Argentina: moratória aumenta risco da crise contagiar o Brasil
Desde a contundente vitória do peronista Alberto Fernández nas eleições primárias da Argentina, o país vizinho e seu mercado financeiro acenderam o alerta vermelho. Fernández tem a ex-presidenta Cristina Kirchner como vice na chapa. O peso perdeu mais de 30% do seu valor, a inflação disparou e as ações argentinas despencaram. Diante de um novo colapso econômico e com o dólar acima de 60 pesos, o Governo de Mauricio Macri se viu obrigado a revisitar um dos piores fantasmas do país e decidiu anunciar, na semana passada, que negociará com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com credores privados mais tempo para pagar as dívidas argentinas. A decisão fez o risco-país crescer, a moeda depreciar ainda mais e a palavra default, ou suspensão de pagamento, começou a circular nas agências de classificação de risco. A instabilidade na Argentina, que parece estar a um passo de um calote, também contagiou momentaneamente o mercado financeiro brasileiro e o câmbio. Porém, deve afetar, por mais tempo e de forma mais relevante, as exportações de produtos do Brasil para o país vizinho, o que deixa alguns setores da economia brasileira preocupados.
A Argentina, que hoje é o nosso terceiro parceiro comercial e o primeiro da região, é a maior compradora dos produtos brasileiros manufaturados, ou seja, com maior valor agregado. O que significa que uma crise no país vizinho faz cair bastante as vendas da indústria brasileira, como já tem sido observado neste ano. Entre janeiro e julho, as exportações ao país vizinho despencaram 40% em relação ao mesmo período de 2018, recuando de 9,9 bilhões de dólares para 5,9 bilhões, segundo a Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). “Neste ano, vamos ter déficit comercial com os argentinos, o que não tínhamos desde 2003. O poder de compra deles hoje está muito pequeno e, em meio a uma forte crise, a Argentina precisa reduzir as importações”, explica José Augusto Castro, presidente da AEB.
De acordo com Castro, o agravamento da crise também pode acabar gerando temores de que haja atraso e falta de pagamento de operações comerciais. “Ainda não recebi nenhuma reclamação, mas esse pedido ao FMI está sendo visto como uma espécie de moratória, o que sinaliza que a crise irá se prolongar ainda alguns anos, e o Brasil vai ter que conviver com isso. Não acho que vai afetar tanto nossa atividade econômica, mas sim as nossas exportações”, afirma.
Diversos setores que têm a Argentina com um dos maiores destinos de vendas ao exterior temem os efeitos do novo colapso enfrentado pela economia vizinha nos resultados das empresas. O presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast), José Ricardo Roriz Coelho, afirma que “está em alerta em relação ao pedido de moratória” na Argentina e vê com preocupação as consequências desse movimento. “Hoje, a Argentina é o principal destino das exportações de transformados plásticos no país, representando 32% do volume total. O agravamento da crise em um parceiro comercial tão importante é preocupante devido ao impacto das empresas exportadoras, o que afeta o Brasil no momento em que acena para uma possível retomada da economia”, explica.
Haroldo Ferreira, presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), também compartilha da mesma preocupação. “As exportações de calçados brasileiros para a Argentina vêm caindo desde o segundo semestre do ano passado em função da crise deles”, explica. Entre janeiro e julho deste ano, 4,6 milhões de pares verde-amarelo foram vendidos ao país vizinho, 28,5% menos do que no mesmo período de 2018. “Já em valor, a queda ainda foi maior, 37,8%, o que demonstra que até o valor do produto que a Argentina está consumindo está inferior que o ano passado, o que é um reflexo da turbulência econômica”, diz Ferreira.
Apesar de quedas consecutivas nos embarques para a Argentina – desde o segundo semestre de 2018 – o país segue como o segundo principal destino do calçado brasileiro no exterior (atrás somente dos Estados Unidos). “É um mercado importante e a situação nos preocupa, porque, se a economia que já está frágil, ficar ainda mais frágil, podemos ter números piores este ano”, conclui.
O setor automotivo, que responde atualmente pela maior fatia das nossas vendas para a Argentina (cerca de 30%) – e já vem registrando grandes quedas de exportação desde o ano passado -, avalia que ainda é cedo para se quantificar os possíveis novos impactos. “A moratória da Argentina termina com as especulações sobre a capacidade de o país cumprir o acordo. De um lado isso obviamente é ruim, mas por outro cria uma ‘previsibilidade’, abrindo espaço para a recuperação do país”, afirma Luiz Carlos Moraes, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). “Na nossa revisão de previsão de 2019, anunciada em julho, já havíamos reduzido os volumes de exportação em função da crise da Argentina”, completa. Nos seis primeiros meses deste ano, as vendas do setor ao exterior desabaram 41,5%, principalmente, em função da crise no país vizinho, que é o principal destino dos veículos. Atualmente, mais de 60% dos carros comprados pelos argentinos vêm do Brasil.
O pesquisador de economia aplicada Lívio Ribeiro, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), avalia que, como o Brasil é integrante do Mercosul e vizinho da Argentina, acaba se contaminando com a percepção gerada de aumento de risco na região, mas pondera que esse contágio é curto. Segundo Ribeiro, as “implicações reais” acontecem com os encadeamentos existente entre a produção industrial brasileira e a argentina. “O Brasil não é um país muito aberto, mas por causa do Mercosul, a participação da Argentina nos fluxos de bens industriais é relevante. Muitas cadeias de valor existem regionalmente, insumos são produzidos de um lado da fronteira e bens finais do outro, acontece dos dois lados”, explica. Ainda segundo o pesquisador, como agora há uma crise grande na economia argentina, uma mudança dos preços relativos entre os dois países começa a ocorrer. “E, quando isso acontece, a estrutura da cadeia modifica, seja na produção de insumos ou na demanda. O grande problema é a desorganização da cadeia de valor, porque ela levou anos para ser organizada. E isso terá um efeito muito grande no Brasil”, estima.
Do El País