Comandada por Witzel, PM do RJ usa torre para atirar em trabalhadores
Já havia passado das cinco horas da tarde do dia 29 de janeiro quando C. deixou sua casa, na favela de Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro, para comprar água de coco para seu filho recém nascido. As ruas estavam cheias e não havia sinal de tiroteio. Enquanto esperava pela bebida, o ajudante de pedreiro de 22 anos se encostou num poste e começou a conversar com um amigo. Quando se virava para pegar a água, recebeu um tiro próximo à sua costela direita. Por sorte, a bala entrou pelas costas e saiu pela barriga, sem afetar nenhum órgão vital. É o único sobrevivente de disparos que vêm sendo feitos desde 2018 por snipers de uma torre da Cidade da Polícia, unidade administrativa da Polícia Civil, localizada a cerca de 250 metros do largo em que estava quando foi alvejado, segundo um relatório da Defensoria Pública do Rio que apresenta as denúncias feitas por moradores. Os tiros vindos da torre já acabaram com a vida de seis pessoas que moram em Manguinhos, afirma o documento obtido pelo EL PAÍS.
O depoimento do ajudante de pedreiro, também presente no relatório, foi publicado pelo jornal Extra, que também informou sobre a execução de Rômulo Oliveira da Silva, um porteiro da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) atingido no peito horas depois, naquele mesmo dia 29. O rapaz de 37 anos transitava de moto pelo mesmo local quando foi baleado. Dias antes, em 25 de janeiro, Carlos Eduardo dos Santos Lontra, de 27 anos, estava na mesma localidade quando levou um tiro nas costas, na altura da lombar, e morreu. Com base no depoimento do único sobrevivente e de familiares das outras vítimas, o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP), do Ministério Público do Rio, abriu um procedimento investigativo. No dia 4 de fevereiro, defensores públicos do Núcleo de Direitos Humanos acompanhados por membros de outras entidades estiveram em Manguinhos para colher mais informações. Os moradores denunciaram então outras quatro mortes ocorridas no ano passado, mas as vítimas não foram identificadas. Também não está claro se ocorreram durante a intervenção federal, decretada no dia 16 de fevereiro do ano passado e em vigor até o dia 31 de dezembro.
Ao longo da última campanha eleitoral —e também depois—, o Governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), prometeu reiteradas vezes que policiais fariam um curso de sniper e atirariam em bandidos armados, inclusive a longa distância e, se preciso, de helicópteros. Mas, a julgar pelos depoimentos dos moradores de Manguinhos, essa doutrina de Witzel não é novidade e já estava em vigor bem antes de sua posse —e não vitima apenas traficantes portando fuzis. “Acho difícil fazer essa vinculação imediata [com o Governo Witzel] porque, aparentemente, já houve pelo menos outros quatro casos de pessoas mortas naquele mesmo perímetro em 2018. Mas as sinalizações dos Governos estadual e federal tornam o ambiente mais permissivo. Ampliam a possibilidade de uma atuação ilegítima e excessiva da polícia e abrem caminho para a impunidade”, opina a advogada Maria Laura Canineu, diretora da ONG Human Rights Watch no Brasil.
Canineu era uma das presentes na comitiva da Defensoria Pública que visitou Manguinhos no último dia 4. Ela relata um ambiente de “medo muito forte” e conta ter visto marcas de bala e manchas de sangue no largo, ponto de venda de bebidas e lanches, onde as seis pessoas morreram e outra ficou ferida. De lá é possível ver a torre branca da Cidade da Polícia. “É preciso uma perícia, mas todos os depoimentos coincidem. A comunidade fala em snipers porque são tiros certeiros, então tem a convicção de que vem da torre da polícia com orientação certa. É muito grave que o Ministério Público não tenha nem conhecimento das mortes ocorridas no ano passado”, argumenta. No último dia 30, moradores convocaram um ato em protesto pelas execuções em frente a Cidade da Polícia, segundo o relatório da Defensoria.
O jornal Extra informou na terça-feira que uma perícia da Divisão de Homicídios e do Ministério Público identificou buracos abertos na parede da torre da Cidade da Polícia capazes de sustentar os canos de armas. As seteiras, como são chamados, estão virados para a favela de Manguinhos e os peritos concluíram que é possível fazer um tiro de precisão de lá. O EL PAÍS questionou a Polícia Civil sobre essa perícia e outros detalhes sobre os sete casos de disparos contra moradores da comunidade. Em nota, o órgão reconheceu apenas duas mortes e afirmou: “A Delegacia de Homicídios da Capital realizará perícia de local em Manguinhos, na tarde de segunda-feira (18/02), com acompanhamento do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo é dar continuidade às perícias técnicas referentes ao inquérito que investiga as mortes de Rômulo Oliveira da Silva e Carlos Eduardo dos Santos Lontra, ocorridas em janeiro. A Defensoria Pública foi convidada a acompanhar os trabalhos”. Este jornal tentou contactar o GAESP, do Ministério Público, mas não teve retorno.
