Desfile de arrependidos e frustrados com o governo Bolsonaro. Nada mais patético
Na quinta-feira 25 de outubro de 2018, a três dias do segundo turno da eleição presidencial, Kim Kataguiri e Arthur do Val, também conhecido como Mamãe Falei, pegaram carona num jatinho de um empresário em São Paulo para visitar Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro. A visita coroou o esforço da dupla na campanha bolsonarista. Kataguiri e Val são duas lideranças do Movimento Brasil Livre (MBL), grupo de jovens que, desde 2014, manteve uma atuação forte nas redes sociais em favor do impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Com outros movimentos, convocaram várias manifestações de rua que culminaram na de 13 de março de 2016. Somente em São Paulo, cerca de meio milhão de pessoas foram à Avenida Paulista, no maior ato político registrado depois do fim da ditadura. Duas semanas antes de voar para o Rio, Kataguiri havia sido eleito deputado federal e Val deputado estadual, ambos pelo Democratas (DEM), em São Paulo. No quintal da casa no condomínio Vivendas da Barra, transformado naquela época em escritório político, os dois escutaram Bolsonaro prometer lutar para afastar o país do “socialismo e do perigo do comunismo”. O candidato do PSL também zombou da facada que havia recebido um mês e meio antes: “Tu acha que uma faquinha de 15 centímetros vai me matar, pô? Se eu fosse japonês, jamais morreria de haraquiri”, disse, aos risos, numa tentativa de se conectar com Kataguiri, descendente de japoneses e a quem chamou várias vezes de Japa.
O MBL não apoiou Bolsonaro no primeiro turno. A adesão veio depois de tentar apoiar dois outros candidatos. O primeiro foi o tucano João Doria, que flertou com a ideia de concorrer ao Planalto e, brecado por Geraldo Alckmin, acabou saindo candidato ao governo de São Paulo. O seguinte foi Flávio Rocha, dono das lojas Riachuelo, filiado ao PRB, que ficou longe de decolar e desistiu. O MBL então mergulhou de cabeça na campanha em favor de Bolsonaro.
No domingo anterior à etapa final da eleição, o movimento participou de um ato na Avenida Paulista, em São Paulo. Em cima de um carro de som, lideranças do MBL chamaram petistas de “vagabundos” e disseram que o voto em Bolsonaro salvaria o Brasil de “virar uma Venezuela”. Para o movimento, esse discurso fazia todo o sentido. Os seguidores do MBL e do presidenciável do PSL tinham muito mais em comum do que a estética — a predileção por usar camisas amarelas. Eram todos parte de uma espécie de panconservadorismo, uma frente ampla de setores de centro, direita e extrema-direita. Naquele momento, Kataguiri e Val já eram fãs das ideias de Paulo Guedes para a economia. A despeito de reservas que poderiam existir em outras áreas, o antipetismo os unia. De pé, no jardim da casa de Bolsonaro, Val relatou que o MBL havia promovido dias antes, nos estados do Nordeste, atos políticos — batizados de “jornadas patrióticas” — para convencer a população local a “extirpar o PT de vez do Brasil”. Como se viu depois que os resultados da eleição foram divulgados, o esforço do MBL não rendeu os frutos esperados: Fernando Haddad ganhou na região. Na casa de Bolsonaro, no entanto, o relato serviu para mostrar que estavam do mesmo lado. Kataguiri sentiu-se tão à vontade que até sugeriu que seu nome fosse apoiado pelo futuro governo para ocupar o terceiro cargo na linha de sucessão. “Você vai precisar de um presidente da Câmara bom lá, hein?”, disse, em referência à votação que aconteceria meses depois e que reelegeria Rodrigo Maia (DEM-RJ). Bolsonaro, sem engasgar, rejeitou a ideia com o argumento de que o jovem parlamentar não cumpriria os requisitos legais para disputar o posto, por ter menos de 35 anos.
