Vítimas de Mariana sofrem com doenças de pele e respiratórias por contaminação por metais pesados
Em março de 2018, pouco mais de dois anos depois do rompimento da barragem de Fundão em Bento Rodrigues, 11 moradores da cidade mineira de Barra Longa – que está a 60 km do “epicentro” do desastre – descobriram que estavam contaminados por metais pesados.
Todos eles estavam intoxicados por níquel e metade tinha níveis de arsênico no sangue acima do normal. A maioria tinha problemas de pele e dificuldade para respirar. Esse foi o primeiro diagnóstico nesse sentido em uma população vítima da tragédia em Mariana.
O escopo restrito do estudo se deve ao fato de ele ter sido conduzido por uma organização social, o Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS), com recursos limitados.
Na época, o ISS ressaltou que, diante da amostra reduzida, não era possível estabelecer relação de causa e efeito entre a lama que invadiu a cidade e a intoxicação dos moradores, mas recomendou a realização de estudos mais amplos e aprofundados para verificar se havia um quadro disseminado de contaminação da população de Barra Longa.
O pedido foi reiterado pelo Ministério Público Federal (MPF), que enviou ofícios com o pedido à Renova – a fundação criada pela mineradora Samarco para tratar da reparação dos danos sociais e ambientais do rompimento da barragem – e aos órgãos de saúde do município e do Estado de Minas.
Quase um ano depois, contudo, ainda não há informações sobre a situação da saúde da população de Barra Longa. Diante dos diagnósticos de contaminação e de recusas da Renova e da Secretaria de Saúde de Barra Longa para realizar exames na população que não está incluída no estudo, algumas pessoas têm recorrido a laboratórios particulares.
Parte dos que comprovadamente estão contaminados recebe auxílio financeiro esporádico da Renova para comprar medicamentos e pagar consultas com um médico especialista. Outros até hoje não recebem assistência por parte da fundação.
Todos eles, contudo, não são reconhecidos como atingidos pelo desastre, mas como “atingidos indiretos” – o que, na prática, significa que têm margem menor para cobrar a empresa por eventuais danos econômicos e à saúde física e mental causados pelo rompimento.
A Renova afirma que “como não há, até o momento, comprovação de relação causal entre os resultados do estudo e o rompimento da barragem de Fundão, as pessoas são consideradas atingidas indiretas”.
“A Fundação ressalta que quaisquer danos à saúde da população que tenham relação comprovada com o rompimento serão considerados e tratados no processo de reparação.”
As vítimas – que precisarão de acompanhamento médico pelo resto da vida – temem, entretanto, que a morosidade das ações tomadas para investigar a saúde no município dificulte a comprovação de um eventual nexo causal e que elas fiquem desamparadas.
Especialistas argumentam ainda que, em uma situação como essa, de desastre ambiental, o ônus da prova deveria ser da mineradora, responsável pelos danos causados pelo rompimento da barragem – ou seja, caberia a ela provar a suposta ausência da relação de causalidade.
Um dos diagnosticados é Sofya Marques, que completou quatro anos no último dia 29 de dezembro e que tinha menos de um ano quando, na madrugada do dia 6 de novembro de 2015, a lama que veio da região de Mariana invadiu a cidade.
Há anos, ela toma rotineiramente antialérgicos, corticoides e broncodilatadores para aliviar as erupções que brotam constantemente na pele – que a mãe, Simone Silva, apelidou de “lixas” – e problemas respiratórios.
Sofya sente uma dor forte nas pernas, para a qual ainda não há diagnóstico.
Para Simone, a lama que veio de Mariana é a única explicação para o fato de os níveis de níquel no sangue da filha estarem três vezes acima do limite máximo considerado normal. “Ela era um bebê quando a lama chegou, não tem outra explicação.”
Barra Longa foi a única área urbana invadida pelo rejeito de minério de ferro e o único local em que os moradores permaneceram em suas casas durante os trabalhos de limpeza e reconstrução feitos pela mineradora.
A situação é bem diferente daquela observada em Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, que foram completamente destruídos pela avalanche de lama. Moradores dos três distritos estão até hoje distribuídos por Mariana e arredores, em casas alugadas pela Fundação Renova.
No auge das obras, Barra Longa, que tem 6,2 mil habitantes, virou local de trabalho de um contingente que variava entre 800 e 1.000 trabalhadores. E que circulavam, por sua vez, em frota de veículos pesados que, como relatam os moradores, levantava muita poeira.
