Tradicional instituição de educação pune seus alunos por funk e cabelo afro

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Em um intervalo de poucos dias, episódios de assédio moral e discriminação racial indignaram pais e alunos do Colégio Dom Pedro II. A prestigiada instituição de ensino é comandada pelo Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal (CBMDF) e possui um rígido regulamento de vestimentas e condutas. No entanto, para as famílias dos estudantes, os casos extrapolaram as tradicionais cobranças do regime militar.

Uma aluna negra com tranças afro contou ter sido abordada por um monitor que recomendou a ela “cortar ou alisar” o cabelo para não sofrer sanções. Em uma reunião de pais e alunos na última quinta-feira (23/05/2019), a mãe da jovem relatou o constrangimento enfrentado pela filha.

O desabafo da mulher foi registrado por outras mães durante o encontro. O Metrópoles teve acesso ao áudio, mas como não conseguiu entrar em contato com a família, optou por não divulgar a gravação, apenas transcrever a declaração:

“Eu tentei passar para ela que era só uma questão de padronização, mas, para mim, é racismo. Anos atrás, não tínhamos mulheres no serviço militar. Hoje, temos. Antes, poderia não ter negros, não ter mulheres negras, não ter cabelo afro, mas hoje temos. E temos que saber lidar com isso”, disse a mãe da jovem, com a voz embargada. “Falta preparação pedagógica, saber lidar com a diversidade e o novo. Não dá para jogar fora o que está fora do padrão”, completou.

A abordagem revelada não teria sido um episódio isolado. Mãe de um estudante negro matriculado no Dom Pedro II, Alessandra Núbia Correia, 47 anos, lamentou a situação. “Já escutei outros relatos de casos parecidos. É uma questão de identidade. Não tem como fazer um afro virar um coque padrão. Dizer que os estudantes precisam cortar ou alisar o cabelo é desrespeitar as origens e submetê-los ao preconceito”, falou à reportagem.

Comemoração
A reunião na qual o caso ganhou notoriedade foi convocada às pressas após um áudio do comandante da escola, o tenente-coronel Marcos Antônio Nascimento de Souza Apolônio, repercutir em grupos de WhastApp. A gravação foi feita durante a cerimônia de entrega de medalhas do evento esportivo anual da instituição, na manhã da última quarta-feira (22/05/2019).

Com uma plateia de quase 3 mil estudantes, o diretor da instituição repreendeu um grupo de cerca de 50 jovens que, na semana anterior, em 15 de maio, havia feito uma apresentação musical, ao ritmo de funk, durante competição esportiva.

“Nos desrespeitou. [Foi uma] afronta a uma ordem direta. Não quero que vocês sejam surpreendidos com as medidas disciplinares que serão aplicadas a todos que participaram”, afirma Nascimento no áudio. “Nossa intenção foi preservar vocês do desrespeito que essas músicas promovem com as próprias mulheres, com as próprias meninas do nosso colégio”, continua ele na gravação.

Mãe de uma das estudantes, a analista de sistemas Djane Rocha Sampaio, 46, disse que a filha foi exposta na frente de todos os outros alunos da instituição. “Era um momento de confraternização, de alegria. Ela ouviu que seria punida, que envergonhou o colégio. E por causa de uma apresentação que foi preparada durante meses e com o aval da escola. Agora, ela e as colegas são alvo de piadinhas, estão envergonhadas”, contou.

MC Pocahontas
A música responsável pela confusão é um hit da funkeira MC Pocahontas. Apesar do forte apelo sexual de suas composições, a cantora é reconhecida como uma defensora do empoderamento feminino no universo funk.

De acordo com as estudantes, a canção Não Sou Obrigada foi submetida à aprovação dos dirigentes da escola. “Passamos uma lista com todas as músicas. Três foram vetadas e uma teve o refrão censurado. Nós nos adequamos a todos os pedidos. Mudamos tudo correndo”, revelou uma das jovens que participaram da apresentação.

Para elas, a música de MC Pocahontas pode ter passado pela seleção por não ser tão conhecida e não ter qualquer referência ao conteúdo no título. Foram vetadas: La Raba, de Lincon e Duas Medidas; Favela Chegou, de Anitta e Ludmilla; e Bota pra Tremer, de Pedro Sampaio.

