Nas telas, duas histórias passam a democracia a limpo
Dois filmes brasileiros diagnosticam a democracia.
Coincidentemente, ambos estrearam no mesmo dia, num período em que o prognóstico do sistema político ainda está em debate.
Nas telonas, Deslembro, lindo e tocante filme que retrata a redemocratização, a volta do exílio, a readaptação de famílias que perderam tudo, atravessaram em fuga por outros países e tentam um recomeço num novo Brasil.
Narrado sob o ponto de vista da inocência de uma adolescente (atenção à atriz Jeanne Boudier).
É raro ver bons filmes sobre a ditadura brasileira, sutis, que mostrem mais o clima que a ação, que não tratem a luta como o combate maniqueísta entre o bem e o mal.
Deslembro é um filme feminino, de Flávia Castro, com equipe feminina, que lembra a profundidade e a valorização dos detalhes à imagem e som de Lucrécia Martel.
É uma história quase real, sobre uma mãe brasileira, cujo primeiro marido é um desaparecido político, que vê o novo marido, chileno, embarcar numa luta revolucionária inglória com o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), no começo dos anos 1980, quando estava evidente que tudo estava perdido, e que a frente de batalha era outra, a da não-violência.
https://www.youtube.com/watch?v=iOqRs81YdeU
Já no streaming, Netflix, o timing para o lançamento de Democracia em Vertigem, de Petra Costa, não poderia ser melhor.
Afinal, o que domina o noticiário hoje é plot do filme que vai da fundação de Brasília, passa pelo nebuloso ano de 2013, impeachment, e vai até a prisão de Lula: a forma questionável de como Moro com o Congresso, STF e pressão da sociedade derrubou o governo petista e prendeu o ex-presidente.
Se a economia estivesse bem, tirariam Dilma?
Aliás, parecendo profético, aparece Moro, enquanto juiz ainda, no Senado, sendo questionado sobre a imparcialidade dos seus atos e julgamento.
Petra é a pessoa ideal para um filme tão sensível, impactante, que trata pelo viés emocional o Brasil que nunca tínhamos visto antes: dividido, tenso, desesperado, irracional, raivoso, à beira de uma guerra civil.
Lá estão brasileiros se batendo na rua por conta da cor da camisa, ou melhor, da simpatia, fé, ideologia.
Sem a menor disposição para um diálogo político construtivo, o ódio dominou a todos. A intolerância foi a regra, não mais a exceção.
Não era a sociedade civil defendendo direitos contra o aparelho repressivo de um Estado autoritário. Era a sociedade lutando entre si, amigos e familiares se evitando, rompendo relações, e o Estado separando-os.
Por que Petra é a pessoa ideal? Porque sua família era membro ativo nos dois lados.
Seu avô Andrade é fundador da construtora Andrade Gutierres, grupo que esteve na linha de investigação da Lava Jato.
Seus primos, da tradicional família mineira, defensores do impeachment e prisão de Lula, tornaram-se bolsonaristas convictos.
Um parente seu se casou com a família Aécio.
Marília, a mãe de Petra, foi da luta armada nos anos 1960, caiu na clandestinidade com o irmão Flávio, chegou a ser presa no mesmo presídio de Dilma (Tiradentes), esteve na fundação do PT e é amiga pessoal de Lula.
No mais, Petra nasceu junto com a redemocratização em 1985 e votou pela primeira vez justamente na primeira eleição bem-sucedida à presidência de Lula.
Petra vai ser acusada de complacente com o PT, de excessivamente crítica por petistas, e sempre vai ter alguém a palpitar e reclamar que o filme de duas horas deixou de mostrar isso ou aquilo.
Nada disso. Mostrou todo o bastidor do impeachment e prisão de Lula, mostrou incríveis imagens que seu avô fez da construção de Brasília.
Mostrou uma tocante Dilma na intimidade, sufocada pela tensão, relatando como fazia para suportar a tortura e que sente saudades do tempo da clandestinidade: “Tão bom ser anônima, não é?”
Suas imagens da moradia presidencial vazia são a prova do isolamento e solidão do Poder.
Num take, descobre placas de agradecimento a construtoras por renovarem o prédio em dois períodos, Collor e Lula.
Num take, entende-se o Brasil e relação a promíscua entre poder e capital.
Nas duas placas, as mesmas construtoras, entre elas, a da família.
Enfim aparece Gilberto Carvalho, conselheiro de Lula e Dilma (Secretaria Geral da Presidência), fazendo a autocrítica tão cara ao núcleo petista: afirma que erraram ao largar a essência do partido e se aliar ao podre da política brasileira, sem combater o mecanismo da corrupção.
É um filme que não sai da cabeça.
https://www.youtube.com/watch?v=vwZ5m10y1rQ
De Estadão