Demonstrando preocupação em manter o clima descontraído, Bolsonaro expôs a bolsa de colostomia, instalada durante o período de recuperação da facada, e brincou, usando o humor que lhe é característico: “Sou muito macho, tenho dois sacos. Nem gaúcho tem dois sacos”. Kataguiri e Val saíram do condomínio sem que o anfitrião tivesse oferecido café ou um copo d’água, mas com o compromisso do futuro presidente em lutar pelas reformas liberais. Os 15 minutos de conversa sugeriram que ali estava sendo selada uma união entre o futuro inquilino do Planalto e um dos principais movimentos da nova direita brasileira.
Para usar uma metáfora bem ao estilo de Bolsonaro, o namoro, porém, acabou antes de virar noivado. Logo no começo do governo, as lideranças do MBL perceberam que o presidente saiu do púlpito da Câmara, por onde esteve por quase três décadas, mas o púlpito da Câmara não saiu dele. Um dos primeiros sinais públicos do descontentamento do MBL ficou evidente no final de março, quando o governo não tinha nem completado seus 100 primeiros dias e pipocaram declarações de significado bem distinto do discurso liberal vendido durante a campanha.
O estopim foi a mistura de um metal com uma fruta. Desde quando era deputado, Bolsonaro dizia que o nióbio, mineral que, com o ferro, cria uma superliga, mais resistente, poderia ser uma das salvações da economia brasileira. Essa teoria não é exatamente novidade na política. O folclórico ex-deputado Enéas Carneiro (1938-2007), candidato a presidente três vezes, também falava sobre o assunto. No discurso do candidato do PSL, o nióbio resumia a ideia de que o Brasil é um país com imensas riquezas, mas não vai para a frente porque não sabe explorá-las ou protegê-las da cobiça dos estrangeiros. Já eleito, Bolsonaro seguiu numa linha semelhante. Prometeu proteger o nióbio e impor barreiras à entrada de bananas importadas do Equador para beneficiar produtores brasileiros. As falas protecionistas foram demais para os liberais do MBL. Em um vídeo de 15 minutos postado no YouTube no dia 31 de março, os jovens do movimento ridicularizam o presidente durante uma breve passagem pelo município de Registro, no Vale do Ribeira — região de São Paulo onde Bolsonaro viveu sua infância e juventude e que é conhecida pela produção de bananas. Nas imagens, o MBL sai à procura de nióbio em plantações de banana. Renan Santos, um dos coordenadores e o principal formulador da linha de ação do MBL, pergunta a um comerciante de frutas: “Você sabia que o Foro de São Paulo (que reúne partidos de esquerda e é demonizado pelos apoiadores de Bolsonaro) mandou o Equador enviar bananas para cá e acabar com a região?”. O vídeo foi batizado de “Devolvam o nosso nióbio”.
‘Bolsonaro e Dilma são parecidos. Ele nunca gostou de política nem do Congresso’– Kim Kataguiri, deputado federal (DEM)
‘É inacreditável que o presidente Jair Bolsonaro, do alto de seus 30 anos de vida parlamentar, não tenha aprendido que o Congresso é uma casa de diálogo. Diálogo, aliás, é algo que o governo atual simplesmente não consegue estabelecer’– Marcos Pereira, líder do PRB e bispo da Universal
‘Ele precisa ter um engajamento maior. Ele precisa ter mais tempo para cuidar da Previdência e menos tempo cuidando do Twitter’– Rodrigo Maia, presidente da Câmara (DEM)
‘O governo Bolsonaro é o maior inimigo da direita republicana’– Renan Santos, líder do MBL
‘Os eleitores de Bolsonaro que acharam que estavam votando no capitão Nascimento talvez tenham votado no Rocha, o chefe da milícia’– José Padilha, cineasta
‘A direita no poder parece um elefante numa loja de porcelana’– Lobão, cantor e compositor
‘Bolsonaro é um sujeito bastante limitado’– Francisco Razzo, professor de filosofia
‘De um lado o marxismo cultural e de outro o direitismo incultural’– Delfim Netto, economista
