Malunguinho: População trans ainda luta pelo direito à vida
O gabinete da deputada Erica Malunguinho (Psol) é um espaço dissonante no segundo andar da Assembleia Legislativa de São Paulo. Quem anda pelos extensos corredores vê, uma após outra, fotos de figuras masculinas fixadas às portas das salas dos deputados. Quando se chega ao gabinete da primeira parlamentar transexual da Casa, não apenas a imagem à entrada é diferente. Abrir a porta revela um ambiente tomado por pessoas jovens que trocam conversas e risadas enquanto trabalham em frente aos computadores. A maioria é de mulheres, mas há homens também.
Erica chegou à Alesp levantando temas que não são sistematicamente discutidos naquele espaço e colocando raça e gênero como centro de sua atuação. O cartaz pregado atrás da porta de seu gabinete lembra o lançamento da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, que, proposta pela deputada com a finalidade de discutir diversos aspectos da vida dessa população, está em funcionamento desde junho.
Natural de Recife, pedagoga por formação e mestre em estética e história da arte, a deputada diz que estar entre as pessoas – sobretudo a população “que foi empobrecida, majoritariamente negra e que luta por terra e território, direito à alimentação e à vida” – é o que dá sentido a seu trabalho. Neste momento, ela se prepara para dar o start na Frente de Defesa da População em Situação de Rua, a ser lançada na próxima quarta-feira, 7.
Sua trajetória até a Assembleia é marcada pela construção de espaços de discussão coletiva como o Aparelha Luzia, na região central de São Paulo. O centro cultural e político, criado e coordenado por Erica, foi idealizado enquanto quilombo urbano onde a população negra pode se encontrar e fazer circular suas ideias em forma de artes plásticas, música, cinema e debates.
Em entrevista à Agência Pública, Malunguinho falou sobre seus primeiros meses na Alesp – e fez questão de se referir ao coletivo de deputadas e deputados como “elxs” – e sobre o governo de João Doria (PSDB) e discutiu a atual situação da esquerda, que, em sua avaliação, se distanciou das pessoas. “Classe é uma consequência de raça em territórios como o Brasil, e esse debate precisa ser fundamento e não recorte. Não pensar em raça como um vetor determinante para as desigualdades nos fragiliza e constantemente nos distancia da maioria da população.”
Como têm sido estes primeiros meses de mandato na Alesp?
Temos dados, dos quais todo mundo é ciente, de que se trata de um parlamento como todos no Brasil: majoritariamente masculino e branco. Esse dados estão atrelados a uma construção histórica em que sabemos configurar situações de violência, opressão e apagamento de tudo que não é correspondente a essas identidades. Uma parte importante de ressaltar, para além disso, é que aqui existem humanidades, pessoas que têm uma proximidade do ponto de vista político, filosófico ou de humanidade – aí estou falando de deputadxs principalmente do campo progressista, mas não só. Outra parte é de pessoas que fazem com que a Assembleia Legislativa esteja de pé, funcionários diversos, do administrativo à TV Alesp, e tem muita gente que foge a essa regra que faz com que esse lugar pareça tão opressor. Tem muita gente acolhedora, que vem de diversos lugares e pensa diferente desse modo operante.
E do ponto de vista político?
Do ponto de vista político, posso dizer que temos todos os entraves possíveis. Existe a exacerbação constante do militarismo, de um conceito de segurança pública muito mais na perspectiva de militarizar, construir mais opressão e potencializar ainda mais a guerra que já existe do que pensar humanamente a segurança pública atrelada à educação, à saúde, ao direito à cidade etc. Em relação às violências de gênero, houve um [episódio] que passou por mim: a fala de um deputado extremamente transfóbica e violenta [em abril, Douglas Garcia, do PSL, afirmou que, se sua mãe ou irmã estivessem em um banheiro com “um homem que se sente mulher”, ele a tiraria de lá a tapas]. O lado positivo foi que a maioria dxs deputadxs se manifestou contra, foi aberto um processo por quebra de decoro parlamentar que está sendo avaliado no Conselho de Ética. Tem também um outro aspecto muito frustrante para nós, de perceber que majoritariamente só respondemos às determinações do governo do estado: a Assembleia tem funcionado substancialmente a partir dos projetos do Executivo, que a gente tem que votar. Dentre eles projetos de desestatização, de diminuição do Estado, com o fechamento de empresas como a Emplasa [Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano] e a privatização do Zoológico. Isso é uma luta, porque os parlamentares não conseguem discutir e aprovar projetos vindos dos representantes da população. A gente sabe que esse governo tem uma perspectiva extremamente administrativa, burocrática, e que olha para o Estado como uma máquina econômica, esquecendo-se obviamente das pessoas. Esse esquecimento não é ingênuo, negligencia as necessidades da população que mais necessita do Estado.
