Brasil se abstém em voto sobre saúde sexual e reprodutiva na ONU

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Foto: Eric Baradat | AFP

O governo de Jair Bolsonaro se absteve nesta quarta-feira na votação de trechos de uma resolução da ONU que falava da necessidade de garantir “saúde sexual e reprodutiva” a pessoas afetadas por crises humanitárias. A iniciativa por tentar derrubar tais referências foi do governo de Donald Trump, sem sucesso.

A resolução debatida no Conselho Econômico e Social da ONU se referia a um fortalecimento da coordenação dos trabalhos humanitários internacionais. O UOL apurou que a Casa Branca fez uma pressão importante para obter o apoio do Brasil e, pelo menos, evitar que o Itamaraty apoiasse a proposta original.

O voto ocorreu no mesmo dia em que o jornal Folha de S. Paulo também revelou que diplomatas brasileiros receberam nas últimas semanas instruções do Itamaraty para que, em negociações em foros multilaterais, reiterem “o entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino”.

O debate vem em meio a uma ofensiva do atual governo para desfazer algumas das posições tradicionalmente tomadas pelo Brasil nos últimos 18 anos. Uma das principais delas se refere ao termo gênero, considerado dentro de parte do governo como uma “construção social”.

Mas a transformação da posição do Brasil nos organismos internacionais vai além. Se por alguns meses um debate claro foi travado dentro do governo brasileiro sobre como se comportar em votos nas entidades, a consolidação da posição mais conservadora passou a vigorar nas últimas semanas. E foi amplamente notada por governos estrangeiros e ongs.

Um dos exemplos ficou claro na votação desta quarta-feira. Num dos trechos da resolução, o texto falava da necessidade de garantir acesso a pessoa vítimas de crises humanitárias para serviços de “saúde sexual e saúde reprodutiva”.

Por insistência do governo americano, porém, um texto alternativo foi apresentado, pedindo apenas que “apoio de saúde para salvar vidas” fosse garantido. O temor dos americanos era de que a frase original daria espaço para políticas pró-aborto.

O novo texto ainda alerta que o aborto não faz parte do direito internacional, ainda que se reconheça que existam países com leis domésticas neste sentido.

“A ONU não pode promover o aborto e nem novos direitos reprodutivos e sexuais”, explicou a delegação americana, ao sugerir a emenda ao texto original.

Num segundo trecho da mesma resolução, outra vez um veto a uma referecia à necessidade de que as organizações humanitárias da ONU garantam serviços básicos para populações afetadas, entre eles serviços para assegurar “saúde sexual e saúde reprodutiva”.

Em seu lugar, entram referências como “saúde materna, assim como planejamento familiar voluntário e outras opções para evitar o abordo”.

Votaram pela ideia americana apenas dois países. Outros nove optaram por se abster, entre eles Rússia, Egito, Paquistão, Bielorrúsia e Quênia, além do Brasil.

Mas votaram contra a proposta americana 30 países diferentes, entre eles Uruguai, Venezuela, Coreia, Romênia, Paraguai, Filipinas, Mali, Malta, Mexico, Marrocos, Holanda, Noruega, India, Irlanda, Japão e Luxemburgo.

Ao explicar o voto de abstenção, o governo brasileiro indicou na ONU que estava de acordo com a posição do governo americano de que os conceitos no artigo não eram alvos do direito internacional e que não tinham seu escopo definido. “Nossa preferência, portanto, seria por eliminar essas expressões”, disse a diplomata.

Mas, ao mesmo tempo, apoiar o texto americano acabaria ferindo as leis domésticas do país. A proposta também seria contrária às políticas públicas de acesso à saúde no Brasil. “Portanto, vamos os abster”, disse.

A Romênia, em nome da UE, criticou a iniciativa dos EUA. Num discurso, o bloco indicou que “lamenta profundamente” a emenda americana e diz que ela rompia um tradicional consenso sobre essa resolução. Canadá, Austrália, Reino Unido e Nova Zelândia também insistiram na necessidade de que direitos reprodutivos e sexuais sejam garantidos.

Com a derrota do projeto americano, o Brasil acabou também se abstendo ao ser questionado se aceitaria manter o parágrafo original, que falava explicitamente de direitos reprodutivos e sexuais. Uma vez mais, a posição do Brasil foi derrotada.

Na sala, ao ver o martelo bater para aprovar a resolução final sem voto, muitos aplaudiram. Mas a representante brasileira na sala não seguiu o aplauso geral.

Após a votação, o Brasil voltou a pedir para explicar sua posição. Apesar de se aliar ao consenso final da resolução geral sobre a questão humanitária, o governo de Bolsonaro indicou que se “desassocia” dos parágrafos referentes a saúde sexual e reprodutiva.

O caso da votação deixou os europeus e outros países surpreendidos com a posição brasileira. Mas o caso não é isolado. Há poucos dias, delegados de um país membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU pediram a cooperação do Brasil para fazer uma declaração conjunta sobre temas sociais num dos seminários na sede das Nações Unidas.

Os diplomatas prepararam um texto e submeteram aos diplomatas brasileiros para sua consideração. Mas quando o texto voltou, os negociadores estrangeiros levaram um susto. Ao abrirem o arquivo num email, os termos “igualdade de gênero” tinham sido cortados pelo Brasil.

Os diplomatas estrangeiros, que pediram para não ser identificados, se recusaram a aceitar as sugestões de alteração propostas pelo Brasil e decidiram ir adiante com a declaração ignorando a postura do Brasil.

