Suzano gerou onda de apreensões arbitrárias de adolescentes

Todos os posts, Últimas notícias

Dezenas de adolescentes foram apreendidos pela polícia nas duas últimas semanas de março após denúncias de estarem planejando ataques em escolas, na esteira do massacre na escola Raul Brasil, em Suzano (Grande SP). Parte das operações, no entanto, são ilegais, já que não têm flagrante, ordem judicial ou sigilo.

Quando começou a conversa em tom de desabafo, o adolescente de 14 anos não esperava estar sendo gravado pelo amigo da escola. “Meu pai fez uma coisa horrível, meu padrasto batia na minha mãe e em mim. Fiquei anos só chorando direto, me rasgava, tentei me matar várias vezes”, conta.

Certa vez, segue: “contei para um amigo sobre a história do meu pai e ele espalhou no colégio. Comecei a sofrer bullying, ninguém queria mais encostar em mim, tive que ser transferido”. Usou drogas para lidar com a depressão. “Mas aí todo mundo me chamava de fumaça, comecei a comer sozinho no intervalo.”

A solução? “Mataria uns 30, na hora do intervalo, às 9h40, que é quando vai tá todo mundo que eu mais odeio junto.” Entraria no pátio assobiando “Pumped Up Kicks”, do grupo de rock indie Foster the People —a letra fala sobre homicídio de crianças em escolas, inspirada na tragédia de Columbine, nos EUA. Quando? “Ah, como entrou isso na cabeça agora, de cinco meses a um ano e meio.”

O áudio, gravado após o ataque a tiros em Suzano deixar oito mortos em 13 de março, chegou na diretora da escola em Barueri (Grande SP) no dia 18. Pouco depois, uma viatura da Polícia Civil estava na porta do colégio em busca do garoto. Ele foi apreendido e levado à delegacia.

Dentro da unidade policial, o adolescente segura uma folha nos moldes de fichas criminais —com nome, RG, data de nascimento, filiação, endereço, e número de enquadramento policial (no caso, 147, de ameaça). A foto, que mostra seu rosto e todas as informações, além do áudio, foram vazados por agentes e viralizaram nas redes sociais.

O adolescente precisou mais uma vez ser transferido de escola e, sem nenhuma outra evidência de que ele praticaria um crime, foi liberado na delegacia.

A operação é uma sucessão de atropelos legais. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a apreensão sem flagrante de ato infracional nem ordem escrita da autoridade judicial é crime, com pena de detenção de seis meses a dois anos.

A mesma pena se aplica ao vazamento de imagens e informações. A ação policial que envolve menores de idade deve ser sigilosa, sem “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”.

Para verificar a conduta policial, foi instaurado um inquérito e uma apuração preliminar no âmbito administrativo, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

A conduta adequada ao receber denúncias do tipo seria chamar o adolescente para comparecer à delegacia e prestar esclarecimentos, acompanhado dos responsáveis, segundo Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos da infância e juventude e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos de SP).

“Depois da tragédia em Suzano há muitos jovens querendo aparecer, ganhar fama nas redes com ameaças. O poder público precisa evitar linchamentos públicos, pirotecnias da polícia tentando mostrar serviço e punições antecipadas”, afirma.

Não foi o que aconteceu em Sumaré, no interior paulista. Outro adolescente foi gravado e exposto por um policial naquele mesmo dia. Ao ir à casa do jovem de 17 anos, o agente percebeu que não havia motivo para apreendê-lo, mas decidiu gravar um vídeo mostrando o rosto e os nomes dele, do pai e do avô.

Os três, sem dizer palavra, aparecem em pé ao lado do PM, que diz: “É um adolescente que tem direito de errar, mas já está se redimindo do seu erro. Nós, da Polícia Militar, da ronda escolar, procuramos a família para desfazer esse mal-entendido e preservar a identidade de todos. Vamos esquecer e bola pra frente, vida que anda”.

O vídeo também se espalhou pela internet. Segundo a corporação, o agente buscava mediar a situação.

“O jovem e a família são reconhecidos e ficam estigmatizados. Eles acabam se isolando mais e isso pode gerar a longo prazo o efeito inverso, que eles se tornem violentos. Não serve para inibir”, afirma Alves.

Em Montes Claros (MG), um outro jovem de 17 anos chegou a passar a noite do dia 20 de março na delegacia após ser apreendido sem mandado ou flagrante.

