Intercept vaza planos de Bolsonaro para destruir a Amazônia
O governo de Jair Bolsonaro está discutindo, desde fevereiro, o maior plano de ocupação e desenvolvimento da Amazônia desde a ditadura militar. Gestado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, com coordenação de um coronel reformado, o projeto Barão de Rio Branco retoma o antigo sonho militar de povoar a Amazônia, com o pretexto de desenvolver a região e proteger a fronteira norte do país.
Documentos inéditos obtidos pelo Intercept detalham o plano, que prevê o incentivo a grandes empreendimentos que atraiam população não indígena de outras partes do país para se estabelecer na Amazônia e aumentar a participação da região norte no Produto Interno Bruto do país. A revelação surge no momento em que o governo está envolvido numa crise diplomática e política por conta do aumento do desmatamento no Brasil. Bolsonaro se comprometeu a proteger a floresta em pronunciamento em cadeia nacional de televisão, mas o projeto mostra que a prioridade é outra: explorar as riquezas, fazer grandes obras e atrair novos habitantes para a Amazônia.
O plano foi apresentado pela primeira vez em fevereiro deste ano, quando a secretaria ainda estava sob o comando de Gustavo Bebbiano. O então secretário-geral da Presidência iria à Tiriós, no Pará, em uma comitiva com os ministros Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e Damares Alves, dos Direitos Humanos, para se reunir com entidades locais. Bolsonaro, no entanto, não sabia da viagem. Foi surpreendido pelas notícias e vetou a comitiva — uma das razões que culminaram na crise que tirou Bebbiano do governo em 18 de fevereiro. O plano acabou sendo apresentado dias depois só pelo coronel reformado Raimundo César Calderaro, seu coordenador, sem alarde, em reuniões fechadas com políticos e empresários locais.
Parte do conteúdo do encontro foi revelado no mês passado pelo Open Democracy. O Intercept, agora, teve acesso a áudios e à apresentação feita durante uma reunião organizada pela Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos no dia 25 de abril deste ano na sede da Federação da Agricultura do Pará, a Feapa, em Belém. A secretaria afirmou ter reunido a sociedade, academia e autoridades locais para ouvir opiniões e sugestões que guiarão os estudos sobre o programa. Mas os documentos, até agora inéditos, revelam que indígenas, quilombolas e ambientalistas parecem ter ficado de fora da programação.
INDUSTRIALIZAÇÃO DE MINÉRIOS AMAZÔNICOS
O documento mostra que o governo vê como “riquezas” os minérios, o potencial hidrelétrico e as terras cultiváveis do planalto da Guiana, que ficam entre o Amapá, Roraima e o norte do Pará e do Amazonas. “Tudo praticamente inexplorado”, “distante do centro do Brasil”, “e de costa (sic) para as riquezas do norte”, diz um slide.
O plano prevê três grandes obras, todas no Pará: uma hidrelétrica em Oriximiná, uma ponte sobre o Rio Amazonas na cidade de Óbidos e a extensão da BR-163 até o Suriname. O objetivo é integrar a Calha Norte do Pará, na fronteira, ao centro produtivo do estado e do país. A região, extremamente pobre e com baixa densidade demográfica, está cortada por rios e é de difícil acesso. Também é a mais preservada do Pará, estado campeão em desmatamento.
No plano, a BR-163, que começou a ser construída nos anos 1970, seria estendida até a fronteira norte do Brasil, ligando hidrovias e cortando a Amazônia do Suriname até o “centro de poder” do país — hoje, a rodovia vai de Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, até Santarém, no Pará.
O objetivo é escoar a produção de soja do centro-oeste e integrar uma região até agora “desértica”, nas palavras do secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, general Maynard Santa Rosa, um militar da reserva dado a teorias da conspiração sobre as intenções de ambientalistas na floresta e que alimenta paranoias sobre a insegurança das fronteiras brasileiras no extremo norte devido à “escassez populacional”. Ele defende a extensão da estrada desde pelo menos 2013 Pelo projeto, a rodovia também atravessaria a Reserva Nacional de Cobre e Associados, rica em minérios, e daria acesso a uma região de savanas que pode ser convertida em plantações de soja e milho.
