Antropóloga critica governo em relação às culturas indígenas
A antropóloga Aparecida Vilaça, pesquisadora do Museu Nacional do Rio e autora de Paletó e Eu (Todavia), abriu a programação da 17.ª Festa Literária Internacional de Paraty nesta quinta-feira, 11, com um relato sobre sua relação com Paletó, indígena da etnia Wari’, que além de ser parte da sua pesquisa antropológica a adotou como filha.
A pesquisadora ainda criticou os retrocessos nas políticas de preservação das culturas indígenas e comentou os esforços dos profissionais do Museu Nacional para a reconstrução da biblioteca de antropologia da instituição – a maior da América Latina até o incêndio, em setembro de 2018.
“A luta pelos povos indígenas não é só dos antropólogos e dos próprios indígenas, é de todos nós”, disse para uma Tenda dos Autores lotada.
“Se não tivermos diversidade, morremos. O mundo só de gente igual não existe, é ruim, é chato, é pobre. Não são os indígenas que devem vir para cá, somos nós que temos nos civilizar com eles. Suas sociedades são autossuficientes, têm uma capacidade de preservação milenar de rituais, famílias e organizações sociais. Se nós tiramos sua terra, os evangelizamos e os matamos, nós é que perdemos”, disse, para aplausos dentro e fora da Praça da Matriz, em Paraty, onde a Festa é realizada.
A Flip ocorre até o próximo domingo, dia 14, com discussões sobre Euclides da Cunha, o homenageado desta edição, literatura, sociedade, arquitetura e outros assuntos, dentro e fora da programação principal. Mais de uma dezena de casas parceiras realizam uma programação gratuita na cidade, e as mesas do programa principal são transmitidas ao vivo no canal do Youtube da Flip.
Na conversa medida pelo jornalista e editor Paulo Roberto Pires, a antropóloga também comentou o incêndio do Museu Nacional do Rio, na Quinta da Boa Vista, em setembro passado – fato que ela já comparou a uma auto-imolação, “de alguém botando fogo no próprio corpo como punição”.
“Foi uma desgraça para todos os brasileiros. Era um dos museus mais frequentados do Rio, todo mundo já visitou, tinha uma coleção riquíssima que foi completamente destruída”, lamentou. “Ficamos em estado de choque. Foi resultado de um descaso público. Já se pedia há décadas verbas públicas para o estado, para o governo federal, e não chegavam. A gente sabia que o museu precisava de uma reforma por conta das instalações antigas. Preciosidades que estavam lá dentro, como coleções de mais de século de itens indígenas e zoológicas, jamais vamos conseguir repor. Agora somos desabrigados tentando reconstruir nossa biblioteca de antropologia, que era a maior da América Latina.”
Boa parte do papo, mais curto do que costume nas Flips até aqui (45 minutos), porém, foi centrada na história de seu livro mais recente, Paletó e Eu, em que ela descreve a experiência de conviver com Paletó, seu pai indígena. Eles se conheceram em uma expedição da antropóloga a Rondônia para estudar a etnia Wari’, e desenvolveram uma relação próxima que durou até o fim da vida dele, em 2017.
O livro foi então uma maneira de ela tratar seu próprio luto – e também utilizar seu conhecimento acadêmico de uma forma mais direcionada para o público leigo. “Paletó era um intelectual, um pensador completamente aberto a novidades. Para mim, essa relação não foi apenas de descoberta da vida dos Wari’, mas também de redescoberta da minha própria vida na cidade, porque quando ele vinha, ele questionava meu mundo e minhas concepções. Além disso, era super bem humorado, embora tenha passado por momentos trágicos”, explicou.
O apelido lhe foi dado porque a etnia Wari’, antes do contato com não-indígenas, não utilizava roupas. Após os primeiros contatos, ele continuava se recusando a utilizá-las até que conheceu um paletó, adorou e passou a utilizar a peça – apenas ela.
Aparecida criticou as posições do governo federal, amplamente contrárias à preservação e demarcação de terras indígenas.
“Os indígenas viraram alvos novamente. É um retrocesso absoluto, parece que estamos voltando aos anos 1960, onde os direitos garantidos pela Constituição de 1988 estão sendo ameaçados. Embora haja uma certa confusão de decretos, que vão e voltam, e felizmente o congresso tenha sido atuante em não deixar passar algumas medidas, só a manifestação dos membros do governo, o desprezo pela cultura indígena e o interesse manifesto em deixar agricultura e mineração de grande porte tomar essas áreas, já autoriza as pessoas a invadirem as terras”, comentou.
Como mensagem final, e com certo receio de soar piegas, nas suas palavras, disse: “temos que amar a diversidade”.
“Precisamos abrir a mente e o coração para essa diversidade, entender que existe ali uma riqueza incrível. Que não é só artesanato, danças. Eles são intelectuais. Se eles estivessem aqui, estariam ganhando Prêmio Nobel. Temos muito a aprender com eles. O que podemos fazer, no mínimo, é abrir o coração, porque na hora que tivermos essas pessoas no coração e na mente, seremos atuantes na preservação.”
Do Estadão