‘Os militares não entenderam a natureza do governo. Não entenderam que não existe um olavismo separado do bolsonarismo. O clã bolsonaro é olavista. Os militares acham que isso é uma distração lateral’– Demétrio Magnoli, sociólogo
‘Ele está estupidificando o discurso’– Reinaldo Azevedo, jornalista
‘Como o presidente da República pode se lançar a um esgoto como este? É mesmo a expressão da irresponsabilidade’– Carlos Andreazza, editor de livro escrito por Olavo de Carvalho
Na quinta-feira 9, falando a ÉPOCA na sede do MBL, um galpão com estilo de centro acadêmico na Vila Mariana, bairro da Zona Sul de São Paulo, Santos subiu vários tons na crítica. “O governo Bolsonaro é o maior inimigo da direita republicana, que é o que a gente defende”, disse. Guitarrista amador e fã da banda Television, umas das precursoras da cena punk de Nova York nos anos 70, Santos acredita que o estilo alternativo deve fazer parte da estética da nova direita. Antes de ajudar a fundar o MBL, ele chegou a estudar Direito na Universidade de São Paulo (USP) e diz ter tido uma empresa metalúrgica. Não concluiu a faculdade e teve de fechar a empresa. Ao discorrer sobre o cenário político, abusou dos gestos e não deixou de lado os palavrões. Quando se empolgava com uma formulação ou com a recordação de algum fato marcante, batia com as mãos nas próprias pernas. Para ele, o problema do governo tem nome e sobrenome: Olavo de Carvalho. Na visão do MBL, o guru de Bolsonaro, que parece falar com anuência do presidente, “não acredita nas relações republicanas” e na política pelas vias institucionais. “Defender que a articulação política é crime vai contra o que a gente representa. O Bolsonaro é a morte de nossa ideia”, disse.
Em 1984, quando Santos nasceu, em Vinhedo, no interior de São Paulo, o economista Antonio Delfim Netto era ministro do Planejamento do presidente João Baptista Figueiredo. Durante os anos da ditadura militar, Delfim também foi ministro da Fazenda, da Agricultura e embaixador do Brasil na França. Começou na Arena, partido que deu sustentação ao regime no Congresso, seguiu para o PDS com a democratização e, desde que saiu da legenda, em 1993, passou mais tempo sob o guarda-chuva do PP. A partir de 1987, foi deputado federal por 20 anos. Hoje, com 91 anos, está fora do dia a dia da política, mas segue ícone da direita tradicional, embora não aceite a designação e se autodefina como um liberal. Durante três dias da semana, vai ao escritório, um casarão em estilo inglês no bairro do Pacaembu, em São Paulo. A casa tem um ar de loja de móveis e artigos antigos, com fichários de metal, uma máquina de escrever elétrica em cima de um armário e sofás e cadeiras que parecem ter saído da década de 70. Em sua sala, Delfim mantém a mesa com uma organização impecável: alguns papéis em pilha, um telefone branco, um porta-canetas e um exemplar do jornal Valor econômico. Cada coisa em seu lugar. Já nos primeiros minutos de conversa, Delfim, famoso por suas tiradas, mostra que está afiado. “Hoje você não tem mais centro. Só extrema-esquerda e extrema-direita. De um lado o marxismo cultural e de outro o direitismo incultural.”
Assim como o MBL, Delfim é um bolsonarista de segundo turno — num voto que ele chama de ato em “legítima defesa”. Em sua opinião, Luiz Inácio Lula da Silva foi um presidente extraordinário, fez coisas muito interessantes, mas o governo de Dilma, do qual ele chegou a ser uma espécie de conselheiro informal, foi uma tragédia. Para não permitir a volta da agenda que ficou conhecida como “Nova Matriz Econômica”, de forte intervenção governamental, o economista optou pelo PSL no final de outubro. Arrependido? Para ele, a palavra arrependimento parece uma tolice. Ele argumentou que naquela hora a decisão parecia ser correta. “Mas, quando o futuro vira passado, você fica muito mais inteligente”, disse, levantando levemente os dois pés e inclinando o tronco para a frente, de forma simultânea, como se estivesse fazendo um exercício abdominal em cima da cadeira.
