Investigações que expunham ações do Exército sob suspeita são arquivadas
No dia 16 de outubro de 2017, o então presidente Michel Temer (MDB) sancionava um projeto que transferia para a Justiça Militar a investigação e o julgamento de homicídios cometidos por militares durante operações de segurança pública em território nacional, sob o argumento de que a medida trazia “segurança jurídica”. Menos de um mês depois, no dia 11 de novembro de 2017, atiradores abriam fogo contra ao menos 11 pessoas no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Oito pessoas morreram e uma ficou gravemente ferida naquele dia de operação conjunta entre a Polícia Civil e o Exército, que já atuava sob um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) desde julho. Quase que imediatamente vieram à tona relatos de testemunhas e sobreviventes que indicavam um possível envolvimento de forças especiais do Exército nas mortes. Todos coincidiram em dizer que os tiros haviam partido da mata, onde homens com capacetes pretos e armas com mira a laser se escondiam. Dois inquéritos foram então abertos, um pelo Ministério Público do Estado do Rio e outro pelo Militar, para apurar o ocorrido. E os dois acabaram arquivados.
Os dois inquéritos correram em paralelo, mas com enormes diferenças. A Delegacia de Homicídios de Niterói/São Gonçalo e o Grupo Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP), coordenado pela promotora Andréa Amin, do MP do Rio, ouviram as testemunhas, sobreviventes e familiares das vítimas, além de policiais e três militares que participaram da operação. Perícia balística, nas armas dos agentes e no local foram feitas. Contudo, pouco se sabe sobre os procedimentos adotados pelo Ministério Público Militar (MPM). “Jamais tivemos acesso à investigação do MPM. Nenhum civil foi ouvido, nem sequer as vítimas sobreviventes e familiares”, explica o defensor público Daniel Lozoya, que defende o sobrevivente que remanesceu e outras três famílias de vítimas. Além disso, a investigação no Ministério Público Militar — composto por civis — se restringiu a um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) e nem sequer foi submetido à Auditoria Militar — órgão federal de primeira instância da Justiça Militar formado por um civil e quatro oficiais. Não houve audiências e a defesa nunca foi acionada. “Tudo ocorreu no âmbito do MPM, inclusive o arquivamento, ao qual também não tivemos acesso. Só pela imprensa”, acrescenta Lozoya.
O EL PAÍS entrou em contato por e-mail com o MPM para solicitar as conclusões do inquérito e uma conversa com a procuradora Maria de Lourdes Sousa Gouveia Sanson, responsável por instaurá-lo. Insistiu por telefone, mas não obteve resposta. Enviou outra mensagem solicitando o documento de arquivamento, mas até o fechamento desta reportagem nada recebeu. Assim, não se sabe os motivos pelos quais o órgão arquivou a investigação, noticiada pelo jornal Extra, nem suas conclusões. Apenas que a decisão foi submetida à apreciação da Câmara de Coordenação e Revisão do MPM, que a homologou de forma unânime no dia 13 de março deste ano, segundo o mesmo jornal.
Já o inquérito aberto pelo MP do Rio foi arquivado no dia 30 de outubro do ano passado, quase um ano depois da chacina. E concluiu que “não há indícios mínimos” de que policiais civis tenham sido os autores dos homicídios, nem de que “o Complexo do Salgueiro tenha sofrido uma tentativa de invasão por parte de alguma facção criminosa justamente no horário em que as forças de segurança ali ingressavam”, segundo o documento de arquivamento do inquérito. A procuradoria destaca que a hipótese de guerra entre facções “é irreal e passível de ser aventada apenas por quem desconhece por completo o terreno”. Ela é reforçada a partir das informações dadas pelo 7º Batalhão da Polícia Militar, responsável pela área, pela Polícia Civil e pelos moradores e testemunhas. Rodrigo Teixeira de Oliveira, chefe da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), tropa especial da Polícia Civil que participou da operação, disse que é “difícil imaginar uma tentativa de invasão de outra facção sem que houvesse uma mobilização grande de marginais e grandes confrontos”, apontou o MP. Quando os homicídios aconteceram, não havia confronto naquele horário e trecho da Estrada das Palmeiras, onde nem sequer há boca de fumo, disseram moradores ao órgão.
O MP também destaca “os importantíssimos relatos” de vítimas e testemunhas e afirma que a perícia local realizada pela Polícia Civil corrobora com o que dizem. O perito disse que são “verossímeis os relatos de moradores que davam conta de disparos vindos da mata localizada em plano superior e à esquerda da via”. Porém, o órgão enfatiza mais de uma vez que cabe ao MPM investigar os militares e apontar os possíveis suspeitos dentro da corporação.
Os depoimentos colhidos coincidem em vários aspectos. Os militares e policiais civis que oficialmente participaram da operação estavam todos em veículos blindados naquele 11 de novembro. Todos asseguraram que não houve troca de tiros, mas que ouviram disparos ao entrar na comunidade. Quando chegaram na Estrada das Palmeiras, se depararam com os cadáveres no chão e uma pessoa sendo socorrida.