O governo diz que a ampliação “possibilitará livre mobilidade de cerca de 800 mil habitantes” que moram nas cidades da região e dependem de hidrovias. Também aposta que a construção terá “impacto direto” na redução do valor do transporte de grãos na região. No total, a interligação das rodovias, que inclui uma ponte sobre o Rio Amazonas beneficiariam 2 milhões de pessoas, argumenta a Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos.
A BR-163 é há três décadas uma via precária devido à falta de asfalto. “Quando olhamos projetos como esse, não sei se estamos falando em infraestrutura para a Amazônia”, me disse Caetano Scannavino, coordenador da ONG Saúde e Alegria e morador de Santarém. “O que essa região está precisando e esperando há 30 anos é o término do asfaltamento. Então, de repente, surge uma estrada em uma ponta, uma hidrelétrica, e tudo isso sem respostas concretas e efetivas em relação à obras que começaram e não terminaram”. A obra está a cargo dos militares, e o governo promete asfaltar o último trecho até o final do ano.
As margens da BR-163 na altura do Pará são, hoje, um dos principais focos de conflitos agrários no país. A região de Novo Progresso, por exemplo, foi o epicentro do Dia do Fogo, evento marcado por ruralistas no WhatsApp para incendiar diversas áreas do local para mostrar apoio às políticas de Bolsonaro para a região. O fogo simultâneo chamou a atenção internacional e foi estopim da crise diplomática com o presidente da França, Emmanuel Macron – o caso está sendo investigado pela Polícia Federal.
Em um artigo publicado em um jornal de Santarém, o coordenador do projeto Barão do Rio Branco, o coronel Calderaro, explicou as razões do plano: viabilizar que as riquezas do Brasil “se movimentem ‘porta à porta’ (sic), em toda a Nação” e possibilitar o acesso dos brasileiros “às suas próprias terras ricas, no planalto ao norte, em seus municípios”.
O objetivo da hidrelétrica em Oriximiná seria reduzir a quantidade de apagões na região e abastecer a Zona Franca de Manaus. Segundo a Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos, além da segurança energética, a hidrelétrica em Trombetas também viabilizará a industrialização do minério de alumina-alumínio, “abundante nos municípios da Calha Norte, principalmente em Oriximiná e Óbidos”. E reduzirá gastos públicos com as termoelétricas, “com impacto direto na redução de emissão de gás carbônico”.
Não é a primeira tentativa: outros projetos, no mesmo rio Trombetas, já foram abandonados por causa do impacto socioambiental em comunidades indígenas e quilombolas. Na região, há registro, inclusive, de tribos indígenas isoladas – mas isso não freia o ímpeto do novo governo.
“Nos preocupa muito a forma na qual as coisas vêm sendo feitas”, diz Scannavino. “A questão não é ser contra a infraestrutura. É importante rever a forma como ela vem sendo implantada, sem respeitar os devidos ritos de consultas”.
OS CHINESES NO SURINAME
Na apresentação do projeto, o governo diz enxergar uma oposição orquestrada à sua “liberdade de ação” na região. Os slides listam os previsíveis supostos opositores: ONGs ambientalistas e indigenistas, mídia, pressões diplomáticas e econômicas, mobilização de minorias e aparelhamento das instituições.
Na visão da gestão Bolsonaro, a população tradicional — indígenas e quilombolas — são um empecilho à presença do estado no local. Segundo o projeto, a “situação econômica do Brasil”, aliada aos paradigmas do “indigenismo”, “quilombolismo” e “ambientalismo” eram entraves do passado. O “novo paradigma”, com o governo Bolsonaro, com o “liberalismo” e o “conservadorismo”, traz “nova esperança para a Pátria”. “Brasil acima de tudo”, diz o slide, repetindo o slogan de campanha do ex-deputado.