Delfim disse ser impossível não ver a confusão gigantesca que se montou. Para ele, o governo joga uma casca de banana do outro lado da rua e sai correndo para escorregar nela. Trata-se, em sua visão, de uma administração que se esmera na criação de problemas, não na solução. “Não se faz política tratando seu opositor como inimigo. O presidente precisa ser um criador de consensos. É isso que falta. Se ele produzir separação, não vai a lugar algum.” Para além de criticar o estilo da atual administração nos contatos com o Congresso, Delfim acha preocupante a ideologia que parece dominar o Planalto, a crença de que, com a ajuda das redes sociais, há uma linha direta entre o governante e os governados. “Não há como organizar a sociedade a não ser por meio da política. Esse mecanismo (das redes sociais) é muito próximo da democracia direta, da democracia plebiscitária, que, como já dizia Platão, leva à tirania. Se a voz do povo é a voz de Deus, você não precisa do Supremo Tribunal Federal. Basta ter as pesquisas do Ibope”, disse. “A sociedade não quer justiça, quer vingança. Esse negócio não tem como produzir uma sociedade civilizada”, completou.
Em vez do bordão bolsonarista “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, Delfim defende algo que poderia ser resumido como “O Supremo acima de tudo e de todos”. Foi ao citar o STF que o economista falou de forma mais enfática nos mais de 60 minutos em que conversou com ÉPOCA, na segunda-feira 13. Os membros do Supremo são “a garantia de nossas liberdades”. Eles “vão cumprir a Constituição”, e nossas leis dizem que vivemos numa “República democrática” (o “ca” de “República” e o “crá” de “democrática” acompanhados de batidas com a mão na mesa). Diante da pergunta inescapável sobre se a democracia no Brasil estaria em risco, ele disse, com calma: “Não. Não está em risco porque eu confio no Supremo. Por isso, acho que é uma discussão que não tem importância”, ressaltando o papel crucial das decisões tomadas pelo plenário da Corte.
Como vários outros economistas de primeiro time, Delfim fez muitos elogios a setores do governo, como o da Infraestrutura, e também à agenda econômica de Paulo Guedes, mas até nesse ponto levantou algumas ressalvas. Ele argumentou que as reformas da Previdência e a tributária são totalmente necessárias, mas não serão suficientes para colocar o Brasil no rumo do crescimento e resolver o grave problema do desemprego (pensamento que se repete entre economistas). Para crescer, será preciso atrair investimentos e melhorar as exportações. Delfim elogiou o fato de o governo ter bloqueado partes dos recursos do Orçamento deste ano porque as previsões de crescimento da economia em 2019 estão caindo. Previu outros cortes mais à frente. “Se o Guedes não tomar as providências que está tomando, chegará ao final do ano com um déficit gigantesco”, disse. Ao falar da execução dos cortes pelo Ministério da Educação nas universidades, Delfim voltou a levantar os pés e a inclinar o corpo. “O que estamos fazendo com a educação? Essa tentativa de desmoralizar a inteligência é uma demonstração de uma profunda ignorância.” Na opinião de Delfim, Bolsonaro acabará aprendendo a governar.
O empresário Flávio Rocha, das lojas Riachuelo, faz coro. Ele concorda que é preciso que Bolsonaro adote uma agenda positiva e deixe para trás o discurso do “nós contra eles”. “Viramos um PT da direita. E estamos nos perdendo nisso. O que está faltando é trocar o chip de campanha para o chip de governo. Sair do plano menor, de conflito, e ir para o plano maior, de projeto para o país”, disse.
Uma das vozes mais populares da nova direita, o cantor e compositor Lobão foi adepto de primeira hora da campanha bolsonarista. “Quando Bolsonaro abraçou Paulo Guedes, mostrou uma cartilha de economia liberal, e comecei a pensar: ‘Poxa, sou a favor da privatização, contra essas benesses’. O Bolsonaro é um homem bom, conheço o Bolsonaro. É um cara mais exótico, mas é uma pessoa que considero boa.”
