Bolsonaro achou que poderia ‘fazer do Congresso o que quisesse’, diz Gabeira

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(Foto: Divulgação Globo/ João Miguel Júnior )

Os primeiros seis meses do governo Jair Bolsonaro foi marcado, na avaliação do ex-deputado federal e escritor Fernando Gabeira, por um erro de avaliação na relação do Executivo com o Congresso Nacional.

Está em jogo neste modelo presidencialista sem base majoritária formal no Parlamento a própria eficácia da atual gestão, afirma Gabeira. “Não houve inexperiência, houve erro de avaliação. Do jeito que esta se comportando, perde todas (as votações) e acaba virando um governo ineficaz.”

Em entrevista ao Estado, Gabeira, que passou 16 de seus 78 anos no Parlamento, sugere uma mudança de rumo: parceria com bancadas regionais para a aprovação de projetos de interesse nacional e local. Também defende que o presidente adote um diálogo construtivo com os parlamentares para, de fato, não se transformar numa “rainha da Inglaterra”.

Na opinião de Gabeira, nestes seis meses da administração Bolsonaro, “em muitos momentos, os contrapesos e salvaguardas funcionaram evitando que a democracia fosse empobrecida”. Por salvaguardas e contrapesos, cita o próprio Congresso e o Supremo Tribunal Federal.

Ele vê interesse de alas da atual gestão em frear avanços e mudanças comportamentais, mas não acredita que isso terá efeito. “São processos econômicos, sociológicos, culturais. Transcendem o governo”. Por sua vez, diz que o “flerte com a morte” é uma característica de projetos da gestão Bolsonaro. “A liberação das armas, a flexibilização das regras de trânsito, a velocidade nas estradas, a extinção de radares, é um governo que flerta com a morte.”

A seguir, a entrevista:

O que marca até aqui o governo de Jair Bolsonaro e qual perspectiva podemos ter? Em qual rota está o País?
A sensação que tenho é de que estamos ainda constatando como vai ser. Houve aquelas primeiras discussões… se haveria ou não transformações na democracia e se elas eram regressivas, se estávamos caminhando para um ponto ameaçador para a democracia… Tanto a eleição do Bolsonaro como a do (Donald) Trump colocaram essa questão e muitas pessoas continuam confiando nos chamados contrapesos e salvaguardas da democracia. Eu sou uma delas. Observando esses primeiros seis meses, em muitos momentos os contrapesos e salvaguardas funcionaram evitando que a democracia de uma certa maneira fosse empobrecida. Esses contrapesos e salvaguardas são o Congresso, em vários momentos, que recusa as propostas de Bolsonaro por achar que são inadequadas, e também o Supremo Tribunal Federal que, no momento, julgou que a decisão dele era inconstitucional (por unanimidade, o plenário do STF decidiu impedir que Bolsonaro extinga, por decreto, conselhos da administração federal que tenham amparo em lei ).

Bolsonaro sentiu isso. Se você examinar as últimas declarações, elas podem ser um pouco esclarecedoras sobre o momento, sobre esses seis meses. Quando ele diz ‘estão querendo fazer de mim rainha da Inglaterra’, por exemplo. Ninguém está querendo fazer dele a rainha. Ele não percebe que no processo democrático existem limites impostos pelo Parlamento e pela Constituição, que o guardião em tese é o STF. Foi ele quem tomou decisões que atendem ao público dele, que correspondem a promessas de campanha, mas que não são exatamente preparadas e negociadas para uma aprovação. Até o momento, a julgar por isso que ele disse e pelo comportamento do Congresso em alguns casos do Supremo, as salvaguardas estão funcionando e ele está incomodado. A questão indígena tem um peso também. Ele quer que o Ministério da Agricultura demarque terras 1, algo que não era sua função.

Isso foi recusado na Câmara e ele reeditou uma MP nesse sentido. Sabemos que MP recusada não pode ser reeditada na mesma legislatura, então possivelmente vai sofrer outra derrota. Me parece uma tentativa de Bolsonaro aplicar suas posições e promessas. As dificuldades se dão num contexto democrático em que o Congresso acrescenta, critica, barra, e você tem o STF para garantir a constitucionalidade dessas medidas. Agora, o grande tema será a Previdência 2.