Em um áudio gravado durante a reunião e enviado ao Intercept por uma fonte que pediu para não ser identificada, o General Santa Rosa afirmou que o Brasil precisa agir para garantir a soberania na fronteira com o Suriname, país que recebe investimento e imigrantes chineses. Segundo ele, a China tem resolvido conflitos em fronteiras promovendo políticas de imigração em massa para regiões problemáticas ou que são consideradas estratégicas, como a Sibéria, o Nepal e o Suriname. “Na fronteira oeste da Sibéria tem mais chinês hoje do que cossaco. A Rússia está acordando para um problema de segurança nacional muito sério. Nós temos que acordar aqui antes que o problema ocorra”, disse, na gravação.
Perguntei a Mauricio Santoro, professor de relações internacionais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, se a preocupação encontra respaldo na realidade. Ele explicou que a China não tem uma política de imigração de seus cidadão. Pelo contrário: o país está tentando atrair de volta o pessoal técnico e científico que vive no Ocidente.
Na Rússia, de fato há uma presença crescente de imigrantes chineses, em terras em que os dois países disputaram nos séculos 17 e 18 e ainda despertam preocupação do lado russo. No Suriname — país muito pequeno, com 500 mil habitantes — também houve uma onda de imigração chinesa que acompanhou os investimentos do país oriental. “Nos últimos anos a China tem investido bastante no país, que tem reservas minerais significativas, e aumentado sua influência por meio de ajuda internacional e empréstimos ao governo local”, diz Santoro. Mas também há imigração de brasileiros para lá, sobretudo, segundo o pesquisador, para explorar oportunidades nos garimpos ou na construção civil.
“Os militares tendem a ver a presença de estrangeiros na Amazônia, sobretudo de países de fora da América do Sul, como um problema e um risco à segurança nacional. Isso diz mais sobre a visão de mundo das Forças Armadas brasileiras do que sobre os objetivos de outras nações na região”, argumentou Santoro.
Não é a primeira vez que esse temor aparece. Em um texto de 2013, o general Santa Rosa diz que o contexto estratégico na região era “preocupante”. “Pressões ambientalistas e indigenistas de toda a ordem invalidam as políticas governamentais. No entorno, multiplicam-se os ilícitos transnacionais”, ele escreveu. “A Venezuela tende à fragmentação da ordem interna. O Suriname e a Guiana enfrentam o problema da expansão chinesa.” Em uma entrevista no mesmo ano, Santa Rosa dá a dimensão de sua preocupação: “o maior problema geopolítico da Amazônia é o vazio populacional”. “Eu acredito que criar reservas [indígenas] na faixa de fronteira contrariando interesse nacional é um crime de lesa-pátria. Diga o antropólogos o que quiserem, a antropologia militante o que quiser. Para mim é um crime de lesa pátria.”
Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos de Fronteiras da Universidade Federal do Amapá, Paulo Correa também me disse que o temor de uma invasão pela fronteira na região não faz sentido – a região é remota dos dois lados, cercada por rios de difícil acesso e pequenas cidades. “Estamos falando de uma das fronteiras mais desabitadas que existem.” Debaixo da terra, porém, há um potencial desconhecido. “Ali é uma região inexplorada do ponto de vista dos minérios. Tem muito ouro e bauxita. Esse poderia ser um interesse: os recursos minerais”, diz o cientista político.
Para proteger as fronteiras, os militares planejam também desenvolver a região – sem explicar como ou a que custo ambiental, social e financeiro. “Tem que aumentar a renda, a contribuição da Amazônia para o PIB do Brasil, que hoje não passa de 5,4% numa região riquíssima. Nós temos que chegar a 50%, pelo menos, para equilibrar o restante do país”, disse na gravação o homem que aparenta falar em nome do governo Bolsonaro.
Na verdade, hoje o PIB gerado pela Amazônia Legal corresponde a 8,6% do total do Brasil — fatia que vem aumentando. Para se chegar ao valor proposto, a Amazônia precisaria gerar uma riqueza quase duas vezes maior à de São Paulo, estado mais rico do Brasil, hoje responsável por 31% do PIB.
