Professor Milton Gaither afirma que ensino domiciliar é reação contra o Estado

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O projeto de lei assinado nesta quinta-feira pelo presidente Jair Bolsonaro para regulamentar o ensino domiciliar no país tem uma inspiração clara: o movimento do “homeschooling” dos EUA, uma tradição daquele país que remonta ao tempo dos primeiro colonizadores, no século 17.

De lá para cá, o movimento norte-americano se fortaleceu e se diversificou, com cerca de 2 milhões de estudantes tendo aulas em casa (no Brasil, seriam 31 mil famílias adeptas do ensino domiciliar, segundo o governo).

Sua transformação em bandeira dos conservadores é relativamente recente, como me explicou o professor Milton Gaither, estudioso do tema, numa entrevista por e-mail.

Gaither é um dos maiores especialistas em “homeschooling” nos EUA. Professor do Messiah College, na Pensilvânia, é autor de “Homeschool: an American History” (“Ensino Domiciliar: uma História Americana”, não editado no Brasil). Para ler seu blog sobre o tema (em inglês), clique aqui.

Ele não quis comentar especificamente o debate sobre o tema no Brasil, mas suas análises se encaixam bastante na discussão por aqui.

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Como o ensino domiciliar surgiu nos EUA e por que se mantém forte? A educação domiciliar começou como uma questão de necessidade para colonos americanos, em razão da população esparsa dos primeiros assentamentos e da falta de instituições na época. Ao longo dos anos, conforme a densidade populacional crescia, instituições escolares gradualmente foram substituindo essa educação doméstica original. No século 20, o tema ressurge com o crescimento da complexidade da educação. Nos anos 1970, grupos de românticos de centro-esquerda e de fundamentalistas cristãos de centro-direita começaram a optar pelo ensino domiciliar como uma alternativa. Os românticos reclamavam da burocracia do sistema institucional, e os fundamentalistas consideravam as escolas públicas exageradamente seculares.

Em que momento o movimento se torna uma bandeira conservadora nos EUA? No início, românticos e fundamentalistas atuaram juntos para assegurar um ambiente legal favorável ao ensino domiciliar nos 50 estados. Lutando nas cortes e assembleias regionais, obtiveram vitória após vitória, reduzindo de forma dramática os requerimentos impostos pelo Estado. Foi no final dos anos 1980 que os fundamentalistas tomaram o controle do movimento, em razão de seu maior número e capacidade organizacional superior. Mais recentemente, com o advento da internet, o movimento tem se tornado mais diverso, tanto em termos do tipo de pessoas escolhendo praticá-lo quanto nos termos que o fazem.

Nos EUA, o ensino domiciliar é visto como uma forma de protesto contra a tirania de governos, semelhante ao direito de portar armas? O movimento tem um forte componente libertário. Sim, há paralelos com o debate sobre o direito de portar armas. Em ambos os casos, defensores da liberdade total são muito vocais e bem organizados, enquanto os que defendem restrições não são. Uma diferença é que há uma emenda explícita na Constituição americana sobre o direito de ter armas, e não há nada parecido sobre ensino domiciliar. Mas o elemento de protesto hoje não é tão forte quanto era nos anos 80 ou 90. A maioria o pratica de forma privada. É menos um movimento de protesto que uma simples escolha dos pais.

O sr. pode explicar melhor como os conservadores tomaram conta do movimento? O ensino domiciliar é parte de um movimento de reação. Muitos conservadores querem recuperar o lar pré-moderno, de liderança patriarcal, autossuficiência econômica e laços comunitários fortes. Mas o ensino domiciliar também pode ser interpretado como algo na vanguarda da transformação social — a mais moderna das modernidades, em que o indivíduo está completamente livre do governo e pode perseguir seus objetivos sem ser importunado por regras.

No Brasil, muitos conservadores se interessam pelo ensino domiciliar porque não querem seus filhos expostos a debates sobre gênero e orientação sexual. Qual sua opinião? Nos EUA isso ocorre desde os anos 1970. Até o momento, a literatura acadêmica não encontrou evidência de que o ensino domiciliar consegue isolar crianças da sociedade em geral. O ensino domiciliar não parece, ao menos por enquanto, fazer uma grande diferença nas crenças políticas ou religiosas de crianças.

Opositores citam a necessidade de crianças se socializarem e serem submetidas a influências fora do conforto de suas casas. Como o sr. vê esse argumento? Cada situação familiar é única. Algumas famílias isolam suas crianças de forma profunda. Algumas o fazem de uma maneira equivalente à tortura. Outras oferecem todo tipo de oportunidade para interações sociais, que transcendem até o que está disponível em escolas institucionais.

Como é possível garantir que a educação domiciliar seja de boa qualidade, se os pais não são professores profissionais? Os defensores do ensino domiciliar rebatem perguntando: “como é possível garantir que nas escolas a educação seja de boa qualidade se mesmos professores profissionais muitas vezes têm desempenho ruim?”.

Escolas e universidades dos EUA são reconhecidas por sua qualidade. Por que os adeptos do ensino domiciliar desconfiam delas? Eu discordo da assertiva de que os defensores do movimento têm desconfiança. Alguns têm, outros não. Muitos estão criando ou tomando parte em formas híbridas de educação que combinam estudo em casa com o ensino tradicional.

Como poderiam funcionar esses sistemas híbridos na prática? Muitas famílias participam de cooperativas. Elas se reúnem em uma igreja ou outro prédio para as aulas, às vezes dadas por pais, outras por especialistas pagos. As crianças então trabalham no tema no resto da semana em casa e depois voltam na semana seguinte para outra sessão. Muitos estados também permitem que os adeptos do ensino domiciliar tenham aulas em escolas públicas num modelo “à la carte”. Um estudante pode, por exemplo, ter aula de física ou química na escola pública e o resto todo em casa. Há muitos modelos possíveis.

Da FSP