Também aconteceu isso. Ele apresentou proposta e ela foi reavaliada, o Congresso ofereceu uma outra alternativa. Nas questões mais ligadas ao liberalismo não há tanta resistência, os projetos são colocados e aperfeiçoados. Onde que há resistência são naqueles projetos que tentam propor medidas bastante conservadoras.

Na relação com o Congresso, Bolsonaro admitiu recentemente “inexperiência” na articulação política e busca um modelo que contemple negociações com os parlamentares. Trata-se de fato de uma correção de rumo ou o governo está se adequando à reação do “sistema”?
Alegar inexperiência é bastante comprometedor. Significa que ele passou muito tempo lá (28 anos) sem analisar exatamente o que se passava, como eram feitas negociações, quais são os pontos que levam um projeto a avançar ou não. Supor que por ter vencido as eleições e por ter base popular, por ter apoio nas redes sociais, você conseguiria fazer do Congresso aquilo que quisesse, não houve inexperiência, houve erro de avaliação. E agora o governo está se está ajustando à nova realidade. Se é que vão ajustar, porque na verdade o Congresso percebeu também um certo vazio que não é baseado apenas na inexperiência de articulação política, mas na fragilidade da base do próprio governo. Os deputados eleitos são muito pouco experientes e forjados em uma época em que são muito voltados para o seu público das redes, o que é interessante do ponto de vista democrático, mas eles têm cometidos muitos erros, um atrás do outro. Existe inexperiência e incompetência da própria base eleita.

Existe mesmo o risco de Bolsonaro se tornar uma rainha da Inglaterra, como ele mesmo disse?
Ele corre o risco de ele próprio se transformar em rainha da Inglaterra. Não está tanto nas mãos do Congresso. A origem é muito mais os erros e a incapacidade dele. Se ele souber e quiser trabalhar com o Congresso, ter vitórias e derrotas, compreender o jogo democrático e fazê-lo amplamente, ele recompõe a importância dele e de alguns temas da campanha. Mas se insistir que o Congresso é tábua rasa onde você pode ter tudo o que quer, ele realmente vai perder todas.

O cientista político Carlos Pereira citou recentemente em artigo que o governo se caracteriza pelo presidencialismo plebiscitário3. O Planalto endossou a convocação de manifestações nas ruas… É uma forma eficaz de pressionar o Parlamento?
Em alguns temas, é possível que o governo e a opinião pública que o apoia atuem juntos para que questões sejam resolvidas. Mas o governo tem que compreender que foi eleito por um grande número de votos e que deputados também foram eleitos. Ele está se dirigindo a um grupo de pessoas eleitas, legitimadas para defender suas posições independente da pressão popular. A pressão no caso das armas, talvez Congresso tenha até posição mais próxima do Bolsonaro, mas o que acontece? Bolsonaro acha que está realizando uma proposta de campanha e que os eleitores dele acreditam nessa opção pelas armas, mas as pesquisas mostram que é diferente. A maioria que votou no Bolsonaro, inclusive com perspectiva de derrotar o PT, não favorece essa visão de liberação das armas. O Congresso, quando resiste, o faz por uma série de razões e baseado também no apoio popular.

O analista Christopher Garman, da Eurasia, diz que Bolsonaro está implementando um governo presidencialista minoritário4. É possível tocar uma agenda no Congresso com esse modelo?
É possível, dependendo de sua capacidade. Não acredito que Bolsonaro tenha capacidade para tocar um governo minoritário. Algumas pessoas com muita capacidade política podem fazê-lo. Qual seria a saída? Buscar em cada grande tema os consensos possíveis, ganhar e perder de acordo com as circunstâncias. Mas ele não busca os grandes consensos e as grandes negociações para fazer com que um governo minoritário vença. Do jeito que esta se comportando, perde todas e acaba virando um governo ineficaz.

Mas pela sua experiência, indo além de vitórias ou derrotas, não era mesmo preciso mudar o modelo de relação entre Executivo e Congresso?

