Lei de abuso de autoridade não dá superpoderes ao STF
Em meio ao acirrado debate sobre o projeto de lei de abuso de autoridade (PL 7596/2017), sancionado pelo presidente Bolsonaro nesta quinta-feira, que espera análise do presidente Jair Bolsonaro até 5 de setembro, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) fez uma postagem sobre o tema que acabou sendo bastante compartilhada nas redes sociais.
Longe de coibir abusos, a “lei de abuso de autoridade” dá PODER TOTAL para um ministro do STF ou do STJ DESTRUIR a carreira de QUALQUER juiz, promotor ou policial concursado: basta conceder um HC, arquivar um caso por “falta de indícios” ou dizer que uma prisão foi “vexatória”.
— Carla Zambelli (@CarlaZambelli17) August 16, 2019
Ao final da publicação, Zambelli utilizou a hashtag #VetaBolsonaro, seguindo um movimento que pede que o presidente vete, integralmente ou parcialmente, o projeto aprovado pelo Congresso Nacional. Esse grupo, que chegou a promover manifestações, tem defendido que as novas regras irão atrapalhar o combate à corrupção no país.
Frase da deputada está equivocada, dizem especialistas
Para entender se o que a deputada afirmou está ou não correto, o UOL ouviu o professor da Universidade de Brasília (UNB) e juiz titular do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região Paulo Henrique Blair, especialista em direito constitucional e crítico do projeto, e o professor da Universidade de São Paulo (USP) Luciano Anderson de Souza, especialista em crimes contra a administração pública e favorável ao PL. Ambos consideraram equivocada a postagem de Zambelli.
“Juridicamente, a frase não faz sentido, é muito superficial. Apenas traduz o enviesamento político que se criou em torno dessa lei”, comenta Souza. Ele ressalta que, se um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) realmente quiser destruir a carreira de alguém, hoje já pode conseguir, e não é o PL 7596/2017 que fará diferença.
Isso porque “a função inata de uma corte superior é dar a última palavra em termos de aplicação da lei. É assim mesmo. Mas, se houver essa desvirtuação de função por parte de um ministro, pode-se solicitar o impedimento dele”.
Blair concorda que “isso seria uma violação, pois a Constituição impede que se chegue a esse ponto. A interpretação da deputada é descolada da Constituição, que prevê os poderes de cada juiz, distribui as tarefas por todo o sistema judiciário”.
Ele também lembra que apenas cerca de 3% das causas chegam ao STF, que não foi criado para rever todas as decisões tomadas em instâncias inferiores. “Mesmo que um juiz tenha uma decisão revogada, não dá para dizer que ele perderá o cargo”, diz o professor da UNB.
Diferenças entre projetos
Uma das grandes diferenças entre a atual lei de abuso de autoridade (4.898/1965) e a nova proposta está nas punições previstas.
Pela regra em vigor, as penas máximas são multa, detenção de dez dias a seis meses, perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por até três anos.
Pela nova, as prisões, por exemplo, podem chegar a quatro anos. Souza salienta que “a lei nova estabelece perda do cargo apenas em caso de reincidência específica e desde que apontada e fundamentada na sentença condenatória, ou seja, não é algo automático, o que, mais uma vez, infirma a frase da deputada”.
O artigo 1º do novo projeto de lei deixa claro que só serão consideradas criminosas as condutas praticadas “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.
Souza destaca que essas motivações não são fáceis de comprovar, o que tornaria a nova lei menos incisiva e mais difícil de ser aplicada. O artigo 1º ainda determina que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade”.
Combate a abusos é consenso
Com posições diferentes sobre o PL 7596/2017, os professores Blair e Souza estão do mesmo lado quando se trata de reconhecer a necessidade de coibir abusos de autoridade no Brasil.
Para Blair, da UNB, muito se fala da Lava Jato, por conta dos vazamentos de mensagens, “que revelaram que houve descaso com a imparcialidade, mas a verdade é que temos abuso de autoridade para todo canto neste país”.
Ele avalia que o problema não está na redação da lei anterior, mas no desprezo de parte da sociedade brasileira pela democracia. “Tem uma parcela da população que acredita que, para combater a corrupção, é preciso desrespeitar a Constituição, que só assim funciona.”
Já Souza, da USP, acredita que as regras em vigor facilitam o abuso de autoridade. “A atual lei é fruto de um período ditatorial. Foi feita para proteger as autoridades, e não os cidadãos. Veja que coisas gravíssimas, como prisões indevidas e atentados à liberdade de locomoção, de expressão e de reunião, têm sanções ínfimas.”
O professor da USP lembra que, desde 1997, o Congresso Nacional está tentando atualizar a Lei 4.898/1965, sem sucesso. “Isso, inclusive, mostra que a necessidade de atualização não tem nada a ver com a Lava Jato, que começou somente em 2014”, comenta.
Para Souza, o PL 7596/2017, agora analisado, é “absolutamente razoável e tecnicamente tímido, pois nem traz tantas novidades”.
Blair, que é juiz, acredita que, mesmo que o PL seja sancionado pelo presidente, virá a ser considerado inconstitucional pelo STF.
Souza concorda que a discussão precisa ser qualificada. “Essa lei não merece ficar restrita à disputa política, pois ninguém pode ser a favor do abuso de autoridade. Seria como alguém afirmar que é contra o combate à corrupção.”
Do UOL