Controlar a pauta e se negar a julgar é o que há de mais autoritário no Supremo
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal adiou o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que estava previsto para esta terça-feira, 25 de junho. Seria a primeira vez que ministros da Corte analisariam o pedido de Lula em meio à crise provocada pela publicação, pelo The Intercept, de mensagens trocadas entre o então juiz Sérgio Moro e os acusadores do petista. A defesa do ex-presidente, preso há mais de um ano em Curitiba condenado por corrupção, havia pedido expressamente que os diálogos fossem incluídos para reforçar seus argumentos de que Moro havia sido parcial e que, por isso, seu julgamento deveria ser anulado.
A decisão de adiar a análise do caso de Lula foi de Gilmar Mendes, o ministro do Supremo que havia meses atrás pedido vistas do processo, ou seja, pediu mais tempo para analisar o que, na prática, lhe dava poder para decidir quando o julgamento seria retomado. Mendes havia recolocado o tema em pauta há duas semanas, já após a eclosão do escândalo do The Intercept, mas nesta segunda voltou atrás. No final do dia, a ministra Cármen Lúcia, presidenta da Segunda Turma a partir desta terça, divulgou nota para rechaçar a informação de que teria partido dela o adiamento ou mesmo a previsão de que o caso ficaria em último na pauta desta terça, numa guerra de versões reveladora da tensão no tribunal a respeito. A defesa do petista reforçou a cobrança para que o caso seja julgado nesta terça, e, de acordo com as algumas interpretações, a magistrada, com sua prerrogativa de presidenta do colegiado, poderia retomar o caso ainda na sessão nesta tarde.
A incerteza e as idas e vindas em torno do tema são emblemáticas daquilo que Mauricio Dieter, professor de Criminologia e Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), chama de “autoritarismo” na pauta do Supremo. Na entrevista abaixo, ele comenta o caso e o impacto do escândalo envolvendo Moro para o futuro da Operação Lava Jato.
Pergunta. Ao que tudo indica a Segunda Turma vai adiar para o segundo semestre o julgamento do habeas corpusdo ex-presidente. Como enxerga? O que está por trás? Querem ganhar tempo?
Resposta. O controle da pauta no STF é o que há de mais autoritário na Corte. Autoritário exatamente no sentido de discricionariedade sem limite. Isso mostra, entre outras coisas, a enorme distância que existe entre os ministros, incapazes de definirem uma agenda consensual para os julgamentos mais importantes do país, subordinando esses assuntos a critérios pessoais, de mera conveniência. É o tipo de disputa de micropoder local, que alguém nunca esperaria em uma Corte que, em tese, deveria ser formada por pessoas com notório saber e reputação ilibada. A pior manifestação do STF nesses casos é o silêncio provocado pelo adiamento, a renúncia em julgar diz muito sobre o lugar que, infelizmente, o STF ocupa hoje. Quanto aos motivos, só resta a especulação. E o que vem à mente não é bom, não dignifica a Corte, porque a única razão para esse adiamento parece ser o receio de não ter as próprias decisões respeitadas.
P. O que se deve esperar do Supremo diante das revelações feitas pelo The Intercept Brasil?
R. Do ponto de vista técnico-jurídico, os processos julgados por juiz que está em conluio com os acusadores são absolutamente nulos. Não há a menor dúvida quanto a isso, conforme as mais elementares lições de direito constitucional, penal e processual penal. Qualquer calouro em direito sabe disso. Entretanto, em matéria penal, o STF se comporta hoje muito mais como um tribunal político; logo, não é coerente tentar antecipar as decisões sob a lógica jurídica, mas dos interesses políticos em disputa.
P. Nesse sentido, é possível antecipar os votos dos ministros da Segunda Turma?
R. O que temos por enquanto são os votos dos ministros Luiz Edson Fachin e Cármen Lucia contrários à concessão do habeas corpus. Mas eles podem voltar atrás e alterar o voto, até porque o contexto era completamente diferente, não havia evidência da inaceitável articulação entre acusação e juiz. Mesmo assim, parece difícil que o ministro Fachin volte atrás, pois ele já deu uma declaração pública de que a Lava Jato é sólida, insuscetível de retrocesso. Por outro lado, nas novas conversas que vieram a público, o ministro Teori Zavascki foi tratado de modo claramente depreciativo; pode ser que a lembrança do ministro, de sua seriedade e honradez na Corte e dos excessos da operação que criticou à época, possam motivar a revisão dos votos já proferidos. Nós não sabemos como essas emoções podem influir decisões na prática, mas certamente elas estarão presentes.
De qualquer forma, o ministro Ricardo Lewandowski deve seguir suas posições, as quais entendo corretas do ponto de vista técnico, e votar a favor. Assim como o ministro Gilmar Mendes, até porque ele tem sido uma das principais vozes contra o absurdo que se pretende normalizar na Lava Jato, inclusive comparando a força-tarefa às ações de gângsters no plenário da Corte. Já em relação ao ministro Celso de Mello, é muito difícil tentar antever sua decisão: por um lado ele frequentemente endossou decisões da operação, algumas não pouco controversas; por outro, sempre foi um exemplo de retidão quando historicamente convocado pelas circunstâncias. Enfim, acho que teremos um 3 a 2, com tendência para soltar.
