Ministro do Meio Ambiente não fez mestrado em Direito Público em Yale
Flávio Moura*
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usa ternos bem cortados, óculos com aros de tartaruga, relógios caros, sabe conjugar verbos e costuma acertar o uso do plural. Destoa, portanto, de seus colegas de governo e sobretudo de seu chefe, cuja eloquência não resiste a mensagens de áudio de mais de um minuto no Whatsapp.
Segundo texto publicado hoje no site Intercept , porém, o ministro jamais frequentou a prestigiosa universidade americana. A assessoria de comunicação de Yale foi consultada e revelou desconhecer o rastro do ilustre estudante. Salles ainda não se pronunciou sobre o caso. Mas essa linha garbosa em seu currículo tem toda pinta de cascata.
Não é a primeira desse tipo no governo Bolsonaro. A titular do ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, declarou-se mestre em Educação, Direito Constitucional e da Família. Questionada pela Folha de S. Paulo sobre a origem do diploma, voltou atrás e se disse mestre “no sentido de que são mestres todos os que interpretam a Bíblia.”
O governo Bolsonaro não inventou o currículo mentiroso. Nos anos petistas, a praxe também vicejava. A própria Dilma Rousseff foi pega no pulo em 2009, ainda como ministra, ao se declarar mestre em Economia pela Unicamp. Ela tinha cursado algumas disciplinas, mas não chegou a defender a dissertação. Também o chanceler Celso Amorim declarava na página do Itamaraty ser doutor pela London School of Economics. Assim como Dilma, cursara algumas disciplinas, mas não defendeu a tese.
É possível tirar ao menos duas conclusões sobre essa mitomania curricular. A primeira, e mais óbvia, mostra que as universidades seguem firmes como chancela de credibilidade intelectual. Os financiamentos a pesquisadores podem andar aos pandarecos. A produção científica pode seguir inacessível, os salários de professores aviltados, as instalações deterioradas, os insights de Kim Kataguiri e Alexandre Frota sobre Marx podem encontrar adeptos. Mas quando uma figura pública quer lustrar sua biografia e autoimagem, ela, a universidade, continua ali, intacta como indutora de prestígio.
A outra conclusão, menos imediata, indica que essas mentiras têm significados diferentes. Dilma queria ser vista como economista da linha desenvolvimentista da Unicamp. O título acadêmico a situaria em pé de igualdade com os professores que lhe serviam de modelo e daria mais credibilidade a sua gestão na área. Amorim se pavoneava com o deslumbramento típico das altas instâncias do Itamaraty por indicadores de prestígio intelectual.
Já os intrépidos Salles e Damares são de mais difícil decifração. Por que desejam ostentar um título que o governo a que servem despreza? A era Bolsonaro inaugurou o desrespeito pela atividade intelectual legítima: não por acaso a imprensa séria e as universidades públicas são anátema para os cães de guarda do presidente. De que vale um título de doutor da USP para quem reduz a universidade pública à condição de propagadora de marxismo cultural?
O mesmo esgar de desprezo que um bolsonarista exprime diante da USP, um norte-americano defensor de Trump emite diante da menção a Yale ou suas equivalentes. São todos redutos da elite globalista, de costas para os problemas do trabalhador real.
O ministro da economia, Paulo Guedes, tem doutorado em Chicago mas já deixou de lado a carreira acadêmica, marcada pelo ressentimento com as figuras bem-sucedidas da Casa das Garças. O chanceler Ernesto Araújo gosta de citar Wittgenstein, mas curte mesmo os vídeos do youtubber e amigão Olavo de Carvalho.
Ricardo Salles, jovem, com sua ambição por holofote e vaidade de paulistano bem-nascido, poderia representar alguma reserva de seriedade intelectual desse governo, quem sabe até uma ponte com um setor do empresariado e do mercado financeiro que tem dificuldade de engolir a jequice de Bolsonaro, ainda que comungue de seus valores.
Mas não é preciso ter estudado em Yale para notar que ele não vai por esse caminho.
* Flávio Moura é editor da Todavia
Da Época