Você vem de espaços de militância orgânica, como o Aparelha Luzia. Qual a diferença desse ambiente para um local como a Alesp?
Tem sido o momento de organizar metodologicamente esse processo legislativo, entender seu funcionamento, o regimento interno, e sistematizar, porque nosso gabinete é composto essencialmente e totalmente de pessoas oriundas de lutas políticas, de movimentos sociais e de militâncias não necessariamente atreladas a partidos. Quero deixar muito explícito que não estou fazendo uma crítica aos partidos, eles são instituições importantíssimas para o exercício da democracia, inclusive faço parte de um – afinal de contas, não há possibilidade de eleição fora deles –, mas o fato de não termos pessoas comprometidas com partidos faz com que emerjam agendas objetivamente dos movimentos sociais, do clamor das populações e das lutas políticas que cada pessoa foi travando dentro de uma militância orgânica, mais próxima das pessoas. Estamos sistematizando essa política da revolta, radical no sentido de preservação da vida, e transformando em um processo legislativo e institucional. É importante, é poderoso, é bonito de ver e é um desafio enorme ao qual estamos respondendo, mas contamos constantemente com a sociedade para que isso seja verdadeiro e legítimo e para que a gente consiga colocar na esfera pública os debates necessários.
Você disse que, nesse início de legislatura, tudo tem girado em torno da pauta do governo do estado. Enquanto isso, seu mandato tem proposto debates até então esquecidos pela Assembleia, com a criação das frentes LGBTQIA+ e Defesa da População em Situação de Rua, por exemplo. Essas iniciativas têm encontrado resistência?
Tem coisas que não são ditas. Pessoalmente, a mim ninguém nunca se posicionou, mas já vi deputados falando em plenário sobre meritocracia, dizendo que a defesa da população negra e LGBT é mimimi. São falas muito frágeis e corriqueiras que infelizmente tomam uma proporção gigantesca nesse contexto político do Brasil, mas que não se mantêm para produzir um embate político. Há dois momentos em que vi esse acirramento: quando um deputado propôs a exclusão de pessoas transgênero nos esportes [Altair Moraes, do PRB, apresentou projeto que estabelece o sexo biológico como critério para definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no estado] e o discurso sobre encarceramento e redução da maioridade penal. São coisas que não estão na esfera de decisão do estado, mas que entram no debate aqui, então há, sim, um acirramento ideológico. Ainda não percebi um enfrentamento [direto], acho que isso vai acontecer quando o projeto TransCidadania entrar em pauta [no momento, tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Redação]. É algo que deve acontecer logo, pode apostar que sim.
De que maneira os acontecimentos em âmbito federal influenciam a Assembleia?
Embora o Doria diga que não, ele fez campanha pró-Bolsonaro. O que acontece na esfera federal acaba ressoando aqui, pelo menos em termos de debate público. O que foi aprovado é agrotóxico e desestatização, ponto. É isso que posso te dizer, e a todo momento vêm pautas nesse sentido. O trabalho construído até agora no sentido de debate e aprovação de projetos está nesse lugar. Aí, ideologicamente, discussões diversas acontecem, que são respingos do governo federal, o que ocorre lá se discute aqui.
Há alguma possibilidade de diálogo com os partidos de direita?
Há muitos diálogos possíveis. Tem o informal, nos corredores, e tem o diálogo na possibilidade ou não de pensar sobre um determinado tema. Em relação a esses projetos que foram para a pauta, de privatização, por exemplo, não tem diálogo. A base do governo consegue dar conta [da aprovação desses projetos] e, quando não consegue, são feitas emendas no texto, que acaba sendo aprovado. O TransCidadania, nosso primeiro projeto de lei, ainda não entrou em pauta, mas posso dizer o seguinte: para criar uma frente é necessário um número x de assinaturas do qual os nossos partidos [de esquerda] não dão conta. Então, pessoas de outros campos também assinaram a criação da Frente LGBTQIA+ – isso não significa que vão participar. Quando aconteceu o ataque transfóbico do deputado [Douglas Garcia], todos os da direita, mesmo os extremamente conservadores, se posicionaram contra ele. Mas é difícil dizer porque ainda não aconteceram as situações em que podemos verificar o diálogo em relação às nossas pautas, nossos projetos não foram a plenário. Eles têm circulado nas comissões, e o que se vê são pedidos de vista constantes.
Como os deputados dos partidos de esquerda têm se articulado na Assembleia para fazer avançar suas pautas?