P. É comum um tribunal determinar a suspeição de um juiz e anular um processo?
R. O corporativismo do judiciário é muito forte, à semelhança da maioria das instituições tradicionais. No Brasil só existe suspeição se o próprio juiz do caso reconhecer. Senão, esqueça. Além das hipóteses previstas na lei, você percebe a parcialidade quando um juiz está continuamente indeferindo suas perguntas, negando seus pedidos durante a instrução, tudo isso enquanto mantém uma atitude generosa com a acusação… E a partir disso as defesas que se sentem prejudicadas por uma atitude aparentemente enviesada apresentam um recurso chamado Exceção de Suspeição. Mas como advogado nunca vi uma Exceção de Suspeição ser reconhecida, e só vi apenas um habeas corpus julgado procedente e anulado o processo por atuação parcial do magistrado.
Mas neste caso é diferente. A evidência é muita e muito forte. Se o Supremo não anular, estaria negando explicitamente o que está escrito na Constituição e no Código de Processo Penal. Em que momentos da História se viu e comprovou um caso tão óbvio de parcialidade, no qual o juiz de fato dá conselhos à acusação para otimizar seu trabalho? A evidência está toda ali. Não se trata, ao menos de início, de anular toda a Lava Jato de uma só vez, já que isso envolve outros atores. Em princípio você só poderia anular os processos que tiverem relação com as conversas publicadas — embora, se o país fosse mais comprometido com os valores republicanos, toda a atuação do então juiz Moro nesse período e com esses procuradores teria que ser anulada. E ser anulado, aqui, significa que teria de ser refeito, dessa vez conforme a lei e a Constituição.
P. Moro e seus apoiadores argumentam que a condenação de Lula foi referendada por tribunais superiores, e que por isso não deve haver nulidade.
R. A convalidação posterior não transforma os erros do processo em acertos. Desde o início havia um vício oculto — nesse caso nem tão oculto assim, como provam as alegações de inúmeros professores e advogados à época. Quando se descobre esse vício, como aconteceu agora, não importa em que fase o processo está. Mesmo tendo transitado em julgado, não importa. Ao Direito interessa mais a lisura do processo do que acertar o caso, no sentido de descobrir o que realmente aconteceu, se o que aconteceu é crime e se o acusado é culpado. Porque se não for assim, os fins justificam os meios. Voltamos a um utilitarismo rasteiro que prescinde de controle legal. O Processo Penal é, de certa forma, a disciplina de si mesmo, isto é, existe processo para garantir que se respeitem as regras do processo. Para o Direito, tanto os fins como os meios têm que ser legítimos. E se os meios são ilegítimos, a convalidação posterior dos fins pouco importa. Isso é elementar.
P. O que se tem até agora são as mensagens divulgadas pelo The Intercept, pela Folha de S. Paulo e pelo jornalista Reinaldo Azevedo em seu programa na rádio Bandnews FM. Se for comprovado que elas foram interceptadas ilegalmente isso pode afetar o entendimento do Supremo?
R. Provas ilícitas não podem ser utilizadas para incriminar alguém, mas podem ser utilizadas, e devem ser utilizadas, se determinarem a absolvição do acusado. Se você consegue provar por meio de um hacker que na noite de um estupro você não estava no mesmo lugar que a vítima, você pode até ser processado pela violação do sigilo necessária para tanto, mas você tem que ser inocentado pela Justiça. Entre outros motivos porque a Constituição assegura ampla defesa, não ampla acusação. Isso significa que você pode se defender por todos os meios, inclusive meios que são proibidos ao acusador. Ao usar meios ilícitos para isso, evidentemente, você pode eventualmente ser julgado por isso. Mas não é o caso de Lula, por exemplo, que não foi o responsável por interceptar as mensagens nem por divulgá-las.
Além disso, a imprensa tem sigilo de fonte, então pouco importa para Lula como o Intercept obteve as mensagens. E pouco importa para o Intercept qual é a legalidade disso. Quando a imprensa divulga essas mensagens como notícias, ela cria um fato que autoriza uma investigação contra Moro, Deltan e todos os demais citados. Essa investigação futura não parte do hackeamento, se é que houve, mas sim da notícia do Intercept. Assim operava, aliás, a própria Lava Jato: a partir de notícias, algumas das quais plantadas, que pudessem justificar a abertura de um inquérito ou de um procedimento de investigação.
P. Não é preciso então esperar uma investigação para apurar a veracidade das mensagens e o conluio? O conteúdo publicado pela imprensa basta para anular a condenação de Lula?
