Macri vs Kirchner: Como a crise na Argentina pode influenciar as eleições no país

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Marcada para 27 de outubro de 2019, a eleição presidencial argentina pode ser tão polarizada quanto a de 2018 no Brasil.

O presidente Mauricio Macri tenta se manter no cargo em um cenário de aumento da pobreza e de recessão com inflação explosiva, que passa de 54%.

Sua principal adversária é a antecessora, Cristina Kirchner, que governou o país entre 2007 e 2015, e conseguiu ultrapassá-lo nas pesquisas de intenção de voto mais recentes.

A eleição do empresário Macri, em 2015, marcou o rompimento de um ciclo de 12 anos de gestão dos Kirchner na Argentina, a substituição de um governo considerado muitas vezes populista por outro de perfil reformista, conduzido por uma equipe de economistas de orientação liberal.

Durante os oito anos em que esteve na Casa Rosada, Cristina protagonizou uma queda de braço com credores estrangeiros da dívida argentina, chegando a suspender os pagamentos. Foi criticada por conceder subsídios em excesso, por interferir no órgão oficial de estatísticas, o Indec, para mascarar a alta da inflação e por instituir uma política de controle de divisas que fez explodir o mercado de câmbio paralelo.

Macri foi eleito por uma coalizão de centro-direita chamada Cambiemos com a promessa de promover mudanças que resolveriam os desequilíbrios estruturais que impediam o crescimento da Argentina.

As más notícias do início do mandato, porém, só pioraram com o tempo: a economia encolheu 2,5% em 2018 – e deve recuar mais 1% neste ano, de acordo com as estimativas mais recentes -, o peso continua perdendo valor ante o dólar e a taxa básica de juros passou de 72%.

O clima de polarização se traduz em pesquisas como a realizada recentemente pela consultoria política Synopsis, em que 24,8% dos argentinos disseram julgar que a culpa pela crise é 100% de Cristina, enquanto 25% afirmaram ser 100% responsabilidade de Macri.

Em meio à onda de indicadores negativos e à ascensão da rival nas pesquisas, o presidente argentino anunciou em abril medidas que vão contra a agenda liberal pregada por seu governo, entre eles o congelamento de preços de 60 itens de consumo.

Antes disso, demitiu um ministro da Fazenda, assistiu à renúncia de um presidente do Banco Central e pediu ajuda ao FMI.

Como a Argentina chegou até aqui e que tipo de impacto as eleições têm sobre a situação do país?

Os principais pilares da política macroeconômica do governo Macri, que assumiu o país em dezembro de 2015, foram a consolidação fiscal e a política monetária contracionista. Traduzindo o jargão econômico: a adoção de medidas para diminuir o déficit do governo e o aumento dos juros para tentar conter a inflação – uma combinação que, via de regra, esfria a economia porque diminui a capacidade do setor público de investir e aumenta o custo do dinheiro para o setor privado.

Um remédio amargo – e recessivo -, dizia a equipe do governo, mas necessário para reequilibrar a economia argentina, que vinha de quase uma década de aumento de gastos do governo, concessão de subsídios em diversas áreas e controle cambial.

As medidas eram impopulares, mas o governo esperava contar com o apoio dos argentinos se a inflação baixasse e a economia voltasse a crescer.

O roteiro, entretanto, não saiu como planejado.

Um ano depois da posse, a economia encolheu mais do que se esperava, 2,1%, e Macri demitiu seu Ministro da Fazenda, Alfonso Prat-Gay. O ministério foi dividido em dois, com Luis Caputo como ministro das Finanças e Nicolás Dujovne à frente da Fazenda.

Uma das razões apontadas para a exoneração foi o fato de o economista ter uma visão mais “gradualista” do ajuste, defendendo uma trajetória mais suave de elevação dos juros, enquanto a equipe do Banco Central pregava maior austeridade.

Para Marcos Casarin, economista-chefe para a América Latina da Oxford Economics, um dos símbolos da disputa dentro da equipe econômica do governo foi a contratação, em junho de 2017, de Vladimir Werning, do banco JP Morgan, para trabalhar com o Chefe de Gabinete de Macri, Marcos Peña.

“Era um economista que não estava ligado nem à Fazenda e nem ao Banco Central, mas que prestava consultoria diretamente ao Peña, um nome com bastante influência na política econômica”, avalia. “Tinha muito economista dando opinião ao mesmo tempo.”

Cerca de um ano depois, em janeiro de 2018, diante de um desempenho mais favorável da economia, que havia crescido 2,5% em 2017, o Banco Central Argentino, chefiado por Federico Sturzenegger, reduziu a taxa de básica de juros, logo depois de a equipe econômica suavizar a meta de inflação do intervalo entre 8% e 12% para 15%.

O afrouxamento foi malvisto pelo mercado. “Foi aí que as coisas desandaram”, afirma Alberto Ramos, economista-chefe para a América Latina do Goldman Sachs.

Em paralelo, os Estados Unidos aumentavam sua taxa básica de juros – um movimento que normalmente redireciona o fluxo de capital de mercados mais arriscados, como os emergentes, para os mais seguros. Isso enxugou a oferta de dólares na Argentina, que mergulhou em uma crise cambial.

A cotação da moeda, que saltara de 9 pesos para 14 por dólar logo que o mercado de câmbio foi liberado, em 2016, ultrapassou a marca de 20 pesos por volta de maio de 2018 e hoje está cotado em torno de 40 pesos.

De forma geral, a desvalorização cambial tem impacto negativo sobre a inflação, à medida que pressiona o preço dos insumos e de bens importados, o que acaba elevando o preço final dos produtos.

Na Argentina, em que a economia é bastante dolarizada, esse efeito é ainda pior.

