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Os quatro casos de abuso de autoridade da Lava Jato

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Como o projeto já passou pelo Senado, agora depende só da sanção do presidente Jair Bolsonaro (PSL) para virar lei.

Se esta lei já existisse no Brasil desde 2014, quando começaram as apurações da Lava Jato, ela daria margem para que policiais, procuradores e juízes envolvidos nas investigações fossem atacados e eventualmente punidos em pelo menos quatro ocasiões.

Moro poderia ter incorrido em crime ao divulgar a conversa entre os ex-presidentes Lula e Dilma, em 2016. O mesmo Moro e o atual diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, poderiam ter cometido crime na “guerra de liminares” envolvendo a soltura do ex-presidente Lula, em julho de 2018. Policiais federais talvez fossem punidos por algemar e acorrentar os pés de Sérgio Cabral, em 2018.

A proposta é polêmica desde sua primeira versão, apresentada em 2016 pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL).

O texto depois sofreu alterações profundas nas mãos do senador Roberto Requião (MDB-PR), que relatou o projeto. “O substitutivo de Requião deformou minha proposta e, inclusive, eu votei contra ela no Senado”, disse Randolfe ao jornal O Globo. Janot, por sua vez, disse que o projeto, tal como se encontra, coloca o país “em marcha à ré no combate à corrupção”.

Na noite de quarta-feira (14), o projeto acabou aprovado na Câmara de forma simbólica – isto é, sem que os votos individuais de cada um dos deputados ficassem registrados. Agora, deputados do PSL dizem que Bolsonaro deverá vetar alguns dos artigos do projeto. Ele tem até o dia 5 de setembro para decidir.

Juízes e procuradores – não só os envolvidos com a Lava Jato – se manifestaram contra o projeto de lei desde o começo da semana.

Para a Associação dos Juízes Federais (Ajufe), o projeto “prejudica fortemente as instituições de Estado destinadas à aplicação da lei e à persecução de práticas criminosas, vulnera a separação dos poderes e a independência do Poder Judiciário e do Ministério Público e fornece poderosa ferramenta de retaliação contra Juízes/as, Promotores/as, Policiais e Fiscais em benefício de pessoas acusadas”.

A Frentas – que congrega entidades de juízes e de procuradores – disse que o texto “mantém as definições de diversos crimes de maneira vaga, aberta, subjetiva, punindo situações que hoje são normalmente dirimidas pelo sistema de justiça”. O projeto, ainda segundo a entidade, “contém uma série de falhas e impropriedades que inibem a atuação do Ministério Público, do Poder Judiciário e das forças de segurança, prejudicando o desenvolvimento de investigações e processos em todo o país”.

Por outro lado, o projeto recebeu apoio de deputados e senadores de vários partidos, e de várias orientações ideológicas. Dirigentes e ex-dirigentes da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também se manifestaram a favor do texto.

Ex-presidente da OAB, o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho publicou artigo de opinião no jornal O Estado de S. Paulo dizendo que o projeto fortalece não só a atividade da advocacia – mas também o “direito dos cidadãos a uma ordem jurídica justa, ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório”.

O relator na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), disse que o texto não visa perseguir nenhum profissional. “Quem, em geral, vai denunciar é o Ministério Público, e quem vai julgar é o juiz, por isso não cabe dizer que está havendo perseguição a esses agentes públicos”, disse ele.

O líder do PT na Câmara, Paulo Pimenta (RS), disse que os bons profissionais não têm o que temer. “Esses argumentos do medo não são para proteger os bons profissionais, são para proteger milicianos, são para proteger bandidos que às vezes estão dentro do serviço público. Pessoas que se utilizam dos seus cargos para perseguir pessoas inocentes”.

Para o advogado criminalista Fernando Castelo Branco, a nova lei precisa ser avaliada com cuidado.

Descrições genéricas, pouco detalhadas e subjetivas dos possíveis crimes podem abrir margem para que os profissionais sejam perseguidos ou atacados injustamente – o que não é desejável. No jargão do direito, este tipo de descrição genérica é chamado de “tipo penal aberto”. “O risco é de termos uma lei pouco clara, que gera desassossego e aumenta a incerteza. Uma boa lei deve fazer exatamente o contrário”, diz ele.

Mas ele faz uma ressalva: os episódios descritos abaixo são casos nos quais uma lei contra o abuso de autoridade seria necessária, diz. “Essas situações têm que ser mantidas como exemplos claros de abuso de autoridade”.

A reportagem da BBC News Brasil conversou com advogados criminalistas e consultou uma análise do subprocurador-geral da República Nicolao Dinopara entender como o projeto de lei do abuso de autoridade poderia ter impactado a Lava Jato, se já estivesse em vigor. Conheça abaixo quatro situações nas quais isto poderia ter acontecido.

1) O áudio do ‘Bessias’ e as gravações da JBS

No dia 16 março de 2016, o então juiz federal Sérgio Moro, responsável por julgar os casos da Lava Jato na 1ª Instância da Justiça, tornou pública a gravação de uma conversa telefônica entre o ex-presidente Lula (PT) e a então presidente da República Dilma Rousseff, do mesmo partido.

No diálogo, Dilma diz a Lula que o advogado Jorge Messias, então assessor palaciano, levará a ele um documento para que Lula pudesse tomar posse como ministro-chefe da Casa Civil. Para os investigadores, tratava-se de uma manobra para dar a Lula foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal (STF), retardando as investigações contra ele – o que Dilma e Lula sempre negaram.

Mais tarde, o próprio Moro reconheceu que errou ao continuar gravando a conversa dos dois – a conversa aconteceu fora do horário determinado pelo então juiz para a interceptação telefônica, feita pela PF. Mas ele defendeu a divulgação do áudio.