R. A investigação é irrelevante, em princípio. Exceto se for evidente que se trata de uma fraude e que essas conversas não existiram, Lula tem que ser solto imediatamente. Mas o ministro Moro não nega que o material exista e não consegue negar a veracidade dos diálogos de maneira convincente. Pelo contrário: cada vez mais admite, ainda que sem querer, que o que está lá é fiel aos fatos. Ele só tem apresentado uma defesa escalonada ao dizer que “não são autênticos, se são autênticos não importa, se importa não era ilícito, se são ilícitos não importa porque era em nome do combate a corrupção”. É uma estratégia dominó: se uma peça cai, as outras caem, e é o que estamos vendo. O Supremo já tem condições de soltar Lula imediatamente. Porque o erro de manter alguém preso, se essas evidências são verdadeiras, é irreparável, e porque toda presunção deve operar em favor do réu, acusado ou condenado. Além disso, o fato de Moro dizer que é normal esse tipo de relação com procuradores já não é evidência suficiente de que ele foi um juiz parcial? Como assim ele não vê nada demais nas mensagens? Só por dizer isso penso que demonstrou parcialidade declarada. É algo inaceitável para um magistrado ético e técnico ter que ouvir que isso é normal: é o contrário do normal, é a pura violação de seu dever.
P. Apesar de as mensagens indicarem parcialidade, as provas contra Lula se sustentam?
R. Lula foi basicamente condenado por uma delação que nem sequer apareceu como delação no processo. Apareceu como colaboração informal de um corréu. O então juiz Moro violou quase todos os princípios processuais para produzir as provas contra o ex-presidente. Porque prova é algo produzido em contraditório, assegurada ampla defesa, perante um juiz imparcial, competente e natural, isto é, definido em lei antes do processo… Mas agora o Brasil inteiro sabe que as alegações da defesa eram reais: que Moro não foi imparcial, que aconselhava ativamente um dos lados e que, segundo o que foi revelado pela Folha de S. Paulo, chegou a modular níveis de sigilo para evitar a perda de competência para o STF, repreendendo os agentes da Polícia Federal que não souberam guardar o indevido segredo. Por isso entendo que não, as provas não ficam em pé: foram construídas sobre o lodaçal do desrespeito ao devido processo legal.
P. Enxerga algum saldo positivo da Lava Jato?
R. A Lava Jato conseguiu de fato produzir certa ruptura em um tipo de corrupção consolidada como prática, um esquema de propinas vulgar, escancarado, a ponto de serem pagas em parcelas e de modo caricato. Explicitar isso foi importante, não tenho dúvida, até para podermos pensar em meios legítimos para evitar a reprodução dessas práticas no futuro. Em outro sentido, o saldo político da Lava Jato é horrível. O apelo simplista por mudança e toda essa histeria messiânica trouxe consigo o autoritarismo e o obscurantismo como posição política legítima.
P. Qual legado a Lava Jato deixa para o combate a corrupção? Por estar sendo hoje questionada, isso pode afetar futuramente outros processos?
R. A grande questão é: de que maneira você quer combater a corrupção, dentro ou fora da regra do jogo? Vale tudo? A Lava Jato pode ter ensinado, querendo ou não, que é necessário fazer o jogo dos corruptos para lutar contra a corrupção. Afinal, a alegação era de que o interesse público era contaminado por interesses privados em operações com a Petrobras. Mas o Intercept comprovou que existiam também interesses privados, políticos e ideológicos na Lava Jato, que contaminavam o interesse público na apuração rigorosa e imparcial dos fatos. Qual é a diferença, do ponto de vista moral? É muito difícil enfrentar gente poderosa e corrupta respeitando as regras do jogo. Ok. Mas é só isso que nós temos, ou seremos iguais a eles.
P. O STF vai julgar o próximo habeas corpus de Lula com uma imagem desgastada. Isso é resultado do quê?
R. O que o STF não percebeu é que quanto mais você politiza a Corte, mas você a torna suscetível às flutuações da opinião pública. Se o STF, em matéria penal e processual penal, tivesse seguido a literalidade constitucional, as pessoas poderiam não gostar de determinada decisão, mas elas reconheceriam o lugar de onde essas decisões vieram. Mas quando os ministros afirmam, contra o que diz com todas as letras o texto constitucional, que a pessoa pode sim começar a cumprir a pena antes do trânsito em julgado, que é possível criminalização por analogia em função de omissão legislativa, que condenados estão proibidos de dar entrevista… Qual é o limite? O que queremos é um STF fiel à Constituição, com votos cada vez mais técnicos e menos preocupados com frases de efeito que possam gerar repercussão positiva na TV Justiça. Hoje a classe política não consegue fazer nada sem a anuência do Ministério Público e do Judiciário. Ambos têm que voltar para os seus lugares de origem, para o bem da democracia.
P. O que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) podem fazer com relação a Moro e aos procuradores?
R. O CNJ não pode fazer nada [porque Moro deixou a magistratura]. O CNMP, sim. Ele já está em cima dos procuradores. Mas vai depender muito do que vier. Se é verdade que existem áudios interceptados, quando ouvirmos a voz de certos personagens acho que a ficha vai cair definitivamente, até para os mais incrédulos ou muito radicais.
Do El País