Luta contra a ideologia de gênero: biombo à falta de projeto
Leia a coluna de Alexandre Schneider, pesquisador visitante da Universidade de Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP, consultor e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.
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Diversionismo de Gênero
Proteger a família. Lutar contra a “ideologia de gênero”, criada para incutir em nossas crianças ideias que provoquem a antecipação do desejo e da sua orientação sexual e destruam a família como a conhecemos.
Não é um filme ou uma nova série. É o roteiro que vem sendo seguido por diversas autoridades brasileiras nos últimos meses. Na educação, além do prejuízo causado às escolas e aos estudantes, serve como biombo à ausência de projeto até o momento.
O termo “ideologia de gênero” não tem qualquer fundo científico, como brilhantemente mostrou Drauzio Varella em importante artigo na Folha no último domingo. Nasceu em 1998, em uma Conferência Episcopal no Peru. Para aqueles religiosos, a possibilidade de existência de uma divisão além do feminino e masculino poria em risco o conceito de família e a própria humanidade.
No Brasil, o termo ganhou força entre movimentos conservadores, que passaram a defender que não cabe à escola discutir questões como gênero e educação sexual. Esta seria uma prerrogativa das famílias.
Ao abraçar esse discurso, o presidente e seu ministro da Educação atentam contra a paz e o equilíbrio das escolas públicas e particulares e criam uma nuvem bastante oportuna para que não se discuta o fundamental: este governo não tem proposta para a educação e não parece preocupado com isso.
A escola abriga já há algum tempo diversos tipos de famílias. Há aquelas chefiadas por um casal formado por um homem e uma mulher, as monoparentais (chefiadas apenas por um homem ou apenas por uma mulher), as formadas por casais homoafetivos, as lideradas por um responsável que não é pai ou mãe biológico e novas famílias formadas por pais separados.
Ao lidar com essas múltiplas realidades, cabe à escola acolher as crianças e suas famílias, garantindo a coesão, a harmonia e o respeito entre todos.
Em um país onde se matou mais de um homossexual por dia em 2018, ainda é elevada a gravidez na adolescência, as mulheres continuam ocupando menos cargos de liderança e em média ganham menos do que os homens em funções equivalentes, não há alternativa possível que não uma postura pedagógica ativa, capaz de reconhecer a diversidade e lidar com ela como algo que nos enriquece, não nos separa.
Minha proximidade das escolas públicas me proporcionou vivenciar a tensão a que estão submetidas. Famílias de religiões distintas questionando os projetos pedagógicos, famílias agnósticas criticando o calendário escolar, adolescentes e educadores vítimas de preconceito por motivos diversos.
E me ensinou o quanto são prejudiciais os discursos simplistas sobre o que deve ou não ser objeto de atuação da escola.
A pauta de costumes é bastante oportuna para um governo que ainda não disse a que veio na área da educação. Até o momento não há um projeto do Executivo em relação à principal fonte de financiamento da educação básica, o Fundeb, o que atrapalha o planejamento futuro dos estados e municípios.
Há diversos esqueletos de obras espalhados pelo país, financiados pelo Ministério da Educação, sem que se tome uma providência. A agenda de formação de professores está parada, a despeito do esforço do Conselho Nacional de Educação.
Não há estratégia definida para a implementação da Base Nacional Comum Curricular, não há um programa de apoio à alfabetização, ou à educação na primeira infância. A ausência do MEC como articulador de um Sistema Nacional de Educação Básica teve como efeito a ampliação do protagonismo das secretarias estaduais de Educação.
A escola não é uma ilha. É laica, por respeitar todas as religiões e quem não professar nenhuma. É pública, pois aceita todos e deve garantir educação de qualidade a eles, independentemente de sua origem, credo ou composição familiar. É um componente da democracia liberal, pois não pretende, nem deve pretender substituir o papel das famílias nem a liberdade de escolha dos indivíduos.
O Ministério da Educação prestaria um enorme serviço ao país se deixasse de lado o combate a fantasmas ideológicos e colocasse os pés no chão, apresentando e implementando um plano que enfrente os reais problemas educacionais do país. Ainda há tempo.
Da FSP