Eu quero saber onde o comandante e os professores estavam. Minha filha passou meses ensaiando dentro da escola. Se eles consideravam a música inadequada, por que não avisaram? Não chamaram as meninas para conversar? É inaceitável que só tenham abordado isso uma semana depois, na frente de todos os outros alunos, e já as culpando e ameaçando de punições”
Djane Sampaio, mãe de uma estudante

Outra mãe de aluna, que pediu para não ter o nome divulgado por temer retaliações à filha, também está indignada com a situação. “Elas foram expostas. Logo após o discurso do diretor, começaram ataques nas redes sociais. Chamaram elas de indecentes, disseram que elas tinham que ter mais moral. É um desconforto muito grande e desnecessário”, desabafou.

Assédio
O filho de Alessandra Núbia Correia também participou da apresentação musical. Ela diz que teme impactos na saúde psicológica dos estudantes.

“Estamos falando de adolescentes, de jovens em formação. Eles foram vítimas de assédio em um momento que era pra ser pedagógico, de comemoração dos jogos escolares. Era a hora de promover a diversidade e aceitação das diferenças dos jovens, que já enfrentam tantas angústias. Mas não. Ele optou por constrangimento e humilhação”, lamentou.

A punição que seria aplicada aos estudantes ainda não foi definida. O regimento da Colégio Dom Pedro II prevê sanções gradativas, que vão de notificação dos pais até o desligamento do aluno da escola.

Após a repercussão negativa do áudio, o comandante da instituição, tenente-coronel Nascimento, enviou aos pais outra gravação, na qual afirma ter sido mal interpretado e que suas declarações “estão reverberando de forma bastante distorcida”.

A mensagem não acalmou todos os pais. “Ele não pediu desculpas, não reconheceu o constrangimento ao qual submeteu os alunos. Só mudou o tom de voz, que deixou de ser autoritário, e disse que não foi compreendido”, queixou-se outra mãe, que também preferiu não se identificar. “Ele disse que estava à disposição, mas passei o dia tentando agendar uma reunião e não consegui”, completou.

O outro lado
A assessoria de imprensa do Corpo de Bombeiros informou que o episódio de discriminação racial está sendo apurado e que, caso seja comprovado, os responsáveis serão responsabilizados.

Em relação à apresentação musical e ao discurso do comandante, o Colégio Dom Pedro II emitiu extensa nota, na qual afirma que a instituição “tem se pautado por valores como disciplina, ordem, moral e boa formação de seus alunos, tendo alcançado resultados que a tornaram uma referência para todo o Brasil, possuindo hoje uma fila de espera de quase 3 mil interessados”.

“Esclarecemos que, na ocasião da formatura citada, foi tratado do descumprimento de uma proibição expressa quanto à reprodução de quaisquer músicas que contivessem conteúdos com apologia à violência e ao uso de drogas e com citações erotizadas ou vulgares, além de coreografias sensualizadas, consideradas, por este comando, como inapropriadas. Sobretudo para as crianças e adolescentes presentes na olimpíada anual e também incompatíveis para com os valores do Colégio Militar Dom Pedro II”, continua o texto.

Ainda segundo o comunicado, “percebendo que apenas trechos da fala foram gravados, selecionados e retransmitidos de forma a causarem percepções parciais e conclusões equivocadas”, a escola comunicou os pais que o comandante iria recebê-los para esclarecimentos.

“Por fim, informamos que em nenhum momento os alunos foram expostos individualmente, tampouco citados nominalmente, até porque não se conhece, por enquanto, a identidade dos responsáveis, estando em apuração, o que poderá ou não culminar em medidas regulamentares. A fala do comandante se resumiu em comunicar que tomou conhecimento do descumprimento da determinação e de que os responsáveis, assim que apurados, seriam notificados, podendo manifestar sua defesa”, conclui o texto.

Assédio sexual
A confusão ocorre em um momento no qual a instituição passa por outro caso de repercussão negativa. Na última semana, foi a público uma denúncia de assédio sexual contra uma adolescente de 13 anos, aluna do Colégio Dom Pedro II. O autor seria um professor de futsal da escola, que é bombeiro reformado.

A corporação confirmou ao Metrópoles que o educador foi demitido por justa causa em 2 de maio. Informou ainda que, tão logo soube da denúncia, em 24 de abril, afastou preventivamente o militar por 15 dias. Porém, mesmo antes de o período terminar, decidiu pela demissão por justa causa, um vez que “o funcionário não detém perfil adequado para permanecer como docente na instituição”.

De Metrópoles