Temos o mesmo posicionamento, mas com caminhos diferentes: somos contrários ao projeto de privatizações, nossas pautas objetivam, no início, meio e fim, a vida das pessoas, principalmente da população pobre e negra. Isso já está posto. Mas eu sinto que falta mais, faltam construções coletivas nesse sentido. Não vou cobrar isso da direita por motivos óbvios, embora perceba que há pessoas desse campo organizadas intelectualmente e coerentes para se posicionar favoravelmente a projetos da esquerda, assim como eu, sem dúvida, votaria a favor de projetos vindos de qualquer partido que sejam para o bem da população. Isso não é uma partida de futebol, não é pueril essa disputa. A esquerda brasileira só será efetivamente esquerda, segundo seus pressupostos sui generis, se colocar como centro das discussões o debate racial, porque é isso que fundamenta as desigualdades nesse projeto de nação brasileira. Classe é uma consequência de raça em territórios como o Brasil. Esse debate precisa ser fundamento, e não recorte. Não pensar em raça como um fator determinante para as desigualdades nos fragiliza e constantemente nos distancia da maioria da população – não no meu caso, não estou distante disso.
Qual outro comportamento da esquerda você vê de maneira crítica?
A nossa oposição é constantemente reativa em relação às construções da direita. Ótimo, legal, importante, temos que fazer isso, nos opor a esse projeto de Estado militarizado, de Estado de exceção constante, que não começou com o Bolsonaro para a população negra, por exemplo. Temos que nos opor às censuras, a essas reformas destruidoras. Mas, além disso, precisamos ter uma oposição que proponha algo.
Um exemplo seria a reforma da Previdência? Os partidos de esquerda se posicionaram veementemente contra ela, mas tiveram dificuldade de propor algo em alternativa ao projeto do governo Bolsonaro.
Isso tem que acontecer em relação aos projetos que estão em pauta, mas tem uma outra parte, que é sobre mobilização política para além das instituições. Que reconciliações estão sendo feitas com a classe trabalhadora ou com a população pobre e preta? Qual o lugar de protagonismo dessas pessoas, de trazê-las para a escuta [e considerá-las] para além de serem pessoas capitalizáveis para pleitos? Por que não trazer pessoas oriundas desses lugares, pessoas como eu, que vêm de territórios de exclusão, para participar da disputa política como protagonistas? Isso não se faz porque significa mexer em muitas feridas. É muito fácil apontar o racismo da direita, mas e o racismo da esquerda? A gente precisa fazer esse pacto entre nós, que envolve expurgar muitas dores, se realiançar com a população e trazer um projeto político diferente. Aí é quando a esquerda se parece com a direita – a Cida Bento, uma mestra nossa, fala sobre o pacto narcisístico da branquitude, que é quando acabam se parecendo em alguns momentos, e ficam bravos quando falamos sobre isso, dizem “você é muito radical”. Faça uma análise dos problemas sociais do Brasil: educação, saúde, habitação. Quem é o alvo deles, senão gente que foi empobrecida, majoritariamente negra e que luta por terra e território, direito à alimentação e à vida? Com isso fico realmente descolada da esquerda. E aí outra mestra nossa, a Suely Carneiro, diz “entre esquerda e direita, sou preta”. Não estou dizendo que jogo para qualquer lado. É mais do que óbvio que o que me faz estar nesse lugar à esquerda são construções do processo político que de alguma forma se aproximam da luta negra e dos questionamentos da negritude. Esse é o lugar de onde parto, mas não se encerra aí.
Quais são as principais dificuldades que você enxerga para a população trans hoje no estado de São Paulo e no Brasil?
Tem uma coisa que chamo, com muita tristeza, de hierarquia da tragédia: há o homem negro, a mulher negra e vai até chegar na travesti negra do candomblé. Imagine você que essas pessoas todas vão lidando com graus diferentes de desumanização, então, para materializar a dificuldade, é necessário falar sobre desumanização, porque, se você não é considerada um sujeito, tem que lutar para ser vista como um ser humano. A população trans está almejando o lugar de humanidade, o direito à vida. É triste falar isso, porque é um direito básico. Você me pergunta quais são as principais dificuldades: direito à vida, ter uma casa, alimento, trabalho e educação. A gente é expulsa da família, de casa, da escola, do trabalho – é um massacre, um corpo desumanizado em todos os sentidos. O que é principal? Absolutamente tudo. O principal é desconstruir essa mentalidade normativa que observa nossos corpos como seres abjetos. Objetivamente, o possível é um projeto que dê as condições para o poder público fazer reparações estruturais no sentido educacional, profissional e de direito à saúde dessa população. O TransCidadania é exatamente isso. Acho importante falarmos ainda da população de rua, que é transexual, é LGBT também – essas coisas estão muito próximas, estão amalgamadas. Considero que a máxima materialidade da abjeção e da exclusão de determinados corpos são o cárcere, a rua – na condição de prostituição ou moradia – e, obviamente, o cemitério.
Como você acabou de explicar, a situação das pessoas trans no Brasil é há muito tempo crítica em diversos aspectos. Você avalia que o governo de Jair Bolsonaro mudou essa situação para pior?
Sempre foi ruim, sempre foi trágico, mas entre o dito e o não dito, agora está dito.
Da Pública