No entanto, os ataques aos ministros militares, as disputas internas e as indicações políticas de Olavo de Cavalho, entre outras crises, fizeram com que Lobão rapidamente elaborasse um diagnóstico pouco alentador: “Tudo isso configura uma seita fanática, autoritária, beligerante, digna de camisa marrom. A direita no poder parece um elefante numa loja de porcelana. Ninguém sabe se comportar direito. Confundem conchavo com negociação política”.
Lobão projeta à frente o resultado de tanto obscurantismo: “Quem quer fazer livre-iniciativa, empreendedorismo, economia pujante, cultura livre e plural não pode viver sob a paranoia. Qualquer coisa que fale contra, você é comunista, positivista, você não entende o estamento burocrático”.
O cantor atribuiu parte da paranoia à influência de Olavo de Carvalho, tido como “pernóstico” que abusa da carência intelectual dos jovens. “O Bolsonaro é refém emocional, psicológico e intelectual do Olavo. O Olavo é um manipulador, sociopata. Quando ele pega três filhos do presidente que têm uma base intelectual sofrível, assim como o próprio presidente, e oferece de forma fascinante um cabedal intelectual… Ou seja, o Olavo é uma figura fascinante. E, como todo sociopata, ele é altamente sedutor.”
O economista Rodrigo Constantino, que ganhou notoriedade nos últimos anos com artigos na imprensa com forte viés liberal, argumentou que existe um risco de Bolsonaro causar um estrago ao pensamento conservador no Brasil. “O povo mais leigo, que não acompanha o dia a dia da política, não vai diferenciar o joio do trigo. A possibilidade de o governo fracassar é uma preocupação que eu, como representante do liberalismo com viés mais conservador, venho externando. Por isso, me tornei muito crítico do governo.” Constantino considera ser cedo para colocar o bolsonarismo como principal alvo a combater. “É um inimigo relevante justamente porque fala em nome da direita, defende um monte de porcaria e usa o mesmo rótulo. Mas acho prematuro dizer que é o maior inimigo quando ainda temos uma esquerda estruturada na academia, na imprensa e na própria política.”
Até mesmo o líder da bancada da bala, um dos temas prediletos da família Bolsonaro, o capitão Augusto Rosa (PP-RS), teme pelo desgaste da direita no governo. Crítico da relação entre o Executivo e o Legislativo, Rosa renunciou à vice-liderança do governo na Câmara. Em sua visão, o governo deve isolar Olavo de Carvalho para pacificar a relação com o Congresso. No último dia 6, Rosa ganhou destaque no noticiário ao afirmar que Bolsonaro corria risco de impeachment em razão da péssima relação com os parlamentares. Questionado por ÉPOCA sobre a declaração de que a imagem da direita está se “esfacelando” sob Bolsonaro, o deputado tentou consertar: “Se a reforma da Previdência for um fiasco, inevitavelmente vai levar a uma crise — e a questão financeira está casada com a insatisfação popular. Por isso falei que a imagem da direita está se deteriorando. Tememos que ela venha a se esfacelar ”, explicou. “Queremos que a direita venha para ficar. Não só por um mandato, mas por vários. Nossa preocupação é de o governo não dar certo e de, com isso, ressuscitar a esquerda.”
Em termos de volume, ninguém tem feito mais barulho contra Bolsonaro do que uma dupla de comentaristas políticos: o jornalista Reinaldo Azevedo e o sociólogo Demétrio Magnoli. Os dois possuem colunas no jornal Folha de S.Paulo. Magnoli também escreve para o jornal O Globo, da mesma editora que publica ÉPOCA, e Azevedo participa de programa de rádio. Criador do termo “petralhas”, adjetivo que se tornou sinônimo da corrupção nos governos petistas, Azevedo surpreendeu parte de seus leitores por não dar trégua também ao governo Bolsonaro. Analista que se identifica como da “direita liberal”, ele considera que Bolsonaro contribui para a demonização dessa posição política. Para o jornalista, não falta muito para que as pessoas comecem a se perguntar: “Direita é isso? Liberalismo é isso? É essa intolerância, esse grau de burrice e esse conservadorismo tacanho?”. Em sua sala de vidro na sede da rádio Bandnews, na Zona Sul da capital paulista, Azevedo tomou goles de café espresso enquanto falou com ÉPOCA, na sexta-feira 10. Só parou de falar quando fez duas pausas para fumar dois “Hollywoods” — “cigarro de macho”, disse brincando.
