‘Quero que o mundo saiba o que fizeram comigo’, diz vítima da ditadura chilena
Quando era uma adolescente de 15 anos admirava aqueles homens elegantes com seus trajes brancos que desfilavam pelas ruas de Valparaíso , no litoral chileno. Mesmo sendo filha e neta de mulheres de esquerda, Haydeé Oberreuter tinha enorme respeito pelos membros da Marinha de seu país e até sonhava, por que não, em namorar um daqueles marinheiros.
Seis anos depois, aos 21 e grávida de quatro meses de seu segundo filho, aquela paixão platônica transformou-se em ódio visceral quando foi sequestrada pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), levada para um quartel de sua cidade natal, torturada brutalmente por membros daquela mesma Marinha que foram capazes de abrir sua barriga com uma faca, tirar dela um feto com vida e completar este ato que em qualquer tribunal internacional seria considerado um delito de lesa-Humanidade anunciando à mãe mutilada que “o mundo acaba de perder um terrorista”.
— Acharam que estava morta e decidiram fazer uma autópsia, durante a qual arrancaram meu bebê de mim. Depois disso não lembro de mais nada — revelou Haydeé, em entrevista ao Globo.
A tragédia desta mulher chilena provoca arrepios. Após anos de trabalho, seu drama foi condensado no documentário “Haydeé e o peixe voador”, transmitido no Brasil pelo Canal Curta. O peixe voador é Sebastián, nome dado por ela ao bebê que nunca chegou a nascer. Quando finalmente encerrou o capítulo judicial da história, Haydeé organizou uma cerimônia num barco com amigos e familiares que olhando para o mesmo quartel no qual ela foi torturada atiraram peixinhos de papel ao mar, num gesto simbólico que buscou liberar seu filho dos tormentos do passado. Assim termina o documentário, que deixa qualquer um com os olhos cheios d´água.
— Não queria mais pensar em Sebastián naquele lugar sinistro, queria imaginá-lo voando, ou no mar, acompanhado de outros peixinhos. Porque eu não fui a única, muitas outras mulheres perderam filhos durante as torturas — contou.
É impossível não comover-se com a história desta mulher que sobreviveu a uma das ditaduras mais violentas do século passado na América Latina e depois de decepcionar-se com os tribunais de seu país decidiu transformar seu drama em documentário. Após anos de luta, a Justiça chilena limitou-se a condenar três ex-membros da Marinha (outros sete envolvidos no caso já haviam falecido durante o processo) a três anos de prisão pelo delito de torturas. O aborto imposto a Haydeé com uma crueldade atroz não foi contemplado, explicou, “porque os juízes consideraram que meu filho não era um ser vivo e, portanto, não tinha direitos”.
— Fiz várias cirurgias para reconstruir minha barriga, acabo de superar um câncer de mama e ainda estou processando tudo o que fizeram com meu bebê, a quem chamei Sebastián, tenho certeza que era menino. Muitas vezes me pergunto como fiz para suportar tudo e acho que o que me salvou foi a juventude — disse Haydeé, que na década de 70 integrava o Movimento de Ação Popular Comunitário, um dos que respaldou o governo do socialista Salvador Allende (1973-1990).
Quando Pinochet deu o golpe, ela era estudante de História, já tinha uma filha de um ano e meio e militava em sua faculdade. Para obrigá-la a entregar-se, os militares prenderam sua filha e sua mãe. Foi o começo de uma vida de perseguição, detenções e torturas. Depois do aborto Haydeé saiu e entrou das prisões clandestinas de Pinochet várias vezes. Até 1994 cumpriu regime de liberdade condicional porque a Justiça a considerava um perigo para a sociedade.
— Durante anos desmaiava cada vez que passava na frente de um hospital. Fazer a quimioterapia foi terrível para mim, o trauma é profundo. Cada vez que me torturam médicos da Marinha estavam presentes, são cúmplices das barbaridades que os militares cometeram — relatou Haydeé, com a voz embargada.
O documentário acaba de ser apresentado no festival de cinema de Toronto. Ela foi até lá, apesar do esforço emocional que representa reviver uma e outra vez sua dor. Este ano ainda deve ser apresentado em festivais no Chile, país que julgou e condenou militares que cometeram crimes durante a ditadura mas no qual esses militares e alguns setores da sociedade continuam defendendo a atuação de um regime que deixou mais de 40 mil vítimas, entre mortos, desaparecidos e torturados.
— Decidi contar minha história porque se a Justiça não os condenou como mereceriam pelo menos quero que a sociedade e o mundo saibam o que fizeram comigo e com tantas outras mulheres. É muito difícil, mas necessário — desabafou Haydeé.
Seu caso chegou à Justiça graças a outra mulher, uma jornalista que publicou o caso na capa de uma revista local, e de um homem, um advogado desconhecido que leu a reportagem e sentiu uma obrigação imperiosa de exigir Justiça.
Depois de Sebastián, ela teve outro filho e hoje vive acompanhada, ainda, por quatro netos. O documentário mostra uma mulher quebrada por dentro, mas inteira por fora e ainda com energia para lutar pelos direitos humanos em seu país. A ferida continua aberta e muitos ex militares impunes. Haydeé não descansa nem um dia, está sempre em marchas, eventos organizados por grupos locais, em Valparaíso, Santiago ou onde for necessário estar.
Aos 65 anos, seguindo o exemplo de uma mãe sindicalista e uma avó que lutou para que as chilenas pudessem votar, ela mantém viva a herança genética e acompanha com orgulho e entusiasmo o momento de empoderamento feminino no Chile e no mundo.
— Estamos numa fase de avance substantivo — concluiu esta guerreira, verdadeiro exemplo de resiliência.
De O Globo