Indígenas da Raposa Serra do Sol estão prontos para enfrentar Bolsonaro

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Não é de hoje que macuxis, wapichanas, ingaricós, patamonas e taurepangues, as etnias que habitam a Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, lidam com estereótipos.

Para esses povos, soa incompreensível que Macunaima (e não Macunaíma) tenha se transformado no personagem preguiçoso do livro de Mário de Andrade. “Ele criou tudo o que a gente tem. Somos os netos de Macunaima”, diz a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR).

Agora, dez anos depois de o STF (Supremo Tribunal Federal) ter confirmado a demarcação do território, os cerca de 25 mil moradores se preparam para enfrentar o presidente Jair Bolsonaro (PSL), que quer a volta dos fazendeiros não indígenas e a abertura da área para exploração mineral.

Os argumentos de Bolsonaro e de assessores próximos, como o general e também ministro Augusto Heleno (GSI), são de que a Raposa e outras terras indígenas são “zoológicos humanos”, onde os indígenas vivem na “idade da pedra” e impedem o desenvolvimento econômico, além de representar uma ameaça à soberania nacional.

Nos três dias em que a reportagem da Folha visitou o Surumu, uma das quatro regiões da Raposa, as comunidades, da etnia macuxi, faziam questão de mostrar o rebanho de gado, a principal atividade econômica, e suas plantações mecanizadas, além de oferecer produtos locais, como peixe, farinha de mandioca, manga, melancia, banana, pimenta, laranja, caju —e muita carne vermelha.

“Estamos vivendo bem, não estou morrendo de fome nem meus filhos estão morrendo de fome, não”, diz a vaqueira macuxi Elisa da Silva, 42. “Se esse presidente vier aqui com soldado, tenho a minha flecha.”

A vaqueira não está sozinha no rechaço a Bolsonaro. Apesar de ter obtido 71,5% dos votos no segundo turno em Roraima, ele perdeu para Fernando Haddad (PT) nos três municípios dentro da Raposa: Pacaraima, Normandia e Uiramutã.

Localizada no nordeste de Roraima e com acesso relativamente fácil por estradas, a Raposa Serra do Sol é quase toda coberta pela vegetação de “lavrado” (savanas), um pasto natural para o gado. Ou seja, ao contrário de outras regiões da Amazônia, a pecuária não toma o lugar da floresta.

O boi começou a chegar à região em meados do século 19, trazido por fazendeiros brancos. Usados como mão de obra barata, os indígenas passaram a se familiarizar com a criação, mas foi só a partir da década de 1970 que passaram a ter rebanho próprio, a partir de doações feitas pela Igreja Católica.

Foi nessa época que os indígenas começaram a se organizar, movimento que culminou na fundação do CIR (Conselho Indígena de Roraima), em 1990. Dois anos depois, o processo de demarcação, que havia iniciado em 1917, voltou a tramitar, culminando na homologação, em 2005, pelo então presidente Lula (PT).

Nos anos seguintes até o julgamento pelo STF, em 2009, a criação da terra indígena sofreu forte oposição dos fazendeiros, gerando episódios de violência. No incidente mais grave, em 2008, seguranças do arrozeiro Paulo César Quartiero balearam dez macuxis que acampavam na entrada de sua fazenda.

Depois da desintrusão (saída) mediante indenização dos pecuaristas e arrozeiros brancos, em 2010, os indígenas retiraram a maior parte das cercas deixadas pelos fazendeiros, voltando a ter acesso a todo o seu território ancestral, como lagos para pesca e campos de caça.

“Na época, o meu pai trabalhava de mão de obra para os fazendeiros”, diz o macuxi Roseno Lima, tuxaua (líder) de uma das comunidades do Surumu. Após controlar o choro, completa: “Lembrar o passado não é uma memória muito boa. Os meus pais não tinham a liberdade que tenho hoje”.

Atualmente, a Raposa e a vizinha terra indígena São Marcos somam 50.437 cabeças de gado, segundo contagem de outubro da Aderr (Agência de Defesa Agropecuária do Estado de Roraima), o equivalente a 6,2% do rebanho estadual.

“Hoje, os indígenas participam da economia do estado produzindo bezerro, engordados nas regiões de fazenda de Roraima”, afirma o veterinário Sylvio Botelho Neto, que há oito anos acompanha a pecuária na Raposa Serra do Sol como funcionário da Aderr —onde há quatro técnicos indígenas concursados.

Ele elogiou manejo sanitário do rebanho, principalmente por se tratar de uma área de fronteira com dois países, a Venezuela e a Guiana. Hoje, Roraima é reconhecida como área livre da febre aftosa com vacinação.

Botelho diz que o desafio agora é melhorar a infraestrutura de manejo dos rebanhos, principalmente os currais, já que a maioria deles não tem o corredor do tronco. Com isso, o gado precisa ser laçado para a vacinação e a marcação a ferro.

Além do pasto natural, outra diferença da pecuária indígena é a propriedade. No rebanho, há cabeças que pertencem a cada comunidade, a núcleos familiares e até a escolas, que usam a carne quando o fornecimento de merenda falha.

Coordenador-geral das 36 comunidades do Surumu, Anselmo Dionisio Filho, 42, explica que o gado coletivo funciona como uma poupança e pode ser requisitado para financiar eventos comunitários ou o tratamentos médicos mais complexos.

A mesma divisão comunitária é feita para o cultivo agrícola, incipiente do que a pecuária –só ano passado o Surumu passou a contar com um trator. Ainda assim, há excedentes, como no caso da melancia, comprada pelo governo federal e distribuída para o Exército e para abrigos de imigrantes venezuelanos em Pacaraima (RR), município onde se localiza parte do território da Raposa.

A oposição de Bolsonaro à demarcação de Raposa Serra do Sol começou quando era deputado. Em pronunciamento na Câmara em 2008, disse que a demarcação incentivaria uma invasão militar da China: “A hora que não tiver espaço mais pra chinês lá e a fome se fizer presente, eles vão lotar seus cargueiros e despejar esse excesso populacional na nossa rica, esquecida e abandonada Amazônia”.

No mesmo ano, durante uma audiência pública na Câmara para discutir a Raposa Serra do Sol, Bolsonaro foi atingido por um copo d’água jogado pelo líder indígena Jacinaldo Barbosa. Em reação, o então deputado disse que “ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens”.

Em 17 de dezembro, já como presidente eleito, voltou a repetir a promessa de campanha de rever a demarcação: “Você tem como explorar de forma racional. E no lado do índio, dando royalties e integrando o índio à sociedade”, afirmou.

Apesar de diversos juristas terem dito que a demarcação não pode ser revista porque transitou em julgado, a declaração de Bolsonaro voltou a dar esperanças a fazendeiros não índios que tiveram de deixar a área, em 2010.

No novo governo, a tarefa de rever as demarcações ficou com o pecuarista Luiz Antonio Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura e ex-presidente da UDR (União Democrática Ruralista).

No último dia 18, Nabhan esteve em Pacaraima (RR), na área da Raposa, integrando uma comitiva ministerial com o objetivo declarado de conhecer o acolhimento dos imigrantes venezuelanos que buscam refúgio no Brasil.

À Folha ele disse que a demarcação da Raposa “foi feita num governo que gerou muita instabilidade, muitos erros. É uma questão de passar a limpo”. Ressalvou, porém, que a revisão será realizada com a “devida prudência”.

Em entrevista para a imprensa local, ele foi mais enfático e classificou de “lamentável equívoco” o fato de que a maior parte do município de Pacaraima esteja em terra indígena.

“Temos de ter uma atenção especial em dar autonomia a esse município. Ele precisa ser desmembrado dessa vinculação de ser território indígena e passar a ter a sua função institucional de município, onde todos os brasileiros têm vez.”

A promessa de Bolsonaro de reverter a demarcação foi recebida com entusiasmo pelo setor agropecuário, que atribui a economia estagnada de Roraima ao fato de que pouco mais de metade do território são áreas protegidas, entre territórios indígenas e unidades de conservação, percentual apenas menor do que o Amapá.

“Foi uma bênção”, diz a empresária Izabel Itikawa, sobre a declaração de Bolsonaro em dezembro. Presidente do Sindigrãos (Sindicato das Indústrias de Beneficiamento de Grãos do Estado de Roraima), sua família tinha duas fazendas de arroz, que, somadas, chegavam a 8.000 hectares.

“Os depoimentos dados pelo Bolsonaro, ainda em campanha, geraram uma expectativa de muita alegria por parte de todos os produtores de Roraima na área do agronegócio”, diz Itikawa, em entrevista na sede de sua empresa de beneficiamento de arroz.

“Na nossa visão, essa homologação foi feita em cima de um laudo antropológico sem fundamentação”, afirma a empresária. “Espero que isso seja revisto e, quem sabe, até voltar para as nossas fazendas.”

Da FSP