Nenhuma organização indígena foi envolvida no projeto. Elas ficaram sabendo do projeto Barão de Rio Branco pela imprensa.
Em uma nota técnica, quatro organizações afirmaram que o projeto do governo “causará impactos destrutivos e irreversíveis para nós, povos indígenas, e o nosso modo de vida, baseado no uso sustentável dos recursos naturais, fato que permitiu até aqui a conservação de uma das áreas de maior preservação ambiental do planeta”. O texto é assinado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, Articulação dos Povos Indígenas do Amapá e Norte do Pará e pela Federação dos Povos Indígenas do Pará.
Segundo o documento dos indígenas, publicado em maio, o plano “rasgaria pelo meio” terras indígenas reconhecidas pelo estado brasileiro — o que o tornaria inconstitucional.
No total, o projeto Barão de Rio Branco afetaria 27 terras indígenas e áreas protegidas da chamada Calha Norte — a terra indígena Wajãpi, no Amapá, onde foi relatado o assassinato de um cacique por garimpeiros, é uma delas.
UMA ANTIGA OBSESSÃO DOS MILITARES
Não é a primeira vez que as Forças Armadas traçam um plano de defesa da Amazônia — e nem que ignoram a população indígena que vive no local. O Exército tem uma preocupação antiga com as fronteiras do norte.
O país tem, desde o século 18, políticas de desenvolvimento para a região, passando pela Superintendência para a Valorização Econômica da Amazônia de Getúlio Vargas, até chegar ao governo instalado após o golpe de 1964. Conhecida como Operação Amazônia, o plano de colonização criado na ditadura militar visava integrar nos anos 1960 o território com estradas, povoando seus entornos com empreendimentos agrícolas e empresariais. Seu lema revela o objetivo: “ocupar para não entregar”.
“Havia um aspecto da doutrina que dizia que o Brasil não podia ter espaços vazios porque seriam ameaças à segurança nacional”, me disse João Alberto Martins Filho, que pesquisa as Forças Armadas há três décadas. “O conceito era de que era necessário vivificar as regiões com baixa ocupação populacional, e isso se transformou em política de estado”.
Além de criar órgãos para isso, como a Sudam, Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, os militares investiram em megaobras de infraestrutura na região. Para garantir a implantação do plano, atacaram os ambientalistas — acusados de apátridas e inimigos da nação — e passaram por cima dos povos tradicionais – os indígenas e quilombolas.
Durante a construção da BR-174, a Manaus-Boa Vista, por exemplo, o Exército realizava “demonstrações de força” com metralhadoras, granadas e dinamites contra os indígenas Waimiri-Atroari. A ideia era mostrar que os militares eram muito mais fortes do que eles. “A estrada é irreversível, como é a integração da Amazônia ao país. A estrada é importante e terá que ser construída, custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso para o batalhão, apenas para pacificarmos primeiro os índios”, disse em 1975 o Coronel Arruda, comandante do 6º Batalhão de Engenharia e Construção, em depoimento disponível no relatório da Comissão Nacional da Verdade.
O embate não ficou só no campo da demonstração: milhares de indígenas foram massacrados. Em 1972, havia cerca de 3 mil Waimiri-Atroari. Em 1983, eram 350.
“Os militares ignoravam completamente a existência da população indígena”, diz Martins Filho. Estima-se que mais de 8 mil indígenas tenham sido mortos durante o regime — eles eram vítimas de envenenamento, pistolagem, confronto com militares, fazendeiros e de doenças trazidas pelos brancos durante a colonização e as grandes obras, principalmente rodovias.
A intenção do governo com a construção de estradas era trazer pessoas do nordeste e do sul do país para começarem a ocupar a região. Mas o processo era precário: não havia água, eletricidade, escolas. Muitas vezes, os colonos eram largados na beira da estrada sem nada — nem mesmo a demarcação dos lotes de terra. Muitos não resistiram às condições adversas na Amazônia, como a malária. A estratégia é apontada como uma das origens dos conflitos fundiários que acontecem até hoje na região — e, apesar de ter promovido um aumento na população dos estados na Amazônia legal, passou longe de conseguir ocupar e desenvolver o território do jeito que os militares esperavam.