“O argentino sonha e tem pesadelo em dólar”, brinca Ramos, do Goldman Sachs. Em momentos de crise, ele destaca, a população pega as economias e corre para as casas de câmbio para comprar moeda americana – o que não acontece no Brasil, por exemplo. “Esse é o tamanho da desconfiança em relação à moeda local”, acrescenta.

Isso contribui para diminuir a disponibilidade de moeda estrangeira e pressiona ainda mais o dólar – com impacto, por sua vez, sobre a inflação.

Diante desse cenário, em maio de 2018, o governo argentino pediu socorro ao FMI, que fechou acordo para liberar quase US$ 60 bilhões ao país para que pudesse pagar as contas e evitar elevar ainda mais o nível de endividamento.

Macri então cortou ministérios e aumentou impostos, e o Banco Central subiu juros.

“O cenário externo mudou, ele perdeu graus de liberdade (no manejo da política econômica) e foi obrigado a deixar o gradualismo de lado”, diz Ramos.

No meio da confusão, em junho do ano passado, Sturzenegger renunciou ao cargo de presidente do Banco Central, afirmando que teve a “credibilidade deteriorada” por diversos fatores. O cargo foi ocupado por Caputo, e Dujovne passou a responder pelas pastas da Fazenda e das Finanças.

Apesar das medidas, a inflação, um dos principais problemas da economia argentina, não baixou. Pelo contrário. De cerca de 25% em maio de 2018, saltou para 54,7% no acumulado em 12 meses até março, conforme os números do Indec.

As razões para o aumento persistente dos preços, diz o economista Sebastián Galiani, professor da Universidade de Maryland e Secretário de Política Econômica da Argentina até abril do ano passado, se deve a uma série de fatores, entre eles a desvalorização cambial, a indexação de preços – salários e contratos são muitas vezes corrigidos pelos índices de inflação, como acontece no Brasil -, expectativas desancoradas e o chamado “realismo tarifário” de Macri, que reverteu uma série de subsídios que mantinham os preços artificialmente baixos, entre eles de energia.

Diante da proximidade das eleições e sem boas notícias para dar aos argentinos, Macri resolveu então “combater populismo com populismo”, na definição de Marcos Casarin, da Oxford Economics.

Além de congelar preços, o governo também eliminou na prática a chamada “zona de não intervenção” no câmbio – ou seja, pode interferir no mercado de câmbio comprando ou vendendo dólares para tentar conter a volatilidade da moeda.

“São medidas eleitoreiras, heterodoxas”, diz o economista. A ideia é fazer um aceno aos argentinos, que viram suas condições de vida piorar significativamente nos últimos anos, e mostrar que o governo está preocupado com a inflação e comprometido com a melhora dos indicadores.

Para ele, um dos principais erros da estratégia de Macri foi o gradualismo excessivo do ajuste nos primeiros anos, quando seu capital político era maior.

Nesse sentido, ele destaca a “complacência” do Banco Central, que, assim como nos anos de Kirchner, continuaram a financiar o Tesouro, ainda que em menor nível.

O economista se refere à emissão monetária: diante da necessidade de recursos, o governo pedia ao BC que imprimisse mais dinheiro, uma medida considerada inflacionária, já que expande a base monetária – ou seja, a disponibilidade de dinheiro. Mais comedida que na administração anterior, a prática era feita em paralelo ao aumento do endividamento externo.

Ao lado dos equívocos na política econômica, o especialista coloca ainda a “herança” do governo anterior como parte causa da crise atual. “O que ela (Cristina) deixou foi pior do que a matriz macroeconômica da Dilma”, opina.

Esse é um ponto destacado por macristas como Galiani, que ressalta que a administração conseguiu avanços expressivos levando-se em conta o ponto de partida. Para ele, o governo Macri é “exitoso” e a política econômica precisa de mais tempo para surtir efeito.

Sobre a saída da equipe em 2018, Galiani diz ter voltado para ficar com a família nos EUA, onde vive desde 2006.

“Minha ideia era ficar apenas um ano, para fazer a reforma tributária, acabei ficando um ano e meio. Meus filhos tinham ficado aqui”, disse à BBC News Brasil.

Economistas ligados à administração de Cristina Kirchner criticam as medidas de austeridade e defendem que a política fiscal seja contracíclica, que suavize os efeitos negativos da crise sobre a atividade.

“Nós não achamos que o país deve viver permanentemente com déficit fiscal, essa é uma discussão falsa”, disse à reportagem um dos membros da gestão da ex-presidente que preferiu não se identificar.

Para ele, os pesados subsídios concedidos pelo governo na era Kirchner eram necessários para garantir a competitividade do setor produtivo diante de um aumento do custo da energia, situação agravada pelo fato de que o país precisa importar gás.

As medidas seriam temporárias, afirma a fonte, enquanto o país buscava a autossuficiência no abastecimento.

Enquanto faz campanha, Cristina Kirchner enfrenta uma série de acusações de corrupção na Justiça. Desde que foi eleita senadora em 2017, entretanto, ela goza de imunidade parlamentar. A Justiça já chegou a pedir a suspensão do privilégio – uma prerrogativa do Senado, que negou a demanda.

A candidatura de Macri, por sua vez, não está garantida. Casarin, da Oxford Economics, avalia que o empresário ainda corre o risco de o Cambiemos escolher nas eleições primárias a prefeita de Buenos Aires, María Eugenia Vidal, que é do mesmo partido de Macri, o Proposta Republicana (PRO).

Seja quem for o candidato, diz Ramos, do Goldman Sachs, o desafio é “conquistar os corações e mentes dos argentinos”, que estão fartos de governos que prometem crescimento e entregam o contrário.

“O argentino médio já viu muita crise e está cansado de ouvir que ele tem que esperar um pouco mais, ter mais paciência.”

Da BBC