O fato de a população ter continuado em contato com a lama, exposta a ela por via inalatória – respirando a poeira -, digestiva e pelo contato com a pele a deixa em situação muito vulnerável, diz Evangelina Vormittag, diretora técnica do Instituto Saúde e Sustentabilidade.
Ainda não há informações oficiais sobre a composição química dos rejeitos que chegaram a Barra Longa e das partículas em suspensão no ar da região atingida. Segundo a Samarco, a lama de rejeito da barragem de Fundão era inerte – não se sabe, contudo, se ela eventualmente incorporou outros materiais no caminho até o município, que está a 60km de Mariana.
A Renova afirma que um estudo para avaliação de risco à saúde humana financiado pela fundação teve início em julho de 2018 e que a primeira etapa, prevista para durar cerca de oito meses, está sendo desenvolvida em Mariana, Barra Longa e Linhares (ES). A previsão é que os resultados finais da pesquisa nessas regiões sejam entregues em março.
“A Fundação informa, ainda, que segue monitorando a qualidade do ar no município. Os resultados atuais estão dentro dos parâmetros exigidos pela legislação brasileira.”
“O pó da lama grudava nas cortinas, aparecia em cima da cama. O calçamento na frente da minha casa foi arrancado duas ou três vezes”, diz Rosana Maria Faustino, moradora da rua 1º de janeiro, uma das vias principais de Barra Longa.
Em março do ano passado, depois de saber do diagnóstico de contaminação dado a alguns dos moradores da cidade, ela decidiu levar o filho para ser examinado.
Quando o desastre aconteceu, Bruno, então com 12 anos, estava entre os que passaram dias em contato com a lama na tentativa de limpar a cidade como fosse possível.
“Ele chegava todo barreado, eu tinha que jogar toda a roupa dele toda fora”, diz ela.
O garoto teve uma micose severa que lhe deixou marcas por todo o corpo – e, por isso, Rosana tinha medo de que ele pudesse estar contaminado. Diante da negativa da Fundação Renova para arcar com os custos do exame e das tentativas fracassadas de conseguir o procedimento pelo SUS, ela pagou cerca de R$ 400 para realizar um mineralograma em um laboratório no município de Ponte Nova – que não investigava, contudo, a presença de níquel no sangue.
O resultado indicou que o zinco do jovem estava ligeiramente abaixo do nível mínimo de referência – quadro observado na maioria dos participantes do estudo -, além da presença de mercúrio, cádmio e arsênico no sangue, mas em nível inferior aos valores mínimos de referência.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Saúde do município não se manifestou e o Ministério da Saúde declarou que “não houve recusa em realizar os testes necessários para pacientes e familiares atingidos pelo rompimento da barragem” e que um estudo de epidemiologia de campo, batizado de EpiSUS, está sendo realizado com a população local, com coleta de amostras de 250 moradores.
Os médicos que deram a Sofya o diagnóstico de contaminação alertaram Simone que a menina precisará fazer acompanhamento clínico periódico para sempre e estar atenta a possíveis problemas nos órgãos devido ao acúmulo de metais.
Os especialistas do Instituto da Criança em São Paulo, parceiro do Instituto Saúde e Sustentabilidade, sugeriram que a família deixasse a cidade – o que, segundo Simone, não é uma opção.
Hoje desempregada, ela dava aula de artes em uma escola estadual no município de Acaiaca, de onde recebia remuneração de cerca de R$ 400 por mês.
A maior parte dos professores da escola é contratada temporariamente, de fevereiro a dezembro – um regime chamado de “designação”. Isso significa que eles são desligados no fim de cada ano letivo e que precisam pleitear o cargo novamente no ano seguinte. Simone está no meio desse processo e torce para que consiga retomar as aulas.
O marido, que trabalhava em uma fábrica de rações destruída pela avalanche que veio de Mariana, também procura trabalho. Desde a chegada da lama em Barra Longa, segundo ela, a relação com a Renova é difícil.
Pouco depois do desastre, quando os sintomas apareceram, diante da dificuldade para marcar uma consulta pelo Sistema Único de Saúde (SUS), Simone recorreu a um médico particular em Ponte Nova, a 60 km de Barra Longa, para onde muitos moradores foram encaminhados.