Com o fim da guerra fria, o contexto geopolítico mudou, e a preocupação dos militares passou a ser os EUA. Entre os anos 1980 e 1990, começou a surgir na comunidade internacional uma discussão sobre se o Brasil estava falhando em proteger a Amazônia.
Os quartéis passaram a temer que os americanos invadissem a floresta sob a justificativa de proteger o meio ambiente global. O receio foi abrandado com políticas ambientais mais efetivas, como a criação do Ibama, e se manteve relativamente discreto nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula. Mas, com a crise econômica e a oposição dos militares ao governo de Dilma Rousseff, as teses sobre a perda de soberania na região voltaram a fermentar.
Hoje, o Exército acredita que há uma “grande estratégia indireta” de anulação do estado brasileiro na Amazônia. A tese tomaria o lugar do medo de uma invasão militar, popular na caserna durante a ditadura. A dissolução do estado brasileiro na região aconteceria com apoio internacional para que os indígenas fundassem novas nações baseadas em etnias. Há um temor antigo, por exemplo, de que os Yanomami brasileiros se juntem com os venezuelanos na criação da nação Yanomami.
É por isso que o Exército se preocupa com a presença de ambientalistas, ONGs e até da Igreja Católica no local, vistos como passíveis de manipulação por outros países e que permitiriam a internacionalização da Amazônia.
A realização do Sínodo da Amazônia, em outubro deste ano, por exemplo, é vista com preocupação pela cúpula militar por seu “viés político”. No encontro, organizado pelo Vaticano, 250 bispos líderes da Igreja Católica discutirão por 21 dias o tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Em uma apresentação em agosto, os generais Alberto Cardoso e Villas Bôas disseram que o Sínodo, a mídia, os governos, a ONU, as ONGs e o Cimi, o Conselho Indigenista Missionário, são os “instrumentos” para a “grande estratégia indireta”.
DA CRISE À OPORTUNIDADE
O governo queria que o projeto Rio Branco fosse viabilizado por um decreto em um prazo de 100 dias a partir de janeiro, mas isso não aconteceu. O plano, no entanto, tem sido discutido em reuniões fechadas. Seu coordenador, o coronel Raimundo César Calderaro, foi em fevereiro ao Rio de Janeiro se reunir com engenheiros do Instituto Militar de Engenharia para tratar do projeto. Também procurou cartas cartográficas da região feitas pela Marinha. Em março, discutiu o plano com o Secretário de Assuntos Estratégicos do governo, general Santa Rosa.
O projeto também foi apresentado em abril a empresários do agronegócio na sede da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará. Dentro do Palácio do Planalto, foram feitas várias reuniões para discutir o assunto. A última delas, em 19 de junho, contou com a participação do general Santa Rosa, do secretário de Planejamento Estratégico, Wilson Trezza, e do diretor de Assuntos Internacionais Estratégicos, Paulo Érico Santos de Oliveira. Não há, na agenda oficial, registro de participação de autoridades do Ministério do Meio Ambiente nessas discussões.
Segundo a Secretaria de Assuntos Estratégicos, o programa Barão do Rio Branco “ainda se encontra em fase de discussão e de amadurecimento”. “Está prevista a constituição de um grupo de trabalho interministerial, por meio de Decreto, para a elaboração do Programa Barão do Rio Branco. No entanto, ainda não há data para publicação”, disse a assessoria de imprensa do órgão.
A secretaria afirmou que não houve visita oficial de comitiva interministerial para apresentação do programa no Pará. Não é verdade. Segundo o Portal Transparência, César Calderaro foi à Santarém em visita oficial de comitiva interministerial em fevereiro de 2019, com recursos da própria secretaria. Discutiu o projeto, inclusive, com o prefeito de Santarém, Nélio Aguiar, do Democratas, e o encontro foi registrado publicamente no Facebook.
