Conservadorismo é diferente de fanatismo
Com um mês de governo, está claro que há quatro núcleos de poder: o econômico, de Paulo Guedes, o lavajatista, de Moro, o militar, de Mourão, e o fanático, do presidente.
Os fanáticos veem Jesus na goiabeira, usam a página oficial de ministérios para insinuar relações entre jornalistas e a KGB, acreditam que aquecimento global é “marxismo cultural” e comemoram quando um parlamentar tem que abrir mão do mandato para permanecer vivo.
É preciso distinguir fanatismo de conservadorismo. E Mourão sabe disso. Suas declarações moderadas pretendem separar o joio do trigo. E mostrar que, no novo regime, ele é o trigo.
Na última semana, o vice-presidente disse que o aborto deveria ser opção da mulher, frisando que falava “como cidadão, e não como membro do governo”. Mourão talvez nunca imaginasse que tivesse que dizer este tipo de coisa para compor sua persona pública.
Mas o vice-presidente é um estrategista. E parece querer ser visto como um novo tipo de militar que, diferente do passado autoritário das Forças Armadas no poder, joga o jogo político dentro das regras da democracia. Suas declarações acenam aos setores conservadores da sociedade, e ele não hesita em ir além, avançando até o campo das mulheres progressistas e fazendo uma operação política poderosa ao retirar o debate sobre aborto do campo do fanatismo.
Complexo e polêmico, o debate sobre aborto vem sendo travado pela ativista e professora Débora Diniz há quase duas décadas. Mas só depois da vitória de Bolsonaro ela precisou sair do país para se manter viva. Seu exílio, assim como o de Jean Willys (PSOL), são vitórias do fanatismo. Quando acontecem, tornam-se “grandes dias”. O grande dia é o dia da eliminação da diferença e do debate de ideias, através da eliminação outro.
Só que o fanatismo representa um grupo pequeno. Segundo pesquisa publicada em janeiro pelo Datafolha, apenas 14% da população brasileira concorda com todas as teses fanáticas do presidente. O perfil destes 14% é: maioria de homens, brancos, de classe média alta, com escolaridade.
Não à toa, o perfil deles é exatamente o mesmo dos “haters” de internet. Segundo a pesquisa “A Voz das Redes”, do Instituto Avon, os “haters” são 96% homens e 79% brancos. Ao se analisar o perfil socioeconômico, 19% são da classe A, 34% da classe B e 31% da classe C.
Em 61% das vezes em que os homens se inseriram no debate sobre violência contra a mulher no ambiente digital, foi de forma agressiva e/ou desqualificadora. As mulheres conhecem o fanatismo. Sabem que é machista e misógino, e que desqualificar, perseguir para silenciar, caluniar e ameaçar são suas formas de agir.
São os fanáticos de internet que sobem hashtags como #UstraVive, depois do presidente fanático homenagear o torturador. Brilhante Ustra comandava os porões da ditadura, e o único projeto que faz os olhos do presidente brilharem é terminar o serviço que a ditadura não fez: eliminar a esquerda, eliminar a diferença, eliminar a política, só que desta vez, por dentro da democracia.
A tortura física dos porões hoje acontece no genocídio da juventude negra. Sua máquina violenta pretos, pobres, periféricos e mulheres que não podem decidir sobre seus corpos.
Já para os inimigos políticos, quem precisa do porão da ditadura, se você pode torturar e eliminar o outro através das redes? Ameaças de morte privadas e tentativas de assassinato de reputação pública são a ponta da praia do século 21. A operação de ligar Jean Willys ao atentado a faca é o exemplo melhor acabado de que Ustra sobrevive na rede.
O necessário enfrentamento ao fanatismo já está em curso. É preciso darmos nomes aos bois. Conservadores precisam voltar a ser conservadores, para que os fanáticos sejam o que são: poucos e patéticos.