Foi o imunologista que, em setembro de 2016, assinou o laudo que afirmava que a menina tinha alergias na pele e dificuldade para respirar por causa da exposição à poeira de rejeito de minério que tomou conta de Barra Longa.
A Renova havia solicitado o documento para que liberasse o pagamento de parte do tratamento de Sofya, o que vem acontecendo desde junho de 2017.
Pouca coisa mudou quando o diagnóstico de contaminação foi comprovado. Simone reiteradamente reivindicou uma contrapartida maior por parte da Renova – inclusive quando o filho mais velho, Davidy, de 16 anos, também foi diagnosticado com metais pesados no organismo -, mas sempre recebeu negativas.
Para a mãe, o tratamento da menina vai além dos medicamentos e da consulta esporádica ao especialista custeados pela fundação. Sofya toma mais banhos do que as crianças da mesma idade, por exemplo, para tentar aliviar o desconforto que as alergias causam no corpo. Isso faz com que a conta de água da casa seja alta.
“Por causa da quantidade de remédios que ela toma, ela às vezes não tem vontade de comer. Eu tento comprar alguma coisa pra agradar, um iogurte. Tudo isso faz parte do tratamento”, acrescenta.
No momento do rompimento da barragem em Brumadinho, no último dia 25 de janeiro, Simone estava no escritório de uma das empresas contratadas pela Renova solicitando o cartão emergencial ao qual os atingidos têm direito.
“Isso era pra ter sido entregue pra gente em 2015 (quando o desastre aconteceu). O que a empresa fez foi trancar a porta e deixar a gente do lado de fora, no sol.”
A Renova paga um auxílio financeiro emergencial no valor de um salário mínimo àqueles considerados atingidos pelo rompimento da barragem. Como Sofya não é considerada atingida, não teria direito a participar do programa.
O caso da menina acabou sendo discutido por acaso em uma reunião na sede da Procuradoria da República de Minas no dia 27 de novembro de 2018, na qual Simone estava presente como representante da Comissão de Atingidos de Barra Longa.
De acordo com a ata do encontro, à qual a BBC News Brasil teve acesso, a professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Tatiana Ribeiro questiona por que Sofya não é considerada atingida, já que uma série de exames constata seu adoecimento.
Uma representante do jurídico da Renova afirma, na sequência, que ela é reconhecida como “atingida indireta” e que, por isso, recebe tratamento médico, mas “não faz jus a ajuda financeira”.
“Propostos encaminhamentos acerca do reconhecimento de Sofya como atingida, sem qualquer qualificativo, bem como de tratamentos médicos específicos, Dra. Viviane disse que o tema não está na pauta da reunião e que a Fundação Renova não concorda com nenhum encaminhamento no ponto”, diz o texto.
A dra. Evangelina Vormittag, que também estava presente da reunião, reiterou à reportagem da BBC News Brasil que os estudos conduzidos até o momento de fato não estabelecem relação de causa e efeito entre o desastre o adoecimento da população, mas afirma que o ônus da prova deveria ser da mineradora – ou seja, diante da responsabilidade da Samarco pelo rompimento da barragem, ela deveria ter de provar que não há nexo entre a contaminação dos moradores de Barra Longa e a lama.
Esse também foi um ponto destacado por Tatiana Ribeiro, professora do Departamento da UFOP, durante a reunião. “Isso (a situação atual) é muito cruel (com as vítimas)”, diz a médica.
No caso de Andrea Domingos, a contaminação foi constatada não apenas nos exames de sangue, mas também nos de urina. Ela foi incluída no estudo do ISS junto do filho, Nicolas, que hoje tem três anos.
“Eu fui descobrir que meu filho tava com esse problema a partir do momento que Evangelina foi na minha casa e disse: ‘Andrea, o Nicolas precisa fazer esse exame. Seu filho não está bem’.”
Ambos foram diagnosticados com metais pesados no organismo, mas nenhum dos dois recebe auxílio da mineradora para realizar o tratamento.
Para pleitear uma contrapartida financeira, ela havia sido instruída a realizar um cadastro na Renova – o que ela fez. Meses depois, porém, a fundação ainda não fez qualquer contato.
“Eles dizem pra gente: ‘Quanto mais você ficar na porta, ninguém vai ser indenizado’. Então eu fico no meu canto, porque eu não gosto de me expor demais, e por causa do meu filho também.”