Mas, para os governos de outros países, o caso escancarou a guinada tomada pelo governo de Jair Bolsonaro nos bastidores da diplomacia internacional. Hoje, como parte dos resultados da posição brasileira, a América Latina já não tem uma posição comum sobre temas de igualdade e mesmo sobre saúde reprodutiva.

No lugar de “igualdade de gênero”, todos os discursos e resoluções apoiadas pelo Brasil devem agora mudar o termo para “igualdade entre homens e mulheres”. No fundo, trata-se de uma orientação sobre determinações biológicas, o que não tem sido apoiado por outros governos ocidentais.

Recentemente, em Nova Iorque, equipes do ministério de Direitos Humanos fizeram discurso em debates, mas sem mencionar o termo “igualdade de gênero”. O novo formato: “igualdade entre homens e mulheres”.

Na Organização Mundial da Saúde, em maio, o Brasil já também se alinhou ao grupo de países mais conservadores, e muitos deles islâmicos, ao falar de direitos reprodutivos.

Mas um outro grande teste da nova posição brasileira vai ocorrer nas próximas semanas. No Conselho de Direitos Humanos da ONU, duas resoluções foram propostas e que citam amplamente temas relacionados a gênero.

O Canadá tabulou um texto sobre violência contra as mulheres, enquanto o México lidera uma resolução para combater a discriminação contra a mulher. O problema: os dois textos estão repletos de menções consideradas como indesejadas pelo governo brasileiro.

No texto canadense, por exemplo, existem várias referências à “igualdade de gênero”. Há ainda trechos que abrem brechas para o aborto. “Direitos Humanos incluem o direito de ter controle e decidir livremente e de forma responsável sobre assuntos relacionados com sexualidade, à saúde sexual e reprodutiva livre de coerção, violência, e integridade do corpo e autonomia”, diz o rascunho do texto, obtido pelo UOL.

Num outro trecho, mais uma polêmica. O texto cita a necessidade de defender “direitos sexuais”. Mas, para o Brasil, existem apenas “direitos reprodutivos”.

Consultados pelo UOL, diplomatas de países europeus lamentaram a guinada brasileira. O temor é de que, pelo peso do país, a nova posição comece a influenciar outros países menores a votar da mesma forma, minando uma tendência dos últimos 20 anos de ampliar direitos, e não reduzi-los.

Falando na condição de anonimato, diplomatas ocidentais ainda alertaram como a nova posição do Brasil pode, no fundo, dar um apoio decisivo para o grupo de países islâmicos.

Por anos, esses países tentaram encontrar mais apoio para frear uma agenda mais progressista no que se refere aos direitos sexuais e da situação da mulher. Mas não tinham votos suficientes.

Agora, sem uma voz ativa do Brasil neste sentido, o temor é de que um silêncio do Itamaraty deixe o espaço aberto para que os islâmicos acabem prevalecendo com sua visão e que, em alguns pontos, haja uma “irônica coincidência de posições”.

No caso da resolução mexicana, diplomatas estrangeiros confirmaram que, por enquanto, o Brasil não se pronunciou. Mas o país latino-americano confirmou que, na única menção ao termo “gênero” no texto, governos como o do Egito, Bahrein e Rússia já solicitaram sua eliminação da resolução como condição para que ela seja aprovada por unanimidade.

O UOL esteve nos debates sobre cada um dos artigos da resolução e presenciou um racha profundo entre diferentes visões de mundo.

Num trecho contestado pelo Paquistão, a diplomata do país com maioria muçulmana explicou que, em sua cultura, os homens sempre deixam as mulheres entrar primeiro em um ônibus. “Não quero perder isso”, disse.

Mas ela foi rebatida por um delegado mexicano, contrário à ideia de que tais medidas signifiquem que existe uma igualdade entre homens e mulheres na sociedade. Para o latino-americano, tal gesto pode ser um sinal ou de que os homens consideram as mulheres como sendo mais frágeis ou simplesmente fazem isso para poder olhar de forma maliciosa para as mulheres subindo as escadas do veículo.

Num outro trecho do debate, os governos da Arábia Saudita, Paquistão, Egito e Irã pediam que o Canadá retirasse de sua resolução sobre a violência contra a mulher uma referência à necessidade de se ter uma educação sexual compreensiva.

O Bahrein também se pronunciou. “Não vemos motivo para colocar isso numa resolução de violência contra mulher”, disse.

Em resposta, o governo da Argentina saiu ao apoio da educação sexual como forma de frear a violência contra a mulher. “Muitos não sabem nem o que é sexo consensual”, disse a diplomata de Buenos Aires durante o encontro.

A posição do Brasil também é alvo de preocupação de ongs e ativistas. “Se antes o Brasil era visto como um negociador sério, cujas posições tinham peso nos debates em esferas como a ONU e OEA, ver nossos diplomatas defendendo posições atrasadas como vincular gênero ao sexo biológico reduzirá demasiadamente a relevância internacional de nossa diplomacia”, disse Camila Asano, coordenadora de programas da Conectas.

“Estaremos com países párias que usam espaços em prol dos direitos humanos para miná-los? A ministra Damares Alves anunciou no início do ano que o Brasil é candidato à reeleição ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Uma postura como essa do Itamaraty vai na contramão do que se é esperando de um país com tais aspirações”, completou Camila Asano.

Gustavo Coutinho, advogado e secretário de Política Sobre Drogas da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), também critica a posição brasileira.

“A posição de entender gênero como sexo biológico vai contra a Constituição Federal e ao entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADI 4275”, disse. “O STF já reconheceu o direito à autodeterminação de gênero, desconstruindo um paradigma biologizante e patologizante”, declarou.

Do UOL