Diversidade no Oscar foi recado para estupidez de Trump
Se a 91ª premiação do Oscar, no domingo (24), preferiu contemplar com estatuetas versões pasteurizadas da segregação racial, da tensão entre classes e da afirmação da homossexualidade, o mesmo não se pode dizer da apresentação, que tomou rumo diverso e derrubou muros.
Sem mestre de cerimônias, a festa de fato correu mais ágil, e apresentadores e laureados pareceram mais soltos para discursar, criticar e fazer piadas, ainda que se saiba que quase tudo ali é roteirizado.
Números musicais mais curtos e pop evitaram a modorra, e a calorosa interação no palco entre Lady Gaga e o ator Bradley Cooper será lembrada e comentada por muito tempo.
A mudança, felizmente, não foi só na forma. Houve esforço para que a maioria dos apresentadores não fosse de americanos brancos de ascendência saxônica (parece específico demais, mas foi nisso que a Academia que concede o prêmio sempre se espelhou).
Das 51 pessoas que foram ao palco entregar o homenzinho, 27 fogem dessa descrição.
O intento criou situações ligeiramente bizarras. Se há fartura de artistas negros reconhecidos no showbiz americano, o mesmo não ocorre com hispânicos, ainda mais sub-representados (só perdem para os asiáticos, lembrados no palco por Michelle Yeoh, Constance Wu e a engraçadíssima rapper Awkwafina.
A certa altura, para produzir uma dupla de migrantes no palco, foi preciso convocar, ao lado do ator mexicano Diego Luna, o chef espanhol José Andrés, que chegou aos EUA na juventude com US$ 50 e desde então construiu alguns dos melhores restaurantes do país e é requisitado pela Casa Branca, além de ter (claro) virado apresentador de reality show.
O público hispânico representa uma fatia crescente na população e na audiência, mas não só: é ele o protagonista da principal polêmica do governo de Donald Trump, o republicano que quer erguer um muro na fronteira com o México e impedir imigrantes vindos do sul de entrarem.
Em atenção a isso, a imigração foi o assunto principal da cerimônia, ressaltado em discursos como o do filho de egípcios Rami Malek e do espanhol Javier Barden, que entregou o prêmio de melhor filme estrangeiro para o mexicano-netfliquenho “Roma” e falou apenas na língua-mãe.
“Nenhum muro pode barrar o talento e a engenhosidade”, provocou, ao lado de uma esplendorosa Angela Basset.
Não foi o único golpe direto em Trump. Spike Lee, ao receber o prêmio de melhor roteiro adaptado por “Infiltrado na Klan” —seu primeiro Oscar em uma carreira notável— evocou a escravidão, o preconceito e a exploração.
Se a Academia ainda não se mostra pronta para premiar filmes questionadores como o de Lee (a sátira política “Vice” foi confinada a um prêmio de maquiagem, e a fantasia de empoderamento racial “Pantera Negra” só foi reconhecida por seu desenho de produção & figurino e pela trilha sonora), há de se reconhecer o avanço.
Dos prêmios principais, apenas o de roteiro original foi entregue a homens de meia idade no protótipo da indústria, os autores de “Green Book”, filme com mais senões do que elogios da crítica.
Dois homens de nome árabe —Malek, que encarnou Fred Mercury, um cantor de ascendência indo-persa, e Mahershala Ali, um americano negro convertido ao islã— ficaram com os prêmios de melhor ator (Ali com o de coadjuvante por “Green Book).
Uma mulher negra, Regina King, foi a melhor coadjuvante por “Se a Rua Beale Falasse”, que também trata de questões raciais, e britânica Olivia Colman, velha demais para o padrão starlet e jovem demais para ser um cânone, foi surpreendida, aos 45, com um Oscar que bem poderia ser de Glenn Close.
O melhor diretor foi outra vez um mexicano, Alfonso Cuarón, por seu “Roma”; Lee, negro e ativista, ficou com roteiro adaptado, e uma animação sui generis, “Homem-Aranha no Aranhaverso”, que torna o herói um menino negro, deu um inédito prêmio de animação a um diretor negro, Peter Ramsey.
Não é pouco nem é cota; é o reflexo de uma diversificação da população e do público, em parte impulsionada pelo fenômeno Netflix, que por sua natureza global e dispersa busca atender em sua programação diferentes línguas, cores e culturas.
É, também, uma demonstração de força e posição diante de um governo que, na contramão, tem como bode expiatório predileto aquilo que foge à sua imagem e semelhança. Antes tarde do que nunca.
Da FSP