Operação com dezenas de mortos
A última semana também ficou marcada por uma operação policial nos morros da Coroa, Fallet-Fogueteiro e dos Prazeres ocorrida na última sexta-feira, 8 de fevereiro. O objetivo, segundo a Polícia Militar, era “intervir numa guerra entre facções criminosas rivais, que disputam o controle de território naquela região”. Em nota enviada ao EL PAÍS, a PM do Rio reiterou que houve confronto, “iniciado por criminosos fortemente armados”, que 11 suspeitos foram presos e outros 15 foram encontrados feridos e socorridos para o Hospital Municipal Souza Aguiar. “Entre os feridos, 13 vieram a óbito e dois estão internados”. Já a Secretaria Municipal de Saúde diz foram 14 mortos, uma vez que outro ferido morreu momentos depois no horpital, e outros dois permanecem internados. Além desses óbitos, outros dois corpos foram encontrados pelas famílias na mata perto do morro dos Prazeres, segundo informou o Extra na segunda.
Contudo, a versão oficial de que houve confronto se contradiz com depoimentos de que houve tortura e execução durante a operação. Imagens mostram um imóvel no Fallet-Fogueteiro com uma enorme quantidade de sangue espalhada pelo local. Testemunhas e familiares das vítimas dizem que nove dos suspeitos, de 15 a 22 anos, haviam se refugiado no local. Reconhecem que estavam envolvidos com o tráfico de drogas, mas que tinham se rendido. Mesmo assim, contam, foram executados por policiais e já chegaram mortos no hospital. Um vídeo divulgado pelo Extra mostra um carro do Batalhão de Choque da PM em frente ao imóvel com os cadáveres dentro de sua caçamba. A um quilômetro do local, em outra casa da favela, os irmãos Maikon e David Vicente da Silva, de 17 e 22 anos, foram torturados por 40 minutos e mortos em seguida, de acordo com a denúncia de vizinhos e parentes a Defensoria Pública. As outras mortes ocorreram no morro dos Prazeres.
A mãe de um dos rapazes foi prestar depoimento na terça-feira no Ministério Público e falou com jornalistas na saída, segundo informou o portal UOL. Tatiana Carvalho disse que seu filho, Felipe Guilherme Antunes, de 21 anos, não trocou tiros com policiais. “Enfiaram faca no meu filho, quebraram o pescoço do meu filho. Não foi tiro”, contou a mulher, que também mostrou a certidão de óbito que indica perfuração por objeto no cadáver. “Eles [policiais] falaram que vão voltar na comunidade, que mataram 13 e vão matar 20. Será que ninguém vai fazer nada?”. A Comissão de Direitos Humanos da OAB também acompanha o caso.
“Uma das formas que a polícia tem de acobertar algo é levando os corpos para o hospital ou colocando armas na cena do crime”, lembra Canineu, da Human Rights Watch, que também questiona a tese de que houve confronto uma vez que “só de um lado houve mortes e feridos”. Já Daniel Cerqueira, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e economista do IPEA, credita as mortes à irresponsabilidade da retórica populista dos nossos governantes”. Essas mortes, incluindo as que ocorreram em Manguinhos neste ano, “já estão na conta do Bolsonaro, Moro e Witzel”, opina. Ele também diz que, apesar terem assumido seus cargos recentemente, essa situação já se vinha desenhando desde o decreto da intervenção federal, que é também “uma consequência desse discurso fácil, populista e que só joga mais lenha na fogueira da tragédia brasileira, que violência se resolve com doses maiores de violência”.
Cerqueira ainda criticou o projeto anticrime apresentado por Sergio Moro, ministro da Justiça, no dia 4 de fevereiro. Em seu plano, Moro dá sustentação à ‘doutrina do abate’ de Witzel e à promessa do presidente Jair Bolsonaro de estender o excludente de ilicitude. O texto determina que um policial que matar uma pessoa e alegar que agiu sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” pode ficar sem nenhuma punição. Para o especialista, trata-se de “um conjunto mal acabado de variadas ideias, que não tem concatenação com qualquer diagnóstico minimamente razoável sobre as causas do crime no Brasil, não possui estratégia de onde se quer chegar e muito menos provê os meios necessários”. Além disso, argumenta, “não toca na principal questão sobre a qualificação do trabalho policial, gestão e integração das polícias e atores envolvidos na prevenção”.
Ele ainda comparou o momento atual do Brasil ao México do ex-presidente Felipe Calderón (2006-2012), que apostou na militarização da segurança pública e “piorou a situação”. “Não tenho dúvida da tragédia em curso. Este ano bateremos recorde de mortes por policiais e de homicídio. E o pior é que com a deterioração do cenário isso será utilizado como argumento para aumentar ainda mais a dose da barbárie”, conclui.
Ainda sobre a operação de sexta, a PM informa que os policiais apreenderam quatro fuzis, 14 pistolas, seis granadas, três radiocomunicadores, além de carregadores e drogas. Já a Polícia Civil afirma que as investigações estão em andamento na Divisão de Homicídios. “Testemunhas e familiares estão sendo ouvidos e a unidade aguarda o resultado dos laudos periciais. Diligências estão sendo realizadas e todas as informações que chegam até a especializada estão sendo apuradas”. O deputado estadual Rodrigo Amorim, que quebrou durante um ato de campanha a placa com o nome da vereadora Marielle Franco, executada em março do ano passado, propôs uma homenagem aos policiais que mataram os rapazes.