Juíza nega correção da causa da morte em certidão de óbito de vítimas da ditadura
Ao recorrer de uma sentença de 2012 que condenou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015) a pagar indenização à família de Luiz Eduardo Merlino (1948-1971), jornalista torturado e morto na ditadura, a defesa do militar citou a certidão de óbito da vítima em seus argumentos.
Apontou que a causa de morte no registro oficial era atropelamento, versão que foi desmentida pela Comissão Nacional da Verdade dois anos depois, em relatório de 2014.
O documento, no entanto, continua ainda hoje com a informação falsa e a família de Merlino teme ter que entrar em uma guerra judicial para conseguir modificá-lo. E não é o único caso em São Paulo.
Os pedidos foram elaborados por comissão vinculada ao governo federal e assinada pelas famílias. No campo relativo à causa do óbito, foi solicitado que conste ter havido “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto de perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora”.
Após o cartório do Jardim América (zona oeste da capital) ter recebido o pedido de retificação relativo ao caso Merlino, o escrivão questionou a juíza da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Letícia Fraga Benitez, se estava autorizado a fazer essa mudança.
Ela negou, embora tenha, em decisão anterior, autorizado que constasse a frase na certidão de óbito de Gildo Macedo Lacerda (1949-1973), militante da Ação Popular Marxista-Leninista morto sob tortura. O pedido foi feito ao cartório da Sé (centro).
No entanto, o resultado final também não satisfez a família de Gildo. O cartório manteve a causa da morte na certidão da maneira que estava antes: “Não consta”.
Fez apenas o adendo com a frase solicitada no verso do documento, em um campo de observações, afirmando que cumpria a decisão da Justiça.
Criada por lei, a comissão responsável pelas petições aos cartórios é responsável por reconhecer mortos e desaparecidos políticos na ditadura militar. Foi a entidade que emitiu atestados de que Gildo e Merlino morreram nessas circunstâncias, após apurações feitas pela Comissão Nacional da Verdade.
Esses atestados, afirma a presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, a procuradora regional da República Eugênia Favero, servem como prova judicial e foram anexados no pedido de alteração.
Tanto que em outros quatro casos solicitados pelo grupo —formado por Ministério Público, representantes do governo federal, famílias e sociedade civil— as certidões foram retificadas. Além desses quatro pedidos aceitos e dos dois questionados em SP, ainda há mais duas requisições que aguardam decisão.
Apesar de, em alguns casos, dependerem da decisão de um magistrado de Registros Públicos, essa mudança é administrativa, sem necessidade de as famílias ingressarem diretamente com uma ação na Justiça, que é muito mais lenta e burocrática.
Ao decidir sobre o pedido de Merlino, no entanto, a juíza afirmou que a mudança não pode ser feita administrativamente. “Não se trata de erro que exija qualquer indagação para a constatação imediata da necessidade de sua correção”, escreveu. “A retificação pretendida demanda a realização de juízo de valor a respeito do pleiteado”, acrescentou.
Procurada por meio da assessoria, a juíza informou que os casos correm sob segredo de Justiça e não comentou as decisões. A comissão entrou, no último dia 23, com um recurso à Corregedoria de Justiça de São Paulo para que a decisão sobre Merlino seja revista. No caso de Gildo, pediu apenas uma reconsideração ao cartório a respeito da mudança na certidão.
As famílias temem que a disputa pelas mudanças se estenda por muito tempo, já que se tratam de mortes ocorridas há quase meio século.
Gildo, por exemplo, nem sequer tinha uma certidão de óbito, obtida apenas depois da lei 9.140/95, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas durante a ditadura militar.
“Mesmo que essa seja uma história particular, é uma nota na história do Brasil importante de constar em documento oficial. Mostra com todas as palavras que houve pessoas torturadas na ditadura e que é importante que essa violência do Estado não continue, como continua. Não se pode achar natural, por exemplo, que um agente do estado dê 80 tiros em um carro”, afirma a professora de filosofia da USP Tessa Lacerda, filha de Gildo.
Ela não chegou a conhecer o pai. Sua mãe estava grávida quando ele foi morto.
O recurso de Ustra contra a decisão de primeira instância foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em outubro do ano passado, em meio a um segundo turno presidencial em que o coronel do DOI-Codi paulista, ídolo do então candidato Jair Bolsonaro, virou figura-chave em debates políticos.
Na decisão, os desembargadores citam o argumento da defesa a respeito da certidão de nascimento, mas não analisaram a legitimidade do documento —apenas decidiram que o caso estava prescrito.
Para a companheira de Merlino à época em que ele foi morto, a professora universitária Angela de Almeida, essas menções e o uso jurídico só reforçaram a urgência de mudança no documento oficial. “A necessidade de modificação da certidão não é apenas simbólica para nós”, afirma.
Da FSP.