Mãe de três filhos, Andrea trabalha há cinco meses como cuidadora de idosos e ganha R$ 500 por mês. Ela teve um AVC após o desastre, toma remédios para pressão e medicamentos para aplacar uma série de sintomas que vão de diarreia, dores de cabeça e nas articulações a uma coceira forte na sola dos pés e na palma das mãos, “principalmente depois que o corpo esfria”.
Nicolas fica constantemente gripado, tem alergia nos olhos e, com frequência, bolinhas vermelhas nas bochechas. Andrea se vira como pode para pagar os medicamentos, parcela a conta na farmácia, mas às vezes não e suficiente. “Eu descobri que preciso tomar zinco. Quem pagou o remédio pra mim foi a dra. Evangelina”, conta.
Entre os 11 participantes do estudo, 10 apresentaram diminuição importante nos níveis de zinco, que participa de uma série de processos bioquímicos do corpo, da síntese e degradação de carboidratos, lipídeos e proteínas ao funcionamento adequado do sistema imunológico.
Tanto sua redução quanto seu excesso são um problema para a saúde. Uma das hipóteses para a diminuição da absorção do zinco é sua interação com o níquel. O relatório do ISS destaca, porém, que essa questão deve ser investigada.
Andrea mora na parte alta da cidade – “tão alta que era aqui que os bombeiros vinham pra ver a magnitude do que tinha acontecido”.
“Dava muito redemoinho aqui em Barra Longa quando a lama começou a secar”, ela diz, ressaltando que até hoje há muita poeira na cidade. “Você passa um pano na casa sai e um pó escuro, diferente da terra que vinha antes.”
Andrea esteve duas vezes em São Paulo para realizar os exames pedidos pelo ISS e se prepara para voltar neste ano. Além do check-up, ela vai realizar um tratamento cujo nome não lembra, mas que lhe foi prescrito por que a contaminação, no caso dela, foi detectada também nos exames de urina.
“Eu não quis colocar meu filho em evidência, mas, agora, como a coisa já tá indo numa proporção, eu falei: ‘Eu não vou ficar mais calada, porque eu tenho meus direitos como mãe e como atingida. Nós não pedimos pra essa barragem romper e vir pra cá.”
Tatiana Ribeiro, professora do Departamento de Direito da UFOP, afirma que não existe no Brasil um marco regulatório para pessoas atingidas por barragens, mas ressalta que a classificação de “atingido indireto” não tem fundamento legal.
Conforme consta no Direito Ambiental, o que existem são danos diretos e indiretos. “Mas não existe alguém menos ou mais atingido.”
“Todo mundo é atingido, desde alguém que perdeu a casa até o dono de uma loja de material de pesca que deixou de vender porque ninguém mais pesca no rio”, ilustra a especialista, que acompanha a situação dos atingidos pelo rompimento da barragem desde o dia do desastre, através do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (Gepsa).
O caso da saúde, ela acrescenta, é ainda mais delicado, já que é regido, sob o Direito Ambiental, pelo “princípio da precaução” – em que, grosso modo, diante de uma incerteza científica, deve-se proteger a vítima.
É desse princípio que decorre outro, o da inversão do ônus da prova destacado por ela na reunião organizada pelo MPF. Esse entendimento é reforçado pelo fato de que as vítimas de desastres ambientais têm menos recursos e capacidade do que as empresas para se defender – na linguagem jurídica, as vítimas são hipossuficientes.
A argumentação não teria sido usada ainda de forma litigiosa no caso da Barra Longa porque o processo está em fase de conciliação – ou seja, o MPF expõe o que a empresa deveria fazer e, caso não haja resolução, o processo é encaminhada para a Justiça.
O prazo para que isso aconteça, por sua vez, é incerto, porque o caso do município mineiro está incluído no processo de reparação de toda a extensão da bacia do Rio Doce – e a lama percorreu 600 km. A maior parte dos locais atingidos ainda está na fase de implementação das assessorias técnicas independentes, que devem auxiliar as comunidades no processo de reparação de danos.
A especialista ressalta que, desde 2016, a Fundação Renova tem sido alvo de denúncias de violações de direitos humanos em organismos internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Comissão de Direitos Humanos da ONU. Por ora, essas entidades têm se limitado a observar a situação porque a questão ainda está em juízo no Brasil.
Da BBC