O delegado queria apresentá-lo à Justiça por postagem nas redes sociais com uma réplica de arma e toucas pretas. A legenda dizia que a aula do dia seguinte seria “top”, o que fez surgir o medo de um ataque. Na cela até 12h do dia seguinte, ele foi ouvido no fórum da cidade e liberado.

No Distrito Federal, 12 jovens foram chamados para oitiva. De acordo com a Polícia Civil, “todas as ocorrências foram apuradas e ficou comprovado que se tratavam de brincadeiras juvenis”. Um deles, no entanto, foi apreendido por ato infracional análogo à ameaça, em Samambaia (cidade a 25 km de Brasília) —motivo que não justifica apreensão, segundo o ECA.

Em Manaus, aulas foram suspensas numa escola estadual no dia 14 e a PM foi acionada para apreender um aluno de 17 anos. Segundo a Secretaria da Segurança Pública do Amazonas, em flagrante. Mas, questionada, a pasta não respondeu qual seria o flagrante.

Três ações semelhantes foram registradas em Goiás; uma em Americana, no interior paulista; e outra em Fazenda do Rio Grande, cidade da região metropolitana de Curitiba.

No Rio, a operação para apreender um garoto de 16 anos no Morro da Providência teve agentes do Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) e uso de helicóptero. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, por ser tratar de área conflagrada.

Ao ser ouvido, o garoto afirmou que sofria bullying e admitiu acessar a deep web (parte da internet “escondida” de buscadores e navegadores comuns). Mas disse que não pretendia cometer o atentado —tinha enviado as mensagens para amedrontar o ex-colega de classe autor de zombarias contra ele.

A juíza Vanessa Cavalieri, titular da Vara da Infância e da Juventude, determinou a internação provisória do adolescente, que, segundo ela, deve ficar sob custódia até a conclusão do laudo pericial no seu computador.

“Aí é outra ilegalidade”, diz Maíra Zapater, professora de direito penal da FGV (Fundação Getulio Vargas). De acordo com o ECA, adolescentes só podem ser internados por ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência, reiteração de outras infrações graves ou descumprimento reiterado de medida imposta anteriormente.

“Só se pune a partir do momento que a pessoa praticou o crime. A intenção não é punível”, diz Zapater.

Alves vai na mesma toada: “Não basta suposição, é preciso comprovar que o adolescente estava cometendo o ato infracional”, afirma.

A internação, segundo o estatuto, deve ser aplicada excepcionalmente, “mas acaba sendo a regra”, diz Alves. “É um absurdo, uma espécie de internação preventiva até que as provas apareçam.”

Para o advogado e conselheiro do Condepe, o pânico após a tragédia de Suzano virou uma “carta-branca, um salvo-conduto, para promover abusos e arbitrariedades em nome de uma suspeita segurança da sociedade”, afirma.

Além das apreensões de adolescentes, a onda de boatos tem feito escolas e faculdades suspenderem aulas, com medo de ataques.

No interior e litoral paulistas foram ao menos cinco. Na quinta (28), o campus Baixada Santista da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) não abriu as portas.

“Acreditamos que muitos de vocês tenham visto a postagem muito preocupante na página ‘Segredos Unifesp’. Ressaltamos que neste momento é importante que não entremos em pânico, vamos manter a calma e aguardar as providências e respostas que virão”, diz comunicado da direção. No dia seguinte, as aulas foram retomadas.

A 500 km de lá, a Unifeb (Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos) já havia cancelado as aulas na terça (26). Três carros da PM foram ao campus após suspeitas de ações violentas. Uma sindicância interna foi aberta.

Em Franca, foram duas instituições que suspenderam as atividades no dia 22 de março: a FDF (Faculdade de Direito de Franca) e da Unifacef (Centro Universitário Municipal de Franca). Em Sorocaba, o Sesi também fechou as portas após um aviso de ataque contra alunos.

Há relatos em outros estados. A Uesc (Universidade Estadual de Santa Cruz), em Ilhéus, na Bahia, reforçou a segurança na quinta-feira após mensagens de um possível ataque ao restaurante do campus circularem. A PM foi ao local.

Agentes também foram à escola Maria da Glória Rodrigues Paixão, em Jacundá (PA).

Da FSP