Dono de uma verve ácida e um estilo escalafobético, o que se traduz também na vestimenta — blazer, camisa preta e um chapéu chamativo —, Azevedo não poupa ninguém. Ao longo de duas horas de entrevista, o “rottweiller”, apelido dado por uma antiga ombudsman do jornal Folha de S.Paulo que adotou e está inscrito em uma xícara sobre sua mesa, defendeu o estado de direito e a democracia e voltou sua fúria contra o ministro Sergio Moro, a Lava Jato e o bolsonarismo. “Se há uma coisa que já sei com estes meus olhos cansados é que países não fecham, países pioram”, disse o colunista. “Bolsonaro não conseguiu organizar uma base de apoio no Congresso até agora. E nós estamos nos perdendo em discussões sobre decreto de armas, sobre o que fazer com os comunistas, sobre a ideologia nas escolas, nas universidades, estupidificando o discurso. E aí ele aparece naquelas lives com a estética da al-Qaeda, que fica parecendo que ele está lá no cafofo do Osama bin Laden.”
Azevedo adora engajar-se em polêmicas. Foi assim com a coluna “Voltem para os quartéis soldados. Deu tudo errado!”, publicada na sexta-feira 10 na Folha de S.Paulo. A análise de Azevedo passa por seu entendimento de Olavo de Carvalho. Ele lembra que ambos já tiveram uma relação cordial, quando Azevedo era editor-chefe da revista Bravo, e o guru do bolsonarismo um dos seus ensaístas. Azevedo afirmou, porém, que naqueles tempos Olavo era menos “assoberbado” e “agressivo” do que nos dias de hoje, quando “inventou um personagem” para ganhar dinheiro com aulas de filosofia na internet. “Olavo é um leninista pelo avesso. A estrutura do pensamento dele é disruptiva. Ele é parte de um grupo de vanguarda que quer romper com a ordem estabelecida”, afirmou. Esse seria, em sua visão, o motivo dos embates com a ala militar do governo. “Existe um pensamento militar no Brasil, que é anticomunista, e ele não aceita a ideia de disrupção e de revolução — nem que seja pela direita”, completou.
Demétrio Magnoli se identifica como de centro-esquerda. Preferiu não dizer em quem votou na última eleição, mas assegurou que não foi às urnas por Bolsonaro. Considera a definição “anti-Bolsonaro” como estrita, mas ainda assim a aceita, no sentido de que se opõe a um governo que, segundo seu entendimento, caminha na direção da erosão das liberdades. “Eu também sou anti-Donald Trump, anti-Erdogan (presidente turco), anticastrismo (regime cubano), anti-Maduro (presidente venezuelano).” Magnoli se diz contra a transformação do país em faroeste, onde não existam limites para a ação do Estado, das polícias e das milícias. No último dia 11, publicou um artigo em que afirmava que a revolução Bolsonaro-olavista poderia implodir o mandato e, como Azevedo, defendia a saída dos militares do governo. Ele não crê que sua sugestão será acatada. “Os militares não entenderam a natureza do governo. Não entenderam que não existe um olavismo separado do bolsonarismo. O clã Bolsonaro é olavista. Os militares acham que isso é uma distração lateral”, afirmou.