Se já existisse a Lei do abuso de autoridade, Moro poderia ser enquadrado no artigo 28.

Este artigo determina pena de um a quatro anos de prisão e multa para quem “divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado”.

O mesmo artigo poderia ser usado no caso da delação dos executivos Wesley e Joesley Batista, donos do frigorífico JBS.

No primeiro semestre de 2017, milhares de arquivos relativos à delação, que estava no Supremo Tribunal Federal, se tornaram públicos por decisão do relator do caso, o ministro Edson Fachin – inclusive conversas que nada tinham a ver com as investigações. Foi o caso, por exemplo, de uma conversa entre o jornalista Reinaldo Azevedo e Andrea Neves, irmã do hoje deputado Aécio Neves (PSDB-MG).

Quando o caso envolvendo o jornalista veio à tona, Fachin determinou que o áudio voltasse a ser sigiloso.

2) As algemas e correntes de Sérgio Cabral

Em janeiro de 2018, o ex-governador do Rio, Sérgio Cabral (MDB), foi transferido de um presídio no Rio de Janeiro para uma ala do Complexo Médico Penal de Pinhais, no Paraná.

Ao desembarcar em Curitiba (PR), Cabral estava com algemas nas mãos, uma corrente nos pés e uma espécie de cinta no abdômen. Ele também estava acompanhado de uma equipe de pelo menos cinco policiais federais fortemente armados. A chegada dele foi acompanhada por equipes de TV e fotojornalistas.

O projeto de lei de abuso de autoridade traz um artigo – o de número 17 – que poderia se aplicar ao caso. Ele prevê detenção de seis meses a dois anos para quem submeter os presos “ao uso de algemas ou qualquer outro objeto que lhe restrinja o movimento (…) quando manifestamente não houver resistência à prisão, internação ou apreensão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso”.

A pena é aplicada em dobro se a vítima tiver menos de 18 anos, estiver grávida, ou se a infração ocorrer dentro de uma penitenciária.

No caso de Cabral, a transferência foi determinada por Moro e pela juíza federal Caroline Vieira Figueiredo, do Rio, depois que surgiram suspeitas de que o ex-governador estaria recebendo regalias no sistema penitenciário fluminense.

O uso das algemas, no entanto, foi uma escolha da PF. À época, a corporação disse em nota que o local – a entrada do IML de Curitiba – era de acesso aberto ao público. Por isso, o aparato seria necessário para proteger Cabral ou pessoas próximas que eventualmente quisessem brigar com o político.

Neste caso, também poderia ser aplicado o artigo 14 do projeto – que prevê detenção (de seis meses a dois anos) e multa para quem “fotografar ou filmar, permitir que fotografem ou filmem, divulgar ou publicar fotografia ou filmagem de preso (…) sem seu consentimento”.

3) A gravação dos advogados de Lula

A nova lei de abuso de autoridade também altera um dispositivo do Estatuto da Advocacia, e torna crime o ato de violar o escritório ou local de trabalho do advogado, “bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

A pena é de três meses a um ano, e multa.

Entre fevereiro e março de 2016, o ex-juiz Sérgio Moro autorizou que os investigadores da Lava Jato interceptassem os telefones do escritório do advogado Cristiano Zanin, que defende o ex-presidente Lula. E, segundo a defesa do petista, a força-tarefa teria produzido relatórios que detalharam ao menos 14 horas conversas gravadas dos defensores do ex-presidente.

Hoje, esta alegação está na base de um dos pedidos da defesa de Lula para tentar anular no Supremo Tribunal Federal a condenação de Lula no caso do Tríplex do Guarujá (SP).

Em outubro de 2017, a defesa do petista pediu ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que destruísse as gravações de 462 chamadas telefônicas do escritório. Segundo a defesa, as ligações contêm diálogos de Cristiano Zanin com o ex-presidente, nas quais ele orienta seu cliente a respeito da defesa jurídica.

Se for sancionada da forma como está, o projeto de lei do abuso de autoridade também torna crime prender advogados de forma preventiva ou temporária fora de uma cela de Estado-Maior. E, se esta não estiver disponível, o advogado deve ficar em prisão domiciliar.

4) A ‘guerra de liminares’ pela soltura de Lula

Na manhã do dia 8 de julho de 2018, o desembargador federal Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), aceitou um pedido de habeas corpus da defesa do ex-presidente Lula, e mandou soltá-lo. Lula está preso na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba desde o dia 7 de abril do ano passado.

Favreto é desembargador plantonista e já foi filiado ao PT – mas se desligou do partido ao assumir o cargo no tribunal.

Em seguida, Moro – que à época ainda era juiz federal – despachou no processo alegando que não tinha poderes para cumprir a decisão de soltar o petista. Ele estava de férias no momento. Argumentou que, como a decisão de prender Lula era de um órgão colegiado (a 8ª Turma do TRF-4, formada por três desembargadores), ele não tinha poderes para autorizar a soltura.

A “guerra de decisões liminares (provisórias)” prosseguiu durante todo o sábado, até que a questão foi resolvida pelos desembargadores Gebran Neto e Thompson Flores – que tinham julgado o caso de Lula e determinado sua prisão.

Se a lei do abuso de autoridade já estivesse em vigor na época, Moro e os policiais responsáveis pela custódia de Lula na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba poderiam ser enquadrados no inciso IV do artigo 12.

Segundo este trecho da lei, comete crime quem “prolonga a execução da pena (…), deixando, sem motivo justo e excepcionalíssimo, de executar o alvará de soltura imediatamente após recebido”. A decisão de Favreto determinava a soltura imediata de Lula na manhã de sábado. Como se sabe, não aconteceu.

De BBC