Criminalização da homotransfobia significa punir os discursos de ódio
Com suas limitações, o direito penal existe para proteger os direitos humanos. Logo, quando uma pessoa lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual ou intersexo é agredida ou morta quase diariamente no Brasil por ódio e quando discriminações e discursos de ódio são históricos, estruturais, sistemáticos e institucionais, um direito penal mínimo e garantista se impõe.
Afinal, a Constituição ordena que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI).
O Código Penal prevê aumento de pena para crimes praticados contra crianças e idosos (além do feminicídio). A Lei Antirracismo criminaliza discursos de ódio e discriminações por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (o Código Penal não o faz). Por que as mesmas intolerâncias, cometidas contra alguém por ser LGBTI, não deveriam ser igualmente criminalizadas?
O Legislativo não tem cumprido o seu dever constitucional de proteger pessoas LGBTI. Vivemos uma era nefasta, repleta de casos dramáticos, como o caso no interior paulista em que dois homens (heterossexuais) estavam abraçados e foram agredidos por um grupo que pensou se tratar de um casal homofetivo. Eram pai e filho.
Como afirmou magistralmente o ministro Celso de Mello, do STF: “Versões tóxicas da masculinidade e da feminilidade acabam gerando agressões a quem ousa delas se distanciar no seu exercício de direito fundamental e humano ao livre desenvolvimento da personalidade, sob o espantalho moral criado por fundamentalistas religiosos e reacionários morais com referência à chamada ideologia de gênero”.
A questão tem sua complexidade constitucional, pois, tradicionalmente, exige-se lei prévia para criação de crimes. O STF, para cumprir a Constituição, pode interferir?
A Constituição traz mecanismos para enfrentar a omissão: mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Por eles, a corte regulamentou a greve e a aposentadoria especial dos servidores públicos.
A lei do aviso prévio proporcional ao tempo de serviço só foi aprovada porque o STF deliberava sobre a regulamentação. À falta de lei sobre repasse de recursos da União para os Estados e o Distrito Federal, o Supremo concedeu prazo para o Congresso fazê-lo, sob pena do Tribunal de Contas da União fixar as regras.
Nesses casos, a Constituição exige lei e o STF, reconhecendo a omissão inconstitucional, solucionou-a, normativamente (enquanto não aprovada lei). Alternativas razoáveis e criativas permitem à corte participar da construção de soluções sem abalar a separação de Poderes, pois o Estado de Direito não suporta o descumprimento acintoso da Constituição.
O STF pode reconhecer a LGBTIfobia como crime de racismo, entendido este como inferiorização de um grupo social relativamente a outro, como ocorreu em famoso julgamento sobre antissemitismo (HC 82.424), para o crime de discriminação por raça (art. 20 da Lei 7.716/89) incluir a homotransfobia. Isso não implica “legislar”, mas interpretar a lei, tarefa do Judiciário.
A criminalização da homotransfobia não ameaça a liberdade de expressão e de religião. Ninguém prenderá padres ou pastores por dizerem que a homossexualidade é “pecado”. Só ofensas, discursos de ódio e incitações à violência serão crime.
Nessa justa medida, tal criminalização concretiza o comando constitucional de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV).
Da FSP