Venezuelanos presos por homicídio em RR continuam presos após polícia descobrir verdadeiro assassino
A Polícia Civil de Roraima já solucionou o assassinato de um empresário brasileiro em Boa Vista, ocorrido no último domingo. Mesmo assim, dois venezuelanos detidos como suspeitos pelo serviço de inteligência da Polícia Militar continuam presos, desta vez sob acusação de roubo. Para especialistas, a pressão social para elucidar o crime somada à onda de xenofobia no estado, que vem recebendo milhares de venezuelanos que fogem da crise no país, resultou na prisão apressada dos imigrantes.
Na manhã de domingo, Antônio Coelho de Brito, de 69 anos, foi encontrado morto em seu galpão no bairro Pricumã, zona oeste da capital, região onde há muitos venezuelanos morando, principalmente nas ruas. A vítima tinha sido atingida por golpes de pá na cabeça. Imagens das câmeras de segurança, que viralizaram nas redes sociais, mostravam os dois imigrantes caminhando a poucos metros do galpão. Yorbi Moises Ponce Dias, de 31 anos, e César Luis Servilla Casneiro, de 17, foram presos pelo Batalhão de Operações Especiais no mesmo dia.
Mas uma análise mais atenta das imagens levou à prisão do pintor Eriton Leitão Brandão, na terça-feira passada. Segundo Eriton, Antônio o encontrou dormindo no galpão, os dois brigaram e ele atingiu o empresário com a pá. O pintor ainda tentou fugir em um caminhão, mas como o veículo não funcionava, se refugiou na casa de um amigo dizendo ter sido assaltado. O pintor foi preso na terça-feira na loja em que trabalhava pelos agentes de inteligência. Na casa do amigo, encontraram a camisa usada no dia do crime em um saco escondido — a mesma que aparece nas imagens.
Segundo o comandante da PM no estado, coronel Elias Santana, era necessário “dar uma resposta social para a barbárie do crime praticado”.
— No domingo, não tínhamos como acessar outras câmeras de segurança. Na segunda, obtivemos inúmeras imagens para solução do caso — explicou.
Para um funcionário do Departamento de Inteligência Civil, que pediu para não ser identificado, os agentes “se afobaram”, “quiseram solucionar o caso de forma rápida, mas acabaram tropeçando”.
— Até então, não havia outras imagens. Fomos atrás, e achamos algumas — contou a fonte, acrescentando que os vídeos que circularam nas redes sociais exibiam os venezuelanos apenas de um ângulo. — As imagens que obtivemos na investigação mostraram outro ponto de vista, e descobrimos que eles passaram pelo galpão, mas não entraram. Nos primeiros vídeos, tinha um ponto cego — explicou o agente.
Na Central de Flagrantes, Yorbi Moises e Cesar Luis foram cercados por equipes de TV que divulgaram maciçamente as imagens dos dois imigrantes como os assassinos do empresário. Eles foram autuados em flagrante por latrocínio, roubo seguido de morte, pela delegada Eliane Gonçalves. Na quarta-feira, ela explicou a confusão das imagens.
— Só temos eles ali. E a cena do crime demonstra que a vítima foi morta assim que chegou ao local, minutos depois que eles passam pela câmera — justificou a delegada, acrescentando que “minutos antes” de os venezuelanos serem filmados próximo ao local, aparece Eriton correndo.
Entretanto, o vídeo mostra que o registro da imagem de Eriton foi feito as 5h04, e os imigrantes são filmados as 6h04. A diferença é de uma hora, e não de minutos. Segundo ela, o pintor dormia no galpão até a chegada da vítima, às 6h13.
— O empresário chegou ao local, encontrou Eriton dormindo e o agrediu com um pedaço de madeira, achando que ele queria roubar. Iniciaram uma briga e, o suspeito acabou o matando a vítima com uma pá. “Seu Antônio” achava que se tratava de mais um venezuelano, porque estava saturado de pessoas dormindo no local — esclareceu a delegada.
De acordo com Eliane Gonçalves, mais cedo, Eriton e os dois venezuelanos estavam bebendo juntos, e o brasileiro foi roubado pelos imigrantes.
— Eles levaram Eriton para uma rua escura onde o agrediram e roubaram o celular. Por isso Eriton surge correndo nas imagens. Para não apanhar mais, ele corre e se esconde no galpão. Ele confessou o crime. A morte do idoso foi uma fatalidade — contou.
Apesar de o assassinato ter sido esclarecido, os venezuelanos continuarão presos, acusados de roubar o celular de Eriton. Mas no relatório policial, na descrição de objetos apreendidos com os dois constam apenas um relógio e uma carteira.
Para o advogado criminalista André Villoria, a permanência na prisão é injusta.
– Era para eles terem sido soltos imediatamente. A delegada não pode converter a prisão em flagrante de homicídio para roubo. Eles podem ser investigados, processados, mas não presos em flagrante. Estão querendo justificar um erro das polícias — afirmou.
Para o sociólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Roraima Linoberg Almeida, quando o Estado não se faz presente, é preciso achar um culpado. A reviravolta no caso, segundo o professor, é peça de um quebra-cabeças em que o silêncio estatal, o oportunismo político-eleitoral, a falta de uma política pública de fronteira adequada em tempos de crise estão em um caldeirão de conflitos latentes e uma fogueira de vaidades perigosa.
— Governos e poderes de todos os níveis estão “brincando com fogo”. Xenofobia é consequência grave se não nos educarmos como sociedade para lidar com o espelho e a nossa imagem refletida nele — sustenta.
Os pedidos de refúgio para o Brasil mais do que dobraram em 2018. Ano passado, o país recebeu 80 mil novas solicitações. Em 2017, foram 33.800, segundo dados do relatório “Tendências Globais”, divulgado na quarta-feira pela Agência da Onu para refugiados (Acnur).
Desta vez, o destaque é puxado pelas crescentes solicitações de venezuelanos. Eles representam mais de três quartos dos pedidos ao Brasil. Das 80 mil solicitações, 61.600 vieram de venezuelanos, em que a maioria entra pelo Brasil na fronteira de Roraima.
O Brasil tem 11.327 refugiados reconhecidos. Na espera, o número é dez vezes maior: 152.690 pessoas aguardam respostas de seus processos.
De O Globo