O filósofo Francisco Razzo, que tem se envolvido nos últimos anos na construção de um pensamento de direita no país, também avaliou que a influência do olavismo é o grande mal do governo. Razzo disse que a imprensa e os políticos têm dificuldade de compreender o ideólogo dos Bolsonaros. “Ele é extremamente inteligente e tem um projeto de poder que se alimenta desse caos. Acredita nessa radicalização contra o establishment, representado por imprensa, Congresso e militares.” Razzo entende que a direita brasileira cometeu um erro nos últimos anos, quando ganhou espaço na sociedade. “Ficamos com muita pressa de chegar ao poder. Essa ânsia sufocou um pouco a possibilidade de articular, sentar na mesa, conversar, discutir rumos e programas.” No primeiro turno da eleição, Razzo votou em João Amoêdo, do Partido Novo, mas não revelou publicamente sua opção. No segundo turno, decidiu na última hora votar em Bolsonaro e revelou nas redes sociais apenas que não votaria em Haddad, por receio de que o PT pudesse reconstruir um projeto de poder. “Bolsonaro é um sujeito bastante limitado, o que é nossa sorte. Se ele fosse articulado, eu estaria mais preocupado, porque ele poderia criar uma situação de caos para enfraquecer as instituições.”
O influenciador digital Felipe Neto seguiu um caminho diferente. Antes um crítico ferrenho do petismo, declarou voto em Haddad. Era o que precisava para entrar na mira da direita bolsonarista, com quem se digladia diariamente nas redes sociais. Na segunda-feira 13, Neto deu uma pequena amostra de sua fúria anti-Bolsonaro: “Sério, só um vagabundo de marca maior como esse @CarlosBolsonaro pra tentar linkar a redução de crimes violentos nos primeiros três meses do ano com a entrada do seu pai no governo. Sendo que a redução era prevista desde o ano passado”, escreveu Neto para uma audiência de 8,8 milhões de seguidores em sua conta pessoal no Twitter. O número é mais que o dobro de seguidores do presidente, que tem 4,2 milhões, e quase equivalente à soma de apoiadores do presidente e de seus três filhos políticos na rede social. Em seu canal no YouTube, Neto tem mais de 32 milhões de assinantes.
Dois dias depois do encontro na sede do MBL em São Paulo, as lideranças do movimento aceitaram que a reportagem de ÉPOCA as acompanhasse numa viagem a São José dos Campos, no interior paulista. Num anfiteatro de um hotel da cidade lotado com cerca de 200 pessoas, o vereador paulistano Fernando Holiday (DEM), de 21 anos, estrela do MBL, fez um discurso em defesa de Bolsonaro. Disse que a militância virtual ainda era crucial para sustentar o poder do presidente diante de um Congresso “corrupto” e de uma “oposição violenta”. O público reagiu com entusiasmo, e Holiday foi ovacionado. O discurso de Holiday parecia exatamente o oposto do que Renan Santos, outro expoente do MBL, havia proferido minutos antes. Era tudo ensaiado. Holiday voltou ao palco para revelar que tudo que acabara de dizer era mentira. “O que vocês acabaram de presenciar foi o mais fácil dos populismos, a mais nojenta das demagogias. Que é aquela que convence milhares de pessoas, no caso aqui são centenas, de uma tese com apenas algumas poucas palavras vazias”, disse o vereador, acrescentando que o MBL tinha sido criado para fazer política pelas vias institucionais, numa clara oposição ao que defende parte dos apoiadores do presidente. Coube ao deputado federal Kim Kataguiri, que recebia tratamento de celebridade no local, as palavras finais. Ele defendeu que a “articulação” é necessária mesmo para negociar com “esquerdistas” como “PT, PSOL e PCdoB”. O estudante Lorenzo Pozzi, de 16 anos, saiu de Ilhabela, no litoral paulista, para encontrar os líderes do MBL, com quem tirou fotos. Fã de Kataguiri, Pozzi se disse um liberal convicto, um defensor de um Estado menor e do fim dos privilégios dos políticos corruptos. Depois da pegadinha de Holiday, Pozzi ficou confuso. “Continuo apoiando Bolsonaro. Acho o governo bom. Não entendi muito bem essas críticas contra o presidente”, disse o jovem.
De Época