Desde agosto, a Amazônia tem sido o palco da maior crise internacional no governo Bolsonaro. Por causa do desmatamento recorde e das queimadas de grandes proporções, autoridades estrangeiras têm mostrado preocupação sobre a eficiência do Brasil em cuidar da maior floresta tropical do mundo — e reacenderam os velhos temores dos militares sobre a suposta internacionalização da Amazônia.
Emmanuel Macron, presidente da França, cobrou publicamente ações do governo brasileiro para proteger a região. O presidente francês cogitou solicitar “status internacional” à Amazônia – pedir à ONU que ela seja gerida por outros países – se a catástrofe ambiental continuar.
Autointitulada “sem ideologia”, a gestão de Bolsonaro e de seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é marcada pelo desmonte do Ibama e de órgãos de monitoramento, como o Inpe. Em campanha, Bolsonaro avisou que não demarcaria nem “mais um centímetro” de terras indígenas, e, quando assumiu, colocou Nabhan Garcia — um ruralista conhecido por gostar de fuzis para expulsar supostos invasores de terras — à frente da reforma agrária e das demarcações.
O resultado? Em 2019, dados prévios indicam que o desmatamento é 50% maior do que no ano passado — e a estimativa pode ser maior, já que os dados consolidados no final de ano costumam ser muito maiores do que os dados divulgados mês a mês pelo Inpe. Segundo esse sistema, julho foi o pior mês, com um aumento de 278% no desmatamento em relação a julho do ano passado.
Embora os incêndios sejam comuns nessa época do ano, dados do Inpe também mostram que, este ano, as queimadas aumentaram 84% em relação ao período de janeiro a agosto de 2018. E há evidências de que muitos focos foram causados de propósito por madeireiros e grileiros em apoio à política de Bolsonaro de afrouxar a fiscalização ambiental. Pior: o governo foi alertado pelo Ministério Público do Pará que seus apoiadores fariam as queimadas, nas margens da mesma BR-163 que o governo quer expandir, mas não fez nada. O Ibama diz que não agiu por falta de proteção para seus fiscais.
Acuado, Bolsonaro seguiu a cartilha do projeto Rio Branco na resposta à crise. Primeiro, acusou ONGs de terem provocado os incêndios para “chamar atenção”. Em uma reunião com governadores dos estados da Amazônia Legal há duas semanas, afirmou que reservas indígenas têm a intenção de “inviabilizar o país” e que políticas de proteção usaram indígenas “como massa de manobra” e impediram que as riquezas da região fossem usadas “para o bem comum”. Também disse que as ONGs são uma maneira de deixar intacta a Amazônia para “futura exploração de outros países”.
O tom foi alinhado com a cúpula militar. O general Villas-Bôas disse que a manifestação de Macron foi um “ataque direto à soberania brasileira”; Heleno, que “querem frear nosso inevitável crescimento econômico”; e Mourão, que transformar os incêndios em crise “é má-fé de quem não sabe que os pulmões do mundo são os oceanos, não a Amazônia”.
Para Martins Filho, o Exército, que enfrentava um mal-estar com o alto escalão do Planalto, em Brasília, viu na crise uma oportunidade. “O objetivo dos militares, pensando estrategicamente, é esse: se reaproximar do governo”, me disse o pesquisador.
Perguntei ao Exército sobre o projeto Rio Branco e preocupações com a soberania nacional na Amazônia. Por meio de sua assessoria de imprensa, a instituição afirmou que não responde sobre o projeto e não tem declarações a fazer sobre o tema. Também afirmou que o coronel Calderaro não fala pelo Exército. Questionado a respeito, o ministério do Meio Ambiente não respondeu se o projeto Rio Branco avançou.
Já a Secretaria Nacional de Assuntos Estratégicos afirmou que o governo deverá criar, por decreto, um Grupo de Trabalho Interministerial para discutir o projeto. Com ele, o governo planeja o “desenvolvimento com maior presença das instituições de Estado na região da Calha Norte”. “O que se espera é o desenvolvimento a integração da Região da Calha Norte, com benefícios para a população, que, hoje, em sua maioria, vive abaixo da linha da pobreza.”