Os relatos de testemunhas, vítimas e familiares também coincidem. Um padeiro que sobreviveu aos disparos contou que estava conduzindo uma motocicleta com seu amigo na garupa quando foi surpreendido por vários disparos de arma de fogo vindos da mata que há no local. Em seguida, os atiradores se aproximaram e ele pôde ver que estavam vestidos com uma roupa preta e com um capacete que tinha uma lanterna acoplada. Também vestiam balaclava —uma touca que cobre o rosto— e portavam fuzis com luz infravermelha. Ele também contou que os homens levaram seu celular e voltaram para a mata. Outro sobrevivente, que faleceu posteriormente no hospital, relatou as mesmas características ao MP estadual. As descrições se assemelham ao equipamento e uniforme utilizado pelas forças especiais do Exército.
Outros fatos contribuem para aclarar o caso. Dias antes dos homicídios, no dia 7 de novembro, outra operação empregou 3.500 membros das Forças Armadas, assim como policiais federais, civis e militares no Complexo do Salgueiro. Naquela ocasião, o Exército usou helicópteros para transportar seus homens para uma área de mata dentro da comunidade, segundo admitiu depois o Comando Militar do Leste. O plano era que as forças que entraram no Complexo do Salgueiro forçassem os suspeitos a fugirem pela Estrada das Palmeiras e pela área de mata, onde os militares do Exército, escondidos, os interceptariam. Mas a operação foi considerada um fracasso porque as facções criminosas foram supostamente avisadas do plano.
Assim, foi decidido que uma nova operação ocorreria no dia 11 de novembro entre a Polícia Civil e o Exército, mas com um efetivo menor. Foi esse efetivo que, ao chegar na Estrada das Palmeiras, viu os corpos já no chão. O Comando Militar do Leste apresentou explicações contraditórias na ocasião. Primeiro, soltaram uma nota dizendo que aqueles que participaram da operação enfrentaram “resistência armada por parte de criminosos”. Mais tarde, o Comando mudou a versão e limitou-se a dizer que seus soldados apenas “ouviram tiroteios”, versão sustentada nos depoimentos de policiais e militares. O Comando não admitiu em momento algum ter colocado seus membros na mata. Porém, na noite do dia 10, testemunhas afirmam ter visto homens descendo de rapel dos helicópteros, no escuro, para dentro da mata — tal e como havia ocorrido dias antes.
Em entrevista ao EL PAÍS no ano passado, o coronel Roberto Itamar, porta-voz do General Walter Braga Netto, nomeado interventor federal por Temer, negou que os militares utilizem equipamento semelhante ao descrito pelas testemunhas e reafirmou a versão do Comando — ainda que fotos no site da corporação mostrem o contrário. “Pretensas testemunhas dizem ter visto helicóptero apagado, gente saindo da mata com luzinha no capacete… São coisas que não correspondem ao modus operandi ou aos equipamentos utilizados pelas Forças Armadas”, afirmou a este jornal. “Não tem sentido um helicóptero estar apagado, já ouviu o barulho que faz? São coisas relatadas que são fruto da imaginação de certas pessoas, que podem ter visto situações do tipo em filmes ou até mesmo anteriormente naquele local”. Ele opinou que os responsáveis pela chacina foram facções criminosas que guerreiam entre si.
As investigações foram acompanhadas de perto pela organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW), que entrevistou testemunhas, apresentou evidências da participação do Exército na chacina e denunciou que o Comando Militar do Leste impediu que soldados fossem ouvidos como testemunhas pelo Ministério Público do Rio. Sabe-se que, depois da denúncia, o Ministério Público Militar enviou uma cópia dos depoimentos de soldados, enquanto que o MP do Rio fez o mesmo com o relato de policiais e civis. Mas não está claro se chegou a ouvir diretamente os oficiais do Exército. Em nota, a ONG lamentou o engavetamento promovido pelo MPM e sublinhou que “nem os investigadores das Forças Armadas, nem os procuradores do MPM promoveram medidas cruciais para a investigação, como a perícia do lugar de onde, segundo várias testemunhas, os assassinos atiraram”. Além disso, “não entrevistaram testemunhas civis chave no caso”.
A organização ressalta que também não teve acesso ao documento de arquivamento do caso. E afirma que, “de acordo com o direito internacional, graves violações de direitos humanos cujos suspeitos perpetradores sejam membros de Forças Armadas devem ser investigadas por autoridades civis e julgadas em tribunais civis”. Pediu, por fim, que o Congresso Nacional revogue a lei 3.491 de 2017, que colocou nas mãos da corporação “as investigações de casos como as mortes no Salgueiro”.
O defensor público Lozoya diz que espera ter acesso ao arquivamento do inquérito do MPM. A Defensoria Pública do Estado do Rio, à qual ele representa, e a Defensoria Pública da União vão entrar em conjunto com uma ação na Justiça Federal pedindo reparação para as famílias. Os organismos também pretendem levar o arquivamento para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), organismo da OEA, onde já há uma ação em curso. A Comissão poderá fazer um relatório sugerindo medidas de reparação e punição. Caso não sejam acatadas, o Brasil pode vir a ser processado internacionalmente e condenado a reabrir o processo, reparar as vítimas, entre outras possíveis medidas.
Cerca de três meses depois da chacina no Salgueiro, o então presidente Michel Temer decretava uma intervenção federal no Rio. Ao general quatro estrelas Walter Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste, foi dado o poder de governador na área da segurança pública. Autorizado também pelo decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ele pôde então manejar como bem entendia suas tropas. A “segurança jurídica” estava garantida.
Do El País