Tenho impressão de que sim. O passado, no governo de coalizão, tal como existiu, é um modelo falido. Agora, o outro modelo é de não negociação. A proposta que tenho é de que o governo faça entendimento com bancadas estaduais ou regiões para contemplá-las e fazer deputados de cada região parceiros de suas propostas. Mas para isso é preciso um projeto nacional, saber o que vai fazer em cada região, e não acredito que Bolsonaro saiba. Ele tem algumas ideias soltas. Você precisa conhecer a realidade das bancadas regionais, o que se passa em Rondônia, no Mato Grosso do Sul, e negociar com conhecimento, entender os temas que tocam os deputados e senadores de cada região. Ver temas nos quais eles seriam parceiros quase compulsórios.

Pouco antes dos seis meses, Bolsonaro passou a falar em candidatura a reeleição, caso não ocorra uma ‘boa reforma política’. Como avalia essa disposição, levando-se em conta avaliação do próprio presidente de que “não há bom governo com má economia”. Além disso, o Banco Central já disse que vivemos interrupção do processo de recuperação da economia. Para citar alguns dados: aumentou de 22,2% para 22,7% o número de domicílios sem renda do trabalho. O número de desempregados, subocupados e disponíveis que não encontram já soma 28,4 milhões 

Acho muito cedo para ele falar em reeleição. A questão econômica é decisiva realmente para a esperança do próprio governo. Mas Bolsonaro afirma que vai ser candidato se não houver reforma política. Afirma que entrou para fazer reforma e como não há reforma ele continua candidato. Então, é muito possível que a reforma política não interesse a ele, já que ele não se manifestou sobre isso com nenhum projeto. Está se comportando como um político tradicional.

Como não tem nenhuma razão para disputar a reeleição, vai dizer que é porque não conseguiu fazer o que gostaria no período. Um argumento puramente retórico. A verdade é que o que vai definir é a economia. Até o momento, eu diria que uma das características do governo dele é o flerte com a morte. A liberação das armas, a flexibilização das regras de trânsito, a velocidade nas estradas, extinção de radares, é um governo que flerta com a morte. Tenho dúvidas que essa característica pode levá-lo muito longe…

A taxa de desaprovação tem crescido desde a posse. O que tem frustrado os eleitores? 
É uma tendência. Há sempre muita expectativa numa eleição populista com promessas de soluções fáceis. Expectativas não são cumpridas, a crise econômica não é superada, então a tendência é realmente cair. O Bolsonaro também não compreendeu perfeitamente a eleição dele. Ele acha que venceu por causa dos grupos mais radicais que o apoiam. E não compreende que houve um eleitorado que transcende esses grupos e rejeitava o PT.

O presidente Bolsonaro é um dos que mais editou decretos – 157 em contagem recente do ‘Estado’. O de armas foi derrubado, o que extinguia conselhos caiu no STF. Como vê esse modelo de politica?
É uma tendência que governos autoritários gostam de fazer. O problema disso é que com existência de Congresso funcionando livremente e existência de um STF que atenda a Constituição, isso não funciona. Pode fazer quantos quiser. Nesse momento, me parece uma tática de mostrar ao eleitorado mais fiel que ele está fazendo o que prometeu na campanha mas que não está conseguindo realizar.

Sérgio Moro entrou como superministro. Hoje, o que representa? 
Representou para o governo uma grande força, o ministro mais popular, mais bem recebido pela população. Ao entrar no governo, ele comunica a força do governo e transfere prestígio. Agora, representando como representou a Lava Jato, ele leva algumas suspeições sobre a operação. O Moro deixa para quem criticou a operação a impressão de que existia uma perspectiva política através da Lava Jato. A associação da Lava Jato com o governo Bolsonaro é o que de pior poderia acontecer com a Lava Jato, embora seja muito boa para o governo. Eu acho que Moro é um capital importante subjetivo. Mas quando for levar na prática as propostas no Congresso, vai encontrar resistência muito grande. Ele pode ser em muitos momentos derrotado, como já foi no caso do Coaf.

Há muitas coisas boas mas muita realmente discutível. E também há um sentimento de corpo ameaçado. É uma resistência que existe também entre os presidentes do Senado e da Câmara, embora não de forma tão virulenta. O (Rodrigo) Maia, por exemplo, já disse que Moro era “funcionário do Bolsonaro”. A sensação que tenho é que existem pessoas atingidas pela Lava Jato, outros solidários aos atingidos e outros com medo de serem atingidos no futuro. Essa massa, essa crítica, dificilmente vai deixar as propostas do Moro como ele gostaria.

O senhor tem uma história fortemente marcada pelos costumes, defesa das minorias. Existe risco de retrocesso real nessa questão?
Existe uma grande tentativa de retrocesso nesse campo dos costumes, mas é uma tentativa que, no meu entender, não vai ser bem-sucedida. De um modo geral, são pessoas que não compreendem como o mundo se desenvolveu até o momento, e como essas forças não dependem muito de ação do governo.

No dia que a ministra “decidiu” que meninos usam azul e meninas usam rosa, fiquei perplexo. Como uma ministra queria determinar, em um país de 200 milhões de habitantes, como as pessoas vão se comportar? A evolução, a mudança de comportamento, são processos econômicos, sociológicos, culturais, que transcendem o governo. Ele pode, em alguns momentos, através da repressão, evitar que isso aconteça, como nos países árabes. Mas são realmente estruturas mais ditatoriais. Nos países mais democráticos, que estão inseridos nas negociações, nos tratados internacionais, é muito difícil você achar que um governo consiga mudar face a das coisas. O que ele faz é um discurso para quem acha que é possível conter avanços, sobretudo evangélicos e pessoas mais conservadoras. Mas é um processo em curso no mundo e não depende tanto da posição do governo.

Bolsonaro parece se alinhar cada vez mais com os evangélicos e se aproximar da ala familiar, ideológica, que já foi até chamada de olavista, em detrimento da área militar, a quem confiou postos estratégicos no início do governo. Como vê isso? 
Acredito que realmente existe essa tendência de avançar um pouco mais nas perspectivas ideológicas, de acreditar mais no grupo familiar. Isso é natural em todos os lugares onde há muita desconfiança. Com incapacidade de articulação grande, desconfiança, você se refugia na família, acho que isso está acontecendo. Existe uma influência muito grande sobre o Bolsonaro de ideais que são da extrema-direita mundial, um nacionalismo exacerbado, uma posição contra imigração, globalização, anti-internacional por achar que isso tudo fere a soberania nacional.

Essa posição existe hoje em alguns países como a Hungria, na extrema-direita da Itália. Mas é um campo muito pequeno. Não creio que as condições que o Brasil vive hoje faz isso poder ir muito adiante. Ao se definir no mundo, o Brasil precisa examinar exatamente onde e como está, o nível de relação com o resto do mundo, o que precisa cumprir, seguir caminhos. Na relação com a China por exemplo, não dá para ter a mesma relação que o Trump tem. A mesma coisa com os árabes. Ele precisa modular seu discurso de acordo com as características do País, das limitações, dos interesses nacionais.

O meio ambiente a educação estiveram no centro de polêmicas, declarações, medidas… Como vê essas duas áreas?
A Educação é uma tragédia porque ele definiu que o problema é a luta contra o marxismo, quando na verdade é outro. Então, a gente está lutando com o problema errado com as pessoas erradas. Isso enfraquece até mesmo a ideia da reforma da previdência. Supor que o País vai crescer apenas com a reforma sem levar em conta a importância de áreas como a educação é um absurdo.

E no meio ambiente?
É uma posição francamente retrógrada. Primeiro negando o aquecimento global, segundo achando que é possível desmatar mais e achando que o caminho do crescimento, da riqueza, é exatamente a destruição do meio ambiente. É uma tragédia. Então, minha visão da Educação e do Meio Ambiente são trágicas.

Qual o significado do caso Queiroz5 para o governo?
É importante não só por causa da divisão do dinheiro entre os funcionários, mas porque configura potencialmente uma ligação com as milícias do Rio de Janeiro. É muito grave.

Do Estadão.