos naquele cemitério, que deram suas vidas longe de casa, não é mesmo?

Sabemos também que, em quase dois anos no poder, ele nunca visitou as tropas no Afeganistão, nem em nenhuma outra zona de combate. O covarde de cabelo delicado vira as costas aos mortos e aos militares destacados.

Esse é o nacionalismo trumpiano, uma salada fantasiosa de slogans confusos e humilhação moral. O chinês Xi Jinping deu o passo para uma administração vitalícia e Trump diz: “Talvez a gente tenha que tentar fazer o mesmo um dia.” Foi piada. Quer dizer, mais ou menos. Mas foi também um vislumbre do estado do mundo.

Porém, ele não deve ser ignorado; sua manipulação da revolta nacional tem fôlego. Subestimá-lo é a maneira mais segura de garantir que fique na presidência até 2024.

As eleições intermediárias deram aos democratas uma vitória substancial na Câmara, com um ganho de pelo menos 37 cadeiras. O presidente agora está mais limitado no que pode fazer. Seus ataques a imigrantes e seu desprezo óbvio às mulheres tiveram sérias consequências nos subúrbios e municípios satélites de todo o país. A maioria dos norte-americanos decentes não gosta de demagogia; ainda assim, o caminho para a reeleição, em 2020, permanece aberto. Os republicanos, que viraram o Partido de Trump, mantiveram a primazia no Senado, ganhando duas cadeiras, e mostraram força na Flórida, estado crucial em todas as eleições presidenciais.

Uma década após o colapso financeiro de 2008, a animosidade em relação às elites que escaparam ilesas do desastre e a revolta contra uma desigualdade cada vez maior ainda alimentam uma onda de ultranacionalismo ao redor do mundo. A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil é apenas o exemplo mais recente da tendência que levou Trump ao poder.

Na Hungria, uma sociedade sedenta pela liberdade de Londres e Paris quando se libertou do império soviético, sob Viktor Orbán acabou se tornando o lugar para onde a família, a Igreja, a nação e as noções tradicionais de casamento e gênero vão para morrer. O primeiro-ministro oferece um novo modelo de iliberalismo para a Europa. Sua briga com o francês Emmanuel Macron pela influência ideológica determinará a direção da União Europeia, a Grã-Bretanha confirmando ou não a insensatez do Brexit em 2019.

Essa decisão, aliás, prova ser uma loucura que parece não ter fim. Como a eleição de Trump, o voto para a saída da União Europeia foi um sintoma dessa sede de ruptura a qualquer custo. A democracia liberal dá a impressão de estar mais vulnerável 25 anos depois de sua ascensão parecer garantida. O livre comércio está sob ataque, assim como a imigração e os direitos humanos também (não que esse seja um conceito de fácil assimilação para Trump).

A estagnação persistente dos salários dos operários e de grande parte da classe média, além de um sentimento de alienação cultural na periferia das metrópoles contribuem para a fissura societária. Nos EUA, nem mesmo a palavra “honestidade” tem significado unânime: os democratas acham que ela significa a conformidade com os fatos; nos domínios trumpianos, significa descrever as coisas como elas são – e por esse critério, para seus correligionários, Trump é o presidente mais honesto da história.

Ocorre que, quando não há diálogo, e com as redes sociais ampliando e estimulando os confrontos, a capacidade de as democracias ocidentais chegarem a um compromisso sobre o qual se baseia o progresso fica comprometida. Na vida, se você consegue 70% do que quer, é bem provável que acredite estar no caminho certo; só que, hoje em dia, nenhum político norte-americano vai dizer: “Só consegui 70% do que queria, mas vou votar pela medida mesmo assim, pelo interesse de vê-la prosperar.”

A China, em uma guinada ainda mais autocrática sob a direção de Xi, não tem essas preocupações. A nação traça planos, executa-os e segue adiante. Nas últimas décadas, tirou 800 milhões de pessoas da pobreza. Por que haveria de duvidar de si mesma? Pequim agora se oferece como uma alternativa explícita ao modelo democrático liberal.

E Trump tem sido bom para Pequim, com a paralisia política interna norte-americana, o enfraquecimento da autoridade moral dos EUA, a rejeição da Parceria Transpacífico e a retirada do Acordo de Paris – tudo isso favorece os chineses, que já é a líder mundial em energia renovável. Seu progresso é constante e implacável. Na Europa, da Grécia à Sérvia, a China está seguindo seu modelo africano: comprar tudo o que for possível para controlar os recursos e a infraestrutura.

Trump comprou a briga do comércio, e algumas de suas queixas têm até razão de ser, mas por não conseguir desenvolver uma política geoestratégica coerente para confrontar os chineses, a tarifação parece mais uma consequência de sua petulância habitual. E o fato de o presidente se aproximar do norte-coreano Kim Jong-un, além de gerar estranheza, reforça a posição da China. Trump mostra fraqueza e faz concessões, mas não recebe nada de concreto em troca. Até a retirada das tropas norte-americanas da Península da Coreia não é assim tão impossível – o que seria muito apreciado pelos chineses, além de um ato consumado de insensatez perigosa.

O expansionismo chinês sob Xi e a imprevisibilidade norte-coreana reproduzem no Leste Asiático parte das tensões da Europa durante a Guerra Fria. A fricção entre os EUA e a China em relação às “práticas comerciais injustas” na cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC) foi tamanha que, pela primeira vez em 25 anos, ou desde que o evento teve início, nenhum comunicado foi divulgado. Apesar disso, acredito que a busca chinesa pela estabilidade regional e global, com o objetivo de completar sua ascensão até 2050, fará com que contenha o confronto com os norte-americanos – a menos que haja uma escaramuça militar.

E é provável que tais limites à guerra sejam reforçados pela tecnologia, apesar do uso que sociedades autoritárias como Rússia e China fizeram e fazem dela. Não somos mais o mundo da primeira metade do século 20.

Trump e outros nacionalistas usam vários métodos do fascismo: culpabilização, xenofobia, mistificação nacionalista, mobilização das massas… mas as forças que favorecem as sociedades abertas são muito mais fortes hoje do que há cem anos. Há muros sendo erguidos em todo lugar, e a China já demonstrou que a internet pode ser controlada, mas a disseminação de ideias e o idealismo não são tolhidos facilmente. Mesmo um presidente norte-americano péssimo como o atual não pode jogar o mundo no abismo com facilidade. E é nisso que jaz a esperança do século XXI: não em países, nem na obsessão de Trump, mas nas pessoas e nas redes que elas criam.

A vitalidade da imprensa norte-americana demonstra que o poder de Trump tem limites. Seus ataques às instituições nacionais, incluindo o Departamento de Justiça, e aos melhores meios de comunicação do país, geraram uma conscientização cada vez maior da necessidade de um jornalismo investigativo rigoroso –e isso não sai de graça. As assinaturas online dos jornais, incluindo o New York Times, dispararam. Essa é a boa notícia.

A má é que o jargão de Trump –“fake news” (“notícia falsa”)– pegou, e é ouvido ao redor do mundo. Os jornalistas são atacados com maior impunidade – olha aí a palavra de novo – porque Trump declarou aberta a temporada de caça a eles e à sua profissão. O assassinato covarde do colunista do Washington Post, Jamal Khashoggi, no consulado saudita em Istambul, é o exemplo mais gritante disso.

A busca rigorosa da verdade, de forma justa, é denunciada como sendo “fake”; a própria Casa Branca vende boatos e até mentiras gritantes como fatos. A desorientação se estabelece. É isso que Trump quer: um desarranjo agitado.

Em reação a esse estado de coisas, é importante que o Partido Democrata não perca o foco. A única forma de se livrar de Trump é vencendo. Os republicanos não compõem mais o partido anti-Rússia, internacionalista e favorável ao livre comércio que já foi; agora são o partido de Trump, dos “EUA em primeiro lugar”. Os democratas também estão em transição. Será que o partido deve ir mais para a esquerda, onde há uma energia vital e os progressistas já conquistaram várias vitórias? Ou deve tentar encontrar uma nova expressão no centro?

Não acho que uma chapa democrata esquerdista consiga desbancar Trump; tampouco acredito que um candidato da Costa Leste ou Oeste, completamente desvinculado dos correligionários do presidente, consiga essa façanha.

Possíveis nomes como Max Rose, de Staten Island, e Jason Crow, do 6º distrito congressional do Colorado, vêm mostrando uma preocupação com a saúde e a educação (duas das principais preocupações da população), combinada com uma mensagem patriótica forte, vinda de dois homens que já estiveram na linha de combate; isso, sim, pode conquistar os redutos republicanos.

A vitória de Kyrsten Sinema pelo Arizona no Senado também ilustra o apelo da posição centrista. Oferecer resultados pragmáticos ao norte-americano médio com uma convicção apaixonada, combinada com um patriotismo comedido e realista, é a melhor maneira de derrotar Trump.

O presidente fará o possível e o impossível para vencer em 2020; não há limite para sua imoralidade e desumanidade. A maneira desavergonhada com que fomentou o medo das chamadas “caravanas” de imigrantes centro-americanos rumo à fronteira EUA-México, às vésperas das eleições de meio de mandato, foi só uma amostra da baixeza de que é capaz para conquistar apoio.

Os EUA conseguem se recuperar de quatro anos de Trump; já oito é mais difícil. Manter a república será uma tarefa exigente, constante –e crucial para a humanidade, já que a China quer universalizar a ideia de que a liberdade é um conceito secundário.

 Roger Cohen é colunista do New York Times, onde trabalha desde 1990 e já foi correspondente e editor internacional.

Do UOL