Vale alega que nada apontava risco iminente, mas relatório cita laudos de barragens emitidos sem a segurança recomendada
Documento interno da Vale registra que a mineradora sabia que laudos de estabilidade de suas barragens eram emitidos pelas empresas de auditoria mesmo sem atingir os índices recomendados de segurança. Seis meses antes do rompimento da Barragem I da Mina do Feijão, a empresa recebeu um relatório de um painel de especialistas –contratados por ela própria– no qual eles apontam que declarações de estabilidade foram dadas considerando “a disposição” da mineradora em resolver os problemas detectados. O documento faz parte do compêndio que está em posse do núcleo criminal da força-tarefa que investiga o desastre de Brumadinho, que diz ter identificado um “conluio” de funcionários da Vale, que teriam assumido o “risco de produzir centenas de mortes”. Pelo menos 166 pessoas morreram e outras 155 seguem desaparecidas por conta do tsunami de lama. As autoridades também apontam que troca de e-mails entre funcionários da mineradora e da auditora Tüv Süd demonstram “chantagem” da empresa brasleira para conseguir os laudos de estabilidade da firma alemã com base na promessa de contratos futuros.
Questionada sobre relatório interno, a mineradora disse apenas que “o documento mencionado reúne sugestões de um painel com especialistas nacionais e internacionais em temas relativos à geotecnia.” Repetiu que “não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho”.
O documento interno obtido pela reportagem explica que o painel de especialistas, que começou a funcionar em 2918, era parte do esforço declarado da Vale em atualizar suas práticas de segurança. No mesmo relatório, os especialistas elogiam a “evolução conceitual” da Vale na questão da segurança das barragens construídas à montante (o próprio rejeito de minério é usado na construção da barreira, num modelo considerado inseguro e caro). O grupo, porém, além de reclamar a qualidade dos laudos, cobra da empresa que contrate e treine pessoal “para o atendimento aos requisitos de projeto e legislação”, uma vez que “o staff geotécnico da empresa não consegue acompanhar de forma efetiva os trabalhos”.
Brumadinho com fator de segurança menor
Em outro momento, os especialistas concordam com a empresa deve utilizar como piso o “fator de segurança” maior ou igual a 1,3 nos casos em que sejam detectadas falhas por acúmulo de líquido na barragem. Em entrevista coletiva nesta semana, o gerente-executivo de Planejamento e Desenvolvimento de Ferrosos e Carvão da Vale, Lúcio Cavalli, afirmou que o risco de ruptura existe quando esse fator chega a 1. O nível considerado confortável, porém, seria de 1,5.
Em um trecho de e-mails apreendidos pelas autoridades e publicados pela Folha de S. Paulo, um dos responsáveis pelo laudo de estabilidade da Barragem I, Makoto Namba, da Tüv Süd, sugere que esse fator seria inferior ao mínimo de 1,3 já em maio do ano passado. “Tudo indica que não passará, ou seja, fator de segurança para a seção de maior altura será inferior ao mínimo de 1,3, dessa maneira, a rigor, não podemos assinar a Declaração de Condição de Estabilidade da barragem, que tem como consequência a paralisação imediata de todas as atividades da mina Córrego do Feijão”. E segue: “Mas, como sempre, a Vale irá nos jogar contra a parede e perguntar: e se não passar, irão assinar ou não?”. Em outubro passado, a empresa alemã emitiu o laudo mesmo após detectar problemas.
Investigações criminais
“A barragem rompeu com toda a sua fúria num evento que representantes da Vale insistem em afirmar que foi acidente, mas o Ministério Público e as polícias de Minas Gerais têm hoje a convicção de que ocorreu a prática de um crime doloso e um crime de homicídio, por meio do qual diversos atores assumiram o risco de produzir centenas de mortes”, afirmou o promotor de Brumadinho, William Garcia, que coordena o grupo formado por membros do Ministério Público e das polícias Civil e Federal que investiga o caso de Brumadinho. Garcia falou durante a entrevista coletiva nesta sexta-feira sobre a detenção de oito funcionários da Vale envolvidos no monitoramento da barragem que ruiu
Segundo o núcleo criminal dessa força-tarefa, as investigações sugerem a existência de um “conluio” de funcionários da mineradora, que teriam assumido o “risco de produzir centenas de mortes”. O promotor afirma que, mesmo detendo informações que sugeriam uma situação crítica na segurança da barragem de Brumadinho, houve uma articulação entre os funcionários na qual se discutiu e se assumiu os riscos. “Alguns funcionários da Vale participaram ativamente deste conluio para dissimular a situação crítica da barragem”, declarou William Garcia, sem identificar quais seriam estes funcionários. Segundo ele, alguns foram detidos nas duas operações policiais realizadas até agora. Duas pessoas já foram ouvidas, e as oitivas devem prosseguir na próxima semana.
O Ministério Público investiga agora como funcionava o fluxo de informações dentro da complexidade empresarial da Vale. Além das prisões provisórias, a operação policial desta sexta-feira apreendeu documentos na casa de quatro funcionários da Tüv Süd e na sede da Vale, no Rio de Janeiro. Com base nesses documentos, os investigadores tentam entender como a questão da segurança da Barragem I foi deliberada internamente na Vale e se as informações chegaram à alta cúpula da empresa. O promotor Leandro Wili coordenou a operação na sede da mineradora, que durou cerca de três horas. “O objetivo era colher documentos relacionados a deliberações da empresa que pudessem oferecer a discussão interna sobre a segurança da barragem”, afirma. Além de documentos físicos, a investigação se debruça sobre e-mails, mensagens voz e conversas no WhatsApp.
Outras oito barragens da Vale são alvo de ações civis públicas por risco de rompimento. Colocadas na zona de atenção em outro documento interno da mineradora, elas estão paralisadas temporariamente por decisão judicial. No entanto, apenas a Barragem I, que rompeu em Brumadinho, é investigada no âmbito criminal. A Vale tem reiterado em várias notas que nenhuma dessas barragens têm “risco iminente” de rompimento.
Do El País