Um crime não tira do preso seu direito à dignidade

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Leia a coluna de Rogerio Schietti Cruz, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, mestre e doutor em direito processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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Pequenas humilhações

Cena de mau gosto ocorreu há algumas semanas: um homem de 77 anos, enfraquecido, saía de um hospital, em uma cadeira de rodas, acompanhado por enfermeiros. Cumpria-se ordem de retorno a presídio onde agora está recolhido, sob prisão preventiva, após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que lhe negou habeas corpus.

À porta do hospital, ele é amparado e auxiliado a levantar-se para entrar na viatura. Nesse momento cercam-no vários policiais fortemente armados, vestidos com trajes típicos de operações especiais. Abre-se a mala da viatura e ali é “depositado” o interno, que, em notório esforço, curva-se todo para poder caber no compartimento, utilizado, em automóveis quaisquer, para o transporte de objetos em geral.

O homem referido é João de Deus, acusado de bárbaros crimes. Mas poderia ser João da Silva. Porque, na verdade, não parece ser um episódio isolado; ocorre a todo momento e por todo o país, embora não pareçam gerar incômodos, mormente quando a acusação se refere à prática de crimes gravíssimos.

Cenas assim, porém, constrangem. Constrangem não apenas o conduzido, mas todo o sistema de justiça criminal, assentado sobre regras e princípios que não admitem o tratamento do preso —provisório ou definitivo— de modo humilhante.

Não mais estamos em tempos pré-modernos, quando pessoas presas eram transportadas em gaiolas expostas à execração pública. As viaturas modernas, automóveis chamados entre nós de “camburões”, não podem prestar-se a igual simbologia.

O preso, quando transportado, não pode ser submetido a sacrifícios ou sofrimentos físicos desnecessários. Quem o diz é a regra 45.2 das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, da ONU, e também o artigo 30 das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos no Brasil (Resolução nº 14, de 11 de novembro de 1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária).

Talvez isso ainda ocorra porque não há a geral percepção de que, independentemente das regras aplicáveis, o procedimento é incorreto e desnecessário.

Uma pessoa presa não perde a titularidade de todos os seus direitos. Continua a gozar do direito à dignidade, à honra, à integridade física e moral, por mais grave e abjeto que tenha sido o crime a ela atribuído.

O Estado é responsável pela custódia e pela proteção do preso. Se o preso for provisório, e ainda mais, como na hipótese, idoso e fisicamente frágil, o cuidado há de ser redobrado.

Qual o sentido de colocar uma pessoa de 77 anos, que acaba de sair de um hospital onde se tratou de comorbidades durante dois meses, dentro do porta-malas de uma viatura policial? Por que outros presos, em condições melhores, são transportados no banco traseiro da viatura, ao lado de dois policiais? E para quê todo o aparato bélico? Há riscos de fuga, de linchamento? O preso transportado é muito perigoso e põe sob risco a integridade física dos circunstantes ou dos policiais, se estes portarem só suas armas usuais?

Deveríamos refletir mais sobre isso. Deveríamos refrear desejos de punição antecipada e simbólica, amiúde estimulados em programas midiáticos de duvidoso gosto, mas de elevados índices de audiência, que expõem, de maneira abusiva, pessoas detidas, antecipando um julgamento que somente há de ser feito no processo e pelo juiz competente.

Em uma sociedade que se pretende democrática, civilizada, livre, segura e ordeira não deveriam ser comuns arbitrariedades como invasões de domicílio sem mandado judicial e sem justa causa (invariavelmente em bairros pobres), revistas pessoais rotineiras sobre grupos vulneráveis (pela condição social ou pela cor da pele), métodos ilícitos de obtenção de provas em investigações e processos, sem falar de coisas ainda mais graves, como tortura de presos ou execução de criminosos após sua rendição.

Atribui-se a Nelson Mandela um pensamento bem oportuno: “Uma nação não pode ser julgada pela maneira como trata seus cidadãos mais ilustres, e sim pelo tratamento dado aos mais marginalizados: seus presos”.

Talvez seja minúscula a preocupação com o simples transporte inadequado de um preso idoso, mas as pequenas mudanças de hábitos no agir estatal, que na sua existência cotidiana carrega o status civilizatório, são as mais fáceis